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Equidade como instrumento de integração de lacunas no Direito

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05/07/2011 às 06:36
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4. EQUIDADE COMO INSTRUMENTO DE INTEGRAÇÃO DE LACUNAS

O termo equidade deriva do termo grego , e tem origem no pensamento de Aristóteles. Nos dias atuais, a equidade é por vezes reconhecida como fonte de direito, em alguns ordenamentos jurídicos, e como instrumentos de integração em outros. O ordenamento jurídico brasileiro não faz menção genérica ao uso da equidade, seja como fonte de direito, seja como instrumento integrador. O já mencionado art. 4º da LICC não prevê a possibilidade do uso da equidade em casos de omissões legislativas, restringindo-se ao uso da analogia, costumes e princípios gerais de direito.

No entanto, o art. 5º desse mesmo dispositivo legal diz que, "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum". Então, o legislador tacitamente, ao estabelecer tal norma, conduz o magistrado à busca de decisões eqüitativas com o escopo de se atingir o bem comum e aos fins sociais pretendidos pela ordem jurídica, viabilizando o uso da equidade como parâmetros de uma decisão razoável..

Antes de adentrarmos especificamente neste problema, faz-se mister a explanação da origem aristotélica do termo, para melhor entendimento do uso e conceito utilizados hodiernamente.

A equidade em Aristóteles é relacionada à justiça, sendo esta última considerada pelo filósofo como a principal das virtudes, visto que se manifesta na relação com o próximo, por meio de práticas reiteradas de ações justas. Assim é necessário tecer a teoria aristotélica da ética, bem como sua teoria das virtudes e da justiça.

A virtude é o ponto chave de toda a teoria da ética em Aristóteles, partindo do conceito de teleologia, no sentido de que todas as formas existentes tendem a uma finalidade (thélos). Nessa linha, "toda ação e todo propósito visam um bem", entendendo-se por bem "aquilo a que todas as coisas visam". (ARISTÓTELES, 1996, p.118)

Portanto, daí infere-se que as ações humanas também são sempre voltadas, por meio da razão, a atingir um fim, que é a busca pelo bem supremo (summum bonum). Essa busca, porém, se trata de um bem que deve necessariamente ser considerado em si mesmo, pois, como explana o Filósofo,

se há, então, para as ações que praticamos, alguma finalidade que desejamos por si mesma, sendo tudo mais desejado por causa dela, e se não escolhemos tudo por causa de algo mais (se fosse assim, o processo prosseguiria até o infinito, de tal forma que nosso desejo seria vazio e vão), evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o melhor dos bens. (ARISTÓTELES, 1996, p. 118)

Assim, constitui a vida humana na busca de algo que está no humanamente possível, o que Aristóteles acredita ser a felicidade (eudaimonia), pois, conforme doutrinado por Bittar (2010), a noção de felicidade é criação humana, sendo plenamente alcançável e obtida pela razão teleológica.

A razão é a faculdade que distingue os seres humanos dos demais seres vivos. É por meio dela que o indivíduo se guia teleologicamente, como forma de obter o bem supremo, ou seja, a eudaimonía.

A felicidade é "a atividade conforme a excelência" (ARISTÓTELES, 1996, p. 128), e é esta "que torna o homem capaz de praticar ações nobilitantes [...]" (ARISTÓTELES, 1996, p. 134). A excelência por sua vez se classifica em excelência intelectual e excelência moral. Em seus próprios dizeres:

certas formas de excelência são intelectuais e outras são morais (a sabedoria, a inteligência e o discernimento são intelectuais, e a liberalidade e a moderação, por exemplo, são formas de excelência moral). (ARISTÓTELES, 1996, p. 136)

A excelência intelectual se deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução (experiência e tempo), enquanto à excelência moral é produto do hábito (ethós). Logo, ninguém é virtuoso por natureza, pois isso é fruto de práticas reiteradas de ações moralmente boas e do conseqüente desenvolvimento de uma disposição da alma para o agir excelente, e não do aprimoramento das habilidades naturais.

A razão teleológica é que permite ao ser humano guiar-se pelos caminhos do meio, que se encontra entre dois extremos, o do excesso e o da falta, considerados pelo Filósofo como deficiências morais. De maneira eqüidistante entre os extremos se encontram as virtudes (areté). Cabe à razão discernir e optar pelo meio-termo de forma habitual, que cuja prática contínua e reiterada das virtudes leva à excelência moral, e por conseguinte, se atinge a felicidade.

