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Relativização da coisa julgada.

Julgamento do RE 594.350/RS

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O Ministro Celso Mello analisou os artigos 475-L, §1º e 471, parágrafo único, do Código de Processo Civil, dispositivos que mitigam, de certo modo, a eficácia da coisa julgada.

1 – INTRODUÇÃO

No presente trabalho realiza-se abordagem do julgamento proferido pelo Ministro Celso Mello, integrante do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário de n. 594350/RS.

Tamanha é a importância do referido julgado que o Supremo Tribunal Federal, com objetivo de proporcionar os leitores dos seus informativos uma compreensão mais detalhada do pensamento do Órgão Constitucional, divulgou a decisão do referido processo no informativo 591 [01], pois tratou-se de julgamento de peculiar importância jurídica.

Como será visto neste trabalho, o Ministro Celso Mello tratou do delicado tema referente à relativização da coisa julgada analisando a doutrina, a legislação e a jurisprudência, oportunidade em que expôs seu entendimento.

Salutar é a importância do precedente, notadamente porque, como se verá, o Ministro da Corte Constitucional acabou por analisar e exarar seu entendimento a respeito dos artigos 475-L, §1º e 471, parágrafo único, do Código de Processo Civil, dispositivos que mitigam, de certo modo, a eficácia da coisa julgada.

Exposto o voto do Ministro, far-se-á breve exibição sobre o pensamento da doutrina e jurisprudência, bem como será traçado um paralelo entre o direito civil e o penal.


II – RECURSO EXTRAORDINÁRIO n. 594350/RS

Como dito acima, o Supremo Tribunal Federal, por intermédio de seu Ministro Celso Mello, teve a oportunidade de analisar e julgar "recurso extraordinário interposto contra acórdão, que, proferido por Tribunal de jurisdição inferior, manteve decisão prolatada em execução de sentença", na qual a parte "busca rescindir o julgado, pretendendo, em sede processualmente inadequada e de maneira absolutamente imprópria, o reexame do fundo da controvérsia, que já constituiu objeto de decisão – tornada irrecorrível - proferida no processo de conhecimento" [02].

Em suma, o recorrente, já em sede de execução, pretendeu a rescisão do julgado com base no art. 741 do Código de Processo Civil, de modo que desejou a rediscussão da questão fundo da sentença e a inexigibilidade do crédito exeqüendo.

Ao analisar o caso, o Ministro Celso Mello proferiu seu julgamento não provendo o recurso apresentado, cuja ementa segue transcrita:

EMENTA: COISA JULGADA EM SENTIDO MATERIAL. INDISCUTIBILIDADE, IMUTABILIDADE E COERCIBILIDADE: ATRIBUTOS ESPECIAIS QUE QUALIFICAM OS EFEITOS RESULTANTES DO COMANDO SENTENCIAL. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL QUE AMPARA E PRESERVA A AUTORIDADE DA COISA JULGADA. EXIGÊNCIA DE CERTEZA E DE SEGURANÇA JURÍDICAS. VALORES FUNDAMENTAIS INERENTES AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. EFICÁCIA PRECLUSIVA DA "RES JUDICATA". "TANTUM JUDICATUM QUANTUM DISPUTATUM VEL DISPUTARI DEBEBAT". CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE DE REDISCUSSÃO DE CONTROVÉRSIA JÁ APRECIADA EM DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO, AINDA QUE PROFERIDA EM CONFRONTO COM A JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. A QUESTÃO DO ALCANCE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 741 DO CPC. MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. RE CONHECIDO, PORÉM IMPROVIDO.

- A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de específica ação autônoma de impugnação (ação rescisória) que haja sido proposta na fluência do prazo decadencial previsto em lei, pois, com o exaurimento de referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento posterior, tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito de fiscalização incidental de constitucionalidade.

- A decisão do Supremo Tribunal Federal que haja declarado inconstitucional determinado diploma legislativo em que se apóie o título judicial, ainda que impregnada de eficácia "ex tunc", como sucede com os julgamentos proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758 – RTJ 164/506-509 – RTJ 201/765), detém-se ante a autoridade da coisa julgada, que traduz, nesse contexto, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, "in abstracto", da Suprema Corte. Doutrina. Precedentes. [03]

Perceba, para o Ministro do Supremo Tribunal Federal a coisa julgada é atributo especial que qualifica os efeitos do comando da sentença, cuja rescisão somente pode ser admitida por via própria, isto é, com o manejo da ação rescisória nas hipóteses legais.

Como se depreende da ementa acima transcrita, para alcançar seu posicionamento, o Ministro Celso Mello analisou a doutrina, legislação e jurisprudência pertinente ao caso.