A justiça, no pensamento aristotélico, é compreendida como uma virtude, e como tal, localiza-se no meio-termo (mesotés). Ela se difere das demais virtudes e se coloca em posição superior por ser uma virtude que manifesta na aplicação da excelência moral em relação às outras pessoas, não em relação a si mesmo.

O Filósofo, no Livro V da Ética a Nicômaco, trata da dikayosyne (justiça) e da aidikía (injustiça), dizendo que nas pessoas, a primeira é a "disposição da alma que graças à qual elas dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo; de maneira idêntica, diz-se que a injustiça é a disposição da alma de graças à qual elas agem injustamente e desejam o que é injusto". (ARISTÓTELES, 1996, p. 193)

Introdutoriamente, considerando a justiça e a injustiça, indaga, pretendendo demonstrar sobre "quais são as espécies de ações com as quais elas se relacionam, que espécie de meio-termo é a justiça, e entre que extremos o ato justo é o meio-termo" (ARISTÓTELES, 1996, p. 193).

A justiça, conforme dito alhures, é considerada como a maior das virtudes, pois esta visa o "bem do outro", relacionando-se com o próximo. Aristóteles, citando as Elegias de Têognis, diz que "nem a estrela vespertina nem a matutina é tão maravilhosa (...); na justiça se resume toda excelência" (ARISTÓTELES, 1996, p. 195).

Nas palavras de Aristóteles:

A justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente a sim mesmas como também em relação ao próximo. (ARISTÓTELES, 1996, p. 195).

A ação justa se é reconhecida pelo seu contrário, ou seja, pela ação injusta, pois, "muitas das vezes se reconhece uma disposição da alma graças a outra contrária, e muitas vezes as disposições são idênticas por via das pessoas nas quais elas se manifestam". (ARISTÓTELES, 1996, p. 193).

Assim, de forma ampla, Aristóteles divide a justiça em duas classes: a justiça universal e a justiça particular.

Pela analogia dos contrários, Aristóteles conclui que

o termo injusto se aplica tanto às pessoas que infringem a lei quanto às pessoas ambiciosas (no sentido de quererem mais do que aquilo a que têm direito) e iníquas, de tal forma que as cumpridoras da lei e as pessoas corretas serão justas. O justo, então, é aquilo conforme à lei e correto, e o injusto é o ilegal e iníquo. (ARISTÓTELES, 1996, p. 194)

Daí se extrai o conceito de justo universal, pois este é o cidadão cumpridor da lei. Trata-se de uma obediência ao nómos, ou seja, ao ordenamento jurídico expresso pelas normas, englobando também os costumes e princípios preponderantes em uma determinada comunidade.

Como magistralmente explica Bittar (2010),

se a lei (nómos) é uma prescrição de caráter genérico e que a todos vincula, então seu fim é a realização do Bem da comunidade, e, como tal, do Bem Comum. A ação que se vincula à legalidade obedece a uma norma que a todos e para todos é dirigida; como tal, essa ação deve corresponder a um justo legal e a forma de justiça que lhe é por conseqüência é a aqui chamada justiça legal. (BITTAR, 2010, p. 130)

Explica ainda o supramencionado autor que esse é o conceito de justiça em sentido amplo, o qual, de todos os sentidos é o mais genérico, daí ser também denominado de justiça total ou integral, haja vista que tem aplicação mais abrangente e extensa, pois "as leis valem para o bem de todos, para o bem comum". (BITTAR, 2010, p. 130)

A justiça particular é uma espécie de justiça que, ao contrário do que ocorre com a justiça universal (díkaion nominon), se corresponde a apenas uma parte da virtude e não à virtude total (BITTAR, 2010, p. 132). Portanto, o justo particular é espécie do gênero justo total.

Divide-se em duas espécies, a saber, justiça distributiva e justiça corretiva.