Iniciou sua decisão, que mais parece uma fundamental aula de direito dada à rica análise feita ao tema, expondo o conceito da coisa julgada como doutrinariamente defendido, ou seja, como a qualidade que torna imutável os efeitos da sentença. Destacou também sua importância para o direito por ser o meio pelo qual se fornece estabilidade e segurança às relações sociais, preservando-se a paz social.

O Ministro Celso Mello transcreve os ensinamentos de José Frederico Marques ("Manual de Direito Processual Civil", vol. III/329, item n. 687, 2ª ed./2ª tir., 2000, Millennium Editora) sobre as relações entre a coisa julgada e a Constituição:

‘A coisa julgada cria, para a segurança dos direitos subjetivos, situação de imutabilidade que nem mesmo a lei pode destruir ou vulnerar - é o que se infere do art. 5º, XXXVI, da Lei Maior. E sob esse aspecto é que se pode qualificar a ‘res iudicata’ como garantia constitucional de tutela a direito individual.

Por outro lado, essa garantia, outorgada na Constituição, dá mais ênfase e realce àquela da tutela jurisdicional, constitucionalmente consagrada, no art. 5º, XXXV, para a defesa de direito atingido por ato lesivo, visto que a torna intangível até mesmo em face de ‘lex posterius’, depois que o Judiciário exaure o exercício da referida tutela, decidindo e compondo a lide.’ [04]

E conclui:

Não custa enfatizar, de outro lado, na perspectiva da eficácia preclusiva da "res judicata", que, em sede de execução, não mais se justifica a renovação do litígio que foi objeto de resolução no processo de conhecimento, especialmente quando a decisão que apreciou a controvérsia apresenta-se revestida da autoridade da coisa julgada, hipótese em que, nos termos do art. 474 do CPC, "reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas que a parte poderia opor (...) à rejeição do pedido" (grifei).Cabe ter presente, neste ponto, a advertência da doutrina (NELSON NERY JUNIOR/ROSA MARIA ANDRADE NERY, "Código de Processo Civil Comentado", p. 709, 10ª ed., 2007, RT), cujo magistério - em lição plenamente aplicável ao caso ora em exame - assim analisa o princípio do "tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat":

"Transitada em julgado a sentença de mérito, as partes ficam impossibilitadas de alegar qualquer outra questão relacionada com a lide sobre a qual pesa a autoridade da coisa julgada. A norma reputa repelidas todas as alegações que as partes poderiam ter feito na petição inicial e contestação a respeito da lide e não o fizeram. Isto quer significar que não se admite a propositura de nova demanda para rediscutir a lide, com base em novas alegações." [05]

Assim, para o Ministro, transitada em julgado a sentença não há mais cabimento de qualquer discussão em relação ao seu comando emergente, com exceção do meio próprio que, no seu entendimento, é a ação rescisória.

O Ministro cita farta doutrina (HUMBERTO THEODORO JÚNIOR "Curso de Direito Processual Civil", vol. I/550-553, itens ns. 516/516-a, 51ª ed., 2010, Forense, VICENTE GRECO FILHO "Direito Processual Civil Brasileiro", vol. 2/267, item n. 57.2, 11ª ed., 1996, Saraiva, MOACYR AMARAL SANTOS "Primeiras Linhas de Direito Processual Civil", vol. 3/56, item n. 754, 21ª ed., 2003, Saraiva, EGAS MONIZ DE ARAGÃO "Sentença e Coisa Julgada", p. 324/328, itens ns. 224/227, 1992, Aide, JOSÉ FREDERICO MARQUES "Manual de Direito Processual Civil", vol. III/332, item n. 689, 2ª ed., 2000, Millennium Editora e ENRICO TULLIO LIEBMAN "Eficácia e Autoridade da Sentença", p. 52/53, item n. 16, nota de rodapé, tradução de Alfredo Buzaid/Benvindo Aires, 1945, Forense), bem como argumenta que uma vez transitada em julgado a sentença, reputam-se deduzidas todas as questões que foram ou que poderiam ser discutidas no processo [06].

Por conseguinte, destaca a importância constitucional do instituto da coisa julgada, apto a fornecer segurança nas relações jurídicas [07].