A justiça distributiva é a que se observa na distribuição pela polis, isto é, pelo Estado, de bens, honrarias, cargos, assim como responsabilidades, deveres e impostos (BITTAR, 2010, p. 133). Conforme dito pelo próprio Filósofo, na Ética:

Uma das espécies de justiça em sentido estrito e do que é justo na acepção que lhe corresponde, é a que se manifesta na distribuição de funções elevadas de governo, ou de dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas entre os cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela constituição da cidade, pois em tais coisas uma pessoa pode ter participação desigual ou igual à de outra pessoa. (ARISTÓTELES, 1996, p. 197)

Nessa perspectiva, conforme doutrinado por Bittar (2010) o injusto seria o desigual quando há o recebimento de benefícios e encargos em quantia menor ou maior ao que lhe é devido.

O justo nesta acepção é, portanto o proporcional, e o injusto é o que viola a proporcionalidade. Neste último caso, um quinhão se torna muito grande e outro muito pequeno, como realmente acontece na prática, pois a pessoa que age injustamente fica com um quinhão muito grande do que é bom e a pessoa que é tratada injustamente fica com um quinhão muito pequeno. No caso do mal o inverso é verdadeiro, pois o mal maior, já que o mal menor deve ser escolhido em preferência ao maior, e o que é digno de escolha é um bem, e o que é mais digno de escolha é um bem ainda maior. (ARISTÓTELES, 1996, p. 199).

Em suma, a justiça distributiva é um meio termo com quatro termos na relação: dois sujeitos comparados entre si e dois objetos. Será justo, portanto se atingir a finalidade de dar a cada um aquilo que lhe é devido, na medida de seus méritos.

A justiça corretiva se difere da distributiva no sentido de que esta utiliza como critério de justa repartição aos indivíduos os méritos de cada um, enquanto aquela visa o "restabelecimento do equilíbrio rompido entre os particulares: a igualdade aritmética." (BITTAR, 2010, p. 135).

Conforme os ensinamentos do Filósofo, a justiça corretiva é a que desempenha função corretiva nas relações entre as pessoas. Esta última se subdivide em duas: algumas relações são voluntárias e outras são involuntárias; são voluntárias a venda, a compra, o empréstimo a juros, o penhor, o empréstimo sem juros, o depósito e a locação (estas relações são chamadas voluntárias porque sua origem é voluntária); das involuntárias, algumas são sub-reptícias (como o furto, o adultério, o envenamento, o lenocínio, o desvio de escravos, o assassino traiçoeiro, o falso testmunho), e outras são violentas, como o assalto, a prisão, o homicídio, o roubo, a mutilação, a injúria e o ultraje. (ARISTÓTELES, 1996, p. 197).

A aplicação da justiça corretiva fica ao encargo do juiz (dikastés), que é o mediador de todo o processo. O juiz é considerado para Aristóteles, a personificação da justiça, pois, "ir ao juiz é ir à justiça, porque se quer que o juiz seja como se fosse a própria justiça viva (...) é uma pessoa eqüidistante e, em algumas cidades são chamados de ‘mediadores’, no pressuposto de que, se as pessoas obtêm o meio-termo, elas obtêm o que é justo." (ARISTÓTELES, 1996, p. 200).

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A justiça política se dá no âmbito das relações dos indivíduos na polis, pertinente ao status civitatis do cidadão perante seus iguais. Bittar (2010) explica que "existente no meio social, é a justiça que organiza um modo de vida que tende à autossuficiência da vida comunitária (autárkeian), vigente entre homens que partilham de um espaço comum" (BITTAR, 2010, p. 140).

Conforme se extrai dos escritos de Aristóteles, o justo político se apresenta entre as pessoas que vivem juntas com o objetivo de assegurar a auto-suficiência do grupo – pessoas livres e proporcionalmente ou aritmeticamente iguais. Logo, entre pessoas que não se enquadram nesta condição não há justiça política, e sim a justiça em um sentido especial e por analogia. (ARISTÓTELES, 1996, p. 205).

Portanto, as pessoas consideradas cidadãs na polis na época de Aristóteles formavam um conjunto restrito e excludente (pois se excluem deste conjunto os estrangeiros, mulheres, escravos, menores e aqueles que não são livres), não se aplicando a justiça política sobre os demais membros, atingindo-os apenas obliquamente.

A justiça doméstica é a que se encontra no âmbito da casa, no que se refere ao filho, escravos e a mulher. Assim, "pode-se dizer que a justiça doméstica tem estas últimas como espécies (justiça para com a mulher; justiça para com os filhos; justiça para com os escravos)." (BITTAR, 2010, p. 142).

Aristóteles sustenta que a justiça do senhor para com o escravo e a do pai para com o filho não são iguais à justiça política, embora se lhe assemelhem; na realidade, não pode haver injustiça no sentido irrestrito em relação a coisas que nos pertencem, mas os escravos de um homem, e seus filhos até uma certa idade em que se tornam independentes, são por assim dizer partes deste homem, e ninguém faz mal a si mesmo (por esta razão uma pessoa não pode ser injusta em relação a si mesma). (ARISTÓTELES, 1996, p. 205)

Portanto, não há que se falar em justiça ou injustiça nesses casos, pois ninguém é capaz de fazer mal a si, como justifica Aristóteles o poder irrestrito do pai e senhor sobre seu filho e seu escravo.

A justiça legal e a justiça natural são divisões do gênero que é a justiça política. Bittar (2010) explica a distinção aristotélica entre o justo legal (díkaion nomikón) e o justo natural (díkaion physikón) no sentido de que aquele corresponde às prescrições derivadas do nómos, isto é, das regras vigentes entre os cidadãos políticos, e este, encontra fundamento na própria natureza. É assim a distinção feita por Aristóteles:

A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente. (ARISTÓTELES, 1996, p. 206).

A justiça legal tem fundamento na lei, que é definida pela vontade do legislador. Possui força não natural, e é fundada na convenção, pois a vontade do órgão que emana o ato legislativo é soberana e pressupõe consenso de todos os súditos; uma vez vigente a lei adquire obrigatoriedade e vincula todos os cidadãos.

A justiça natural, entretanto se consiste no conjunto de todas as regras que encontram aplicação, validade, força e aceitação universais. Assim pode-se definir o justo natural como sendo parte do justo político que encontra respaldo na natureza humana, e não depende do arbítrio volitivo do legislador, sendo por conseqüência, de caráter universalista. (BITTAR, 2010, p. 145).

Portanto, a justiça natural tem uma força que rompe com as barreiras políticas, sendo que transcende a vontade humana e são imutáveis, e tem a mesma forma em todo lugar, "como o fogo que queima aqui e na Pérsia" (ARISTÓTELES, 1996, p. 206).

No livro VI da Ética à Nicômaco, Aristóteles trata da prudência como uma das virtudes dianoéticas, associando-a ao discernimento. Conforme expõe em sua dissertação, Hordones (2007) com base em Aristóteles, as virtudes se dividem em éticas e dianoéticas, sendo que as primeiras responsáveis pelo caráter, as segundas responsáveis pelo intelecto. A alma também se compõe de duas partes, uma irracional e a outra racional. Esta se subdivide em duas partes: uma é chamada de razão teorética ou científica, pela qual o homem contempla as coisas invariáveis, e a outra parte, chamada de razão prática, calculativa ou opnativa, pela qual o homem percebe as coisas passíveis de variação. Cada uma dessas partes têm sua respectiva virtude: a razão teorética tem como virtude a sabedoria (sophia), enquanto que a razão prática tem como virtude a phronesis. (HORDONES, 2007, p. 36)

Para buscar a definição de phronesis , Aristóteles considera as pessoas que são dotadas dessa forma de excelência.

Pensa-se que é bem característico de uma pessoa de discernimento ser capaz de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si mesma, não em relação a um aspecto particular – por exemplo, quando se quer saber quais as espécies de coisas que concorrem para a saúde e para o vigor físico – , e sim acerca das espécies de coisas que nos levam a viver de um modo geral. A evidência disto é o fato de dizermos que uma pessoa é dotada de discernimento em relação a algum aspecto particular quando ela calcula bem com vistas a algum objetivo bom, diferente daqueles que são objetivo de uma arte qualquer. (ARISTÓTELES, 1996, p. 219/220).

A phronesis é muito importante na vida ética do ser humano, uma vez que este é guiado por ela em todas as suas escolhas que têm por finalidade alcançar a felicidade por meio das práticas virtuosas. A prudência então é a virtude dianoética sem a qual não se pode exercer qualquer uma das virtudes éticas, inclusive a justiça. Para que uma ação possa ser considerada justa é preciso que ela seja também phronética, e vice-versa. De tal modo, não é possível existir um ato justo sem que ele seja precedido por uma deliberação e uma escolha, que dê a justificação racional do ato que se pretende justo (HORDONES, 2007, p. 39)

Destarte, pode-se conceber a phronesis como a maior das virtudes, inclusive do que a própria justiça, posto que é a qualidade inata ao ser humano que o faz guiar-se pelos caminhos retos, praticando virtudes e observando a justiça em suas ações. Portanto, não há ação justa e eqüitativa se esta não for fruto de deliberação da faculdade phronética.

Ao tratar da eqüidade, Aristóteles a compara com justiça, e conclui que são "a mesma coisa, embora a eqüidade seja melhor. O que cria o problema é o fato de o eqüitativo ser justo, mas não justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça legal". (ARISTÓTELES, 1996, p. 212)

Na impossibilidade de previsão pelo legislador de todos os casos que poderão surgir na realidade, o aplicador das leis deve se ater às peculiaridades do fato concreto, "dizendo o que o próprio legislador se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão" (ARISTÓTELES, 1996, p. 213).

O eqüitativo é, pois, a correção da lei quando esta é omissa em virtude de sua generalidade. De forma ilustrativa, Aristóteles a compara à régua de Lesbos, que se molda à forma da pedra devido a sua maleabilidade.

Com efeito, quando uma situação é indefinida a regra também tem de ser indefinida, como acontece com a régua de chumbo usada pelos construtores em Lesbos; a régua se adapta à forma da pedra e não é rígida, e o decreto se adapta aos fatos de maneira idêntica.

(ARISTÓTELES, 1996, p. 213)

A equidade, portanto, é a adequação da lei ao caso concreto, atendidas suas peculiaridades, tendo em vista o caráter genérico e abstrato da atividade do legislador, atribuindo ao juiz a ponderação proporcional da norma à situação fática.

Conforme explana Lacerda (2005), citado por Hordones (2007), a equidade está ligada ao justo legal e não ao justo particular.

É interessante destacar que a eqüidade se liga ao justo como lei, universal, e não ao justo particular, ou seja, à igualdade. O justo particular visa restabelecer a proporção violada num negócio jurídico, em que uma das partes ganhou mais que deveria e a outra perdeu mais do que deveria. Como ocorre no seguinte exemplo: o juiz deve tirar 10 do que ganhou injustamente 50 e os dar ao que ficou sem nada, objetivando igualá-los, dando a cada um o que é devido. A eqüidade, por sua vez, se liga ao justo legal, corrigindo a lei no caso concreto, porque foi pensada para situações abstratas que não coincidem plenamente com o caso concreto. (LACERDA apud HORDONES, 2007. p. 40)

A equidade então se liga à lei no sentido de corrigi-la no ato de sua aplicação ao caso fático, tendo em vista a generalidade e abstração do produto da vontade do legislador.

A correção da lei se faz por meio da prudência do magistrado, no sentido de atender às exigências de razoabilidade e equanimidade, pois a lei "somente alcança sua normatividade quanto consegue se adaptar, por meio de um decreto corretivo, ao caso singular; assim, uma lei geral atualiza concretamente a sua normatividade" (HORDONES, 2007, p. 42).

Portanto, a lei só atinge seus fins sociais se for aplicada de forma prudente do magistrado, este guiado pelo juízo de equidade, visando a adequação da norma ao caso concreto.

Oliveira (2001) diz que "o processo de aplicação da lei, portanto, concretiza a lei a partir do caso, sob o pano de fundo inquestionado das tradições éticas da pólis que são representadas pela própria lei a aplicar". Ou seja, a lei só se torna concreta quando da sua aplicação na realidade fática, imprescindindo, contudo, das convenções éticas de determinada comunidade, pois presume-se que as leis emanadas pelo poder instituído para tal finalidade, são expressões destas convenções.

Galuppo (2001) citado por Hordones (2007) afirma que "o homem prudente é justo na medida em que sabe o que é preciso fazer numa dada situação, dando a cada um o que é devido de modo eqüitativo e obedecendo a lei que disciplina aquele caso singular" (GALUPPO, apud HORDONES, 2007, p. 38). Ou seja, quando a lei é insuficiente para determinar uma decisão razoável, do ponto de vista eqüitativo, o juiz, por meio phronesis, uma das virtudes dianoéticas (intelectuais), conforme já supra mencionado, atinge a justiça do caso concreto quando obedece aos critérios distributivos de dar a cada um o que lhe é devido.

Atualmente, a equidade como instrumento de integração do Direito é ainda controverso, sendo que seu uso é, conforme Amaral Neto (2010) excepcional, aplicável apenas nas hipóteses expressas em lei.

Seu conceito atual é multifacetário, pois tem várias significações. Conforme o autor supra citado, tem-se a equidade interpretativa "quando o juiz, perante a dificuldade de estabelecer o sentido e o alcance de um contrato, por exemplo, decide com um justo comedimento" (AMARAL NETO, 2010, p. 17); equidade corretiva "que contempla o equilíbrio das prestações, reduzindo, por exemplo, o valor da cláusula penal" (AMARAL NETO, 2010, p. 17); a eqüidade quantificadora, "que atua na hipótese de fixação do quantum indenizatório" (AMARAL NETO, 2010, p. 17); a eqüidade integrativa, "na qual a eqüidade é fonte de integração, e ainda a eqüidade processual, ou juízo de eqüidade, conjunto de princípios e diretivas que o juiz utiliza de modo alternativo, quando a lei autoriza, ou permite que as partes a requeiram, como ocorre nos casos de arbitragem" (AMARAL NETO, 2010, p. 17).

Diniz (2003), com base na classificação de Alípio Silveira, divide o termo em três acepções correlatas: latíssima, considerada como princípio universal da ordem normativa, configurando-se como uma suprema regra de justiça a qual os homens devem obedecer; lata, no sentido de justiça absoluta ou ideal, confundindo-se com a própria idéia de direito natural; estrita, enquanto aplicação do ideal de justiça ao caso concreto.

Na definição de Ferraz Jr. (2003), tem-se por equidade "o sentimento do justo concreto, em harmonia com as circunstâncias e adequado ao caso. O juízo por equidade, na falta de norma positiva, é o recurso a uma espécie de intuição, no concreto, das exigências da justiça enquanto igualdade proporcional" (FERRAZ JR., 2003, p. 305).

Afirma também Nunes (2002) que "quando surge um caso que não é abrangido pela declaração universal da lei, é justo corrigir a omissão. A essa concepção dá-se o nome de equidade. A equidade supre o erro proveniente de caráter absoluto de diposição legal" (NUNES, 2002, p. 281).

O juízo de equidade é dirigido ao caso particular, livre de tendência generalizante, pois se aplica apenas ao caso concreto em questão, não se aplicando a outros casos, embora semelhantes. Daí infere-se que a equidade não pode ser considerada como fonte do direito, mas tem função completiva na integração das lacunas como se pretende demonstrar no presente trabalho. Neste sentido, Ferraz Jr. (2003) afirma que a equidade não é fonte de direito, mas é meio de integração, pois "na falta de norma, a equidade integra o ordenamento sumariamente, assentando-se nas circunstâncias do caso concreto" (FERRAZ JR., 2003, p. 305).

Com relação à hierarquia dos meios supletivos de lacunas, verifica-se que se trata de prevalência de meios de integração, e não ordenação hierárquica das fontes do direito. Doutrinariamente, costuma-se considerar que o legislador, no art. 4º da LICC, estabeleceu uma hierarquia implícita entre analogia, costumes e princípios gerais de direito, excluindo-se desse rol a equidade. Portanto, o recurso aos princípios gerais de direito somente seria possível quando esgotados os demais, ou seja, a analogia e os costumes.

Entretanto, quando o mesmo diploma legal, no art. 5º estabelece que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum", o legislador dá margem a uma interpretação mais maleável, valorizando o fim social da norma em contraposição ao rigorismo hierárquico das fontes supletivas das lacunas. Conforme interpretação de Diniz (2003), o referido artigo é "que permite corrigir a inadequação da norma ao caso concreto. A equidade seria uma válvula de segurança que possibilita aliviar a tensão e a antinomia entre a norma e a realidade, a revolta dos fatos contra os códigos" (DINIZ, 2003, p. 469).

Em defesa do uso da equidade na integração das lacunas, Diniz (2003) assevera:

Do que foi exposto infere-se a inegável função da equidade de suplementar a lei, ante as possíveis lacunas. No nosse entender, a equidade é elemento de integração, pois, consiste, uma vez esgotados os mecanismos previstos no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, em restituir à norma, a que acaso falte, por imprecisão de seu texto ou por imprevisão de certa circunstância fática, a exata avaliação da situação a que esta corresponde, a flexibilidade necessária à sua aplicação, afastando por imposição do fim social da própria norma o risco de convertê-la num instrumento iníquo. (DINIZ, 2003, p. 469).

Para se evitar que o uso da equidade se degenere devido a subjetividade que lhe é inerente, Ráo (1999) enumera alguns pontos a serem observados pelo magistrado ao recorrer a este instituto:

a) por igual devem ser tratadas as coisas iguais e desigualmente as desiguais; b) todos os elementos que concorreram para constituir a relação sub iudice, coisa ou pessoa, ou que, no tocante a estas tenham importância, ou sobre elas exerçam influência, devem ser devidamente considerados; c) entre várias soluções possíveis deve-se preferir a mais humana, por ser a que melhor atende à justiça. (RÁO, 1999, p. 85).

Diniz (1997) defende o uso da equidade em duas hipóteses: quando há previsão legal para seu uso, ou na hipótese de se verem esgotados o uso da analogia, costumes e princípios gerais de direito, por imposição do art. 4º da LICC.

Destarte, é assente na doutrina o uso da equidade como instrumento de integração de lacunas no direito.

Nunes (2002) diz que haverá situações em que o caso concreto apontará um real conflito entre normas ou entre princípios ou entre estes e as normas [...] É como se estivéssemos falando de uma espécie de lacuna semântica ou axiomática. A equidade, então, aí aparece, colmatando esse estranho vazio do sistema, resolver a questão sem tornar ou declarar nenhuma lei inconstitucional nem alguma norma ilegal. (NUNES, 2002, p. 283)

De forma diversa de Maria Helena Diniz (1999), o autor supra afirma que "a equidade implica um modo de avaliação do ato interpretativo mais amplo do que apenas o de ser a última alternativa para a colmatação" (NUNES, 2002, p. 264). Assevera de forma conclusiva que pode ter, assim "a equidade como meio de preenchimento das lacunas, como parâmetro orientador ao intérprete, que por ela deve guiar-se, visando a atenuar e corrigir os excessivos rigores das normas jurídicas." (NUNES, 2002, p. 265)

Na legislação, também sempre foi e é recorrente a menção ao uso da equidade de forma explícita, porém esparsa.

O artigo 137, inciso XXXVII da Constituição Federal de 1934, que preconizava: "Nenhum juiz deixará de sentenciar por motivo de omissão na lei. Em tal caso deverá decidir por analogia, pelos princípios gerais de direito, ou por eqüidade".

Atualmente, o Código Civil, por exemplo, em seu art. 479, determina que, no caso de onerosidade excessiva, "a resolução poderá ser evitada, oferecendo o réu a modificar equitativamente as condições do contrato" (BRASIL, 2002). Também o art. 944, parágrafo único, do mesmo códex, dispõe que "se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização" (BRASIL, 2002).

A Consolidação das Leis do Trabalho, no art. 8º, dispõe que "as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais do Direito, principalmente do Direito do Trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o Direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público".

Também o artigo 108 do Código Tributário Nacional dispõe que "na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia; II – os princípios gerais de direito tributário; III – os princípios gerais de direito público; IV – a eqüidade" (BRASIL, 1966). Dessa forma, o legislador instituiu de forma expressa uma hierarquia entre os instrumentos integradores do Direito, e admite o uso da equidade apenas quando esgotados os demais meios indicados pela norma.

O Supremo Tribunal Federal, que é a Suprema Corte do Poder Judiciário brasileiro, o qual tem a incumbência precípua de guarda da Constituição, tem decidido também com base na equidade, comprovado pelo exaustivo número de decisões nesse sentido, das quais se colaciona ementas de alguns julgados:

EMENTA: EXTENSÃO EM "HABEAS CORPUS" - APLICABILIDADE DO ART. 580 DO CPP - RAZÃO DE SER DESSA NORMA LEGAL: NECESSIDADE DE TORNAR EFETIVA A GARANTIA DE EQÜIDADE - DOUTRINA - PRECEDENTES - AUSÊNCIA, NO CASO, DE CIRCUNSTÂNCIAS DE ORDEM PESSOAL SUBJACENTES À CONCESSÃO DO "WRIT" CONSTITUCIONAL EM FAVOR DO PACIENTE - Plena identidade de situação entre o paciente e aqueles em cujo favor é requerida a extensão da ordem concessiva de "Habeas Corpus" - Condenação pelos delitos de tráfico e de associação para o tráfico de entorpecentes - Pena-base (doze anos) fixada muito além do grau mínimo (cinco anos) previsto para o crime tipificado no art. 33 da lei nº 11.343/2006 - Ausência de fundamentação adequada - Ilegitimidade da operação de dosimetria penal - Situação de injusto constrangimento configurada - Pedidos de extensão deferidos. (STF - HC 101118 Extn / MS - MATO GROSSO DO SUL -O NO HABEAS CORPUS - Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO - Julgamento: 22/06/2010 - Órgão Julgador: Segunda Turma - Publicação: 27-08-2010) (grifo nosso)

EMENTA: RECURSO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. CARÁTER INFRINGENTE. EMBARGOS RECEBIDOS COMO AGRAVO. PROVIMENTO DO EXTRAORDINÁRIO. PROCEDÊNCIA INTEGRAL DO PEDIDO. Sucumbência total caracterizada. Honorários advocatícios devidos. Verba calculada, por equidade, sobre o valor da condenação. Agravo regimental provido para esse fim. Aplicação do art. 20, § 4º, do CPC. Reconhecida a total procedência do pedido contra a fazenda pública, devem os honorários advocatícios ser fixados por equidade, podendo sê-lo com base no valor da condenação.(STF - AI 524355 ED/SP - SÃO PAULO

Emb. Decl. no Agravo de Instrumento - Relator(a):  Min. CEZARPELUSO - Julgamento:  03/02/2009 - Órgão Julgador:  Segunda Turma - Publicação: 13-03-2009) (grifo nosso)

Em ambos os julgados apresentados, os Ministros decidiram equitativamente, como forma de amoldar as normas aos casos concretos. No primeiro julgado colacionado supra, o pedido de Habeas Corpus foi impetrado com fundamento no art. 580 do Código de Processo Penal , requerendo a liberdade extensivamente por haver identidade de situação entre o paciente e os demais réus no concurso de agentes, sem caráter exclusivamente pessoal, gerando, portanto, a necessidade de tornar efetiva a garantia da equidade, estendendo a concessão do writ ao paciente.

No segundo julgado, trata-se de cálculo de verba de honorários advocatícios sucumbenciais por meio da equidade sobre o valor da condenação. Em seu voto, o Ministro Cézar Peluso fixou a verba por equidade considerando o valor do benefício logrado pelos vencedores.

O recurso à equidade não deverá ultrapassar os limites legais impostos pelo legislador, para que sua utilização não se torne instrumento do livre e desmedido arbítrio do juiz, sendo utilizado apenas quando o ordenamento jurídico não oferece alternativa na solução do litígio levado à cognição do magistrado, e para que não se torne um princípio contrário à justiça, mas um complemento desta que a torna plena. Conforme doutrinado por Diniz (2003), a equidade confere ao magistrado poder discricionário, mas não arbitrário, pois, trata-se de uma autorização de apreciar, segundo a lógica do razoável, interesses e fatos não determinados a priori pelo legislador, estabelecendo uma norma individual para o caso concreto ou singular, sempre considerando as pautas axiológicas contidas no sistema jurídico, ou seja, relacionando sempre os subsistemas normativos, valorativos e fáticos. (DINIZ, 2003, p. 470)

O juízo equânime deve ser observado em toda a decisão judicial, pois este é atinente às peculiaridades do caso concreto, visto que comparada à régua de Lesbos, se ajusta mais adequadamente às superfícies irregulares da pedra. Assim deve ser a decisão judicial; deve o juiz, por meio da equidade, amoldar os fatos às normas jurídicas de tal modo que se ajustem perfeitamente, para assim se observar a justiça no caso concreto.

Diante da pretensa completude do ordenamento, tendo em vista ser composto por elementos hetero e autointegradores, e da proibição do non liquet, a equidade aparece como forma que atende melhor aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade das decisões.

O uso da equidade então é meio de integração no caso de lacunas no direito, e se mostra como medida mais ponderada e humana em casos que dela necessitem, devido suas características específicas.

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Sobre o autor
Fábio Luiz Antunes

Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANTUNES, Fábio Luiz. Equidade como instrumento de integração de lacunas no Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2925, 5 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19473. Acesso em: 19 abr. 2024.

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