Alhures sustenta o Ministro:

Nem se diga, ainda, para legitimar a pretensão jurídica da parte ora recorrente, que esta poderia invocar, em seu favor, a tese da "relativização" da autoridade da coisa julgada, em especial da (impropriamente) denominada "coisa julgada inconstitucional", como sustentam alguns autores (JOSÉ AUGUSTO DELGADO, "Pontos Polêmicos das Ações de Indenização de Áreas Naturais Protegidas – Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais", "in" Revista de Processo nº 103/9-36; CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, "Relativizar a Coisa Julgada Material", "in" Revista de Processo nº 109/9-38; HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, "A Reforma do Processo de Execução e o Problema da Coisa Julgada Inconstitucional (Código de Processo Civil, artigo 741, Parágrafo Único)", "in" Revista dos Tribunais, vol. 841/56/76, ano 94; TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER e JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA, "O Dogma da Coisa Julgada – Hipóteses de Relativização", 2003, RT; TEORI ALBINO ZAVASCKI, "Embargos à Execução com Eficácia Rescisória: Sentido e Alcance do Art. 741, Parágrafo Único, Do CPC", "in" Revista de Processo, vol. 125/79-91, v.g.) [08].

Pois, segundo seu entendimento:

[...] essa postulação, se admitida, antagonizar-se-ia com a proteção jurídica que a ordem constitucional dispensa, em caráter tutelar, à "res judicata".

Na realidade, a desconsideração da "auctoritas rei judicatae" implicaria grave enfraquecimento de uma importantíssima garantia constitucional que surgiu, de modo expresso, em nosso ordenamento positivo, com a Constituição de 1934. [09]

O Ministro sustenta seu posicionamento nos ensinamentos de Araken de Assis, para o qual

Aberta a janela, sob o pretexto de observar equivalentes princípios da Carta Política, comprometidos pela indiscutibilidade do provimento judicial, não se revela difícil prever que todas as portas se escancararão às iniciativas do vencido. O vírus do relativismo contaminará, fatalmente, todo o sistema judiciário. [10]

e Nelson Nery Júnior e Rosa Maria De Andrade Nery, para os quais

Coisa julgada material e Estado Democrático de Direito. A doutrina mundial reconhece o instituto da coisa julgada material como ‘elemento de existência’ do Estado Democrático de Direito (...). A ‘supremacia da Constituição’ está na própria coisa julgada, enquanto manifestação do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF 1.º ‘caput’), não sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo de qualquer outro instituto constitucional. [11]

Assim, para o Ministro não há que se cogitar relativização da coisa julgada, porquanto esta garantia constitucional é decorrente do Estado Democrático de Direito vigente no Brasil, sendo, para ele, correto o repúdio que alguns autores fazem sobre a desconstituição da coisa julgada por regras legais que não a rescisória, como, por exemplo, as regras contidas nos art. 475-L, §1º e 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil. [12]

Em notas conclusivas, pondera o Ministro:

[...] parece-me que a coisa julgada é uma importante garantia fundamental e, como tal, um verdadeiro direito fundamental, como instrumento indispensável à eficácia concreta do direito à segurança, inscrito como valor e como direito no preâmbulo e no ‘caput’ do artigo 5º da Constituição de 1988. A segurança não é apenas a proteção da vida, da incolumidade física ou do patrimônio, mas também e principalmente a segurança jurídica.

[...] A segurança jurídica é o mínimo de previsibilidade necessária que o Estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas quais pode travar relações jurídicas válidas e eficazes.

[...] A coisa julgada é, assim, uma garantia essencial do direito fundamental à segurança jurídica.

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Diz ainda:

Com essas premissas, parece-me claro que a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade em controle concentrado de normas pelo Supremo Tribunal Federal não deve ter nenhuma influência sobre anteriores sentenças transitadas em julgado que tenham fundamento em entendimento contrário ao do STF sobre a questão constitucional.

A segurança jurídica, como direito fundamental, é limite que não permite a anulação do julgado com fundamento na decisão do STF. O único instrumento processual cabível para essa anulação, quanto aos efeitos já produzidos pela sentença transitada em julgado, é a ação rescisória, se ainda subsistir o prazo para a sua propositura. [13]

Critica a promulgação do parágrafo único do art. 741 do Código de Processo Civil, pois diz que foi regra importada do direito alemão, mas importada de modo precário, porquanto na legislação alienígena os efeitos pretéritos da coisa julgada são preservados [14].

Trouxe precedente do próprio Supremo Tribunal Federal no sentido de que a coisa julgada somente pode ser desconstituída via ação autônoma de impugnação (leia-se rescisória) e, portanto, negou provimento ao recurso que analisara nos termos da ementa já transcrita.


III – POSICIONAMENTO DOUTRINÁRIO E JURISPRUDÊNCIAL E PARALELO ENTRE O DIREITO PENAL

A despeito da decisão acima apresentada trazer por si só um substancial aparato doutrinário e jurisprudencial, cumpre tecer alguns breves comentários.

A doutrina e jurisprudência ainda não são pacíficas ao tratar do tormentoso tema da relativização ou desconstituição da coisa julgada, a começar sobre a terminologia empregada.

Conforme ensinamento de José Carlos Barbosa Moreira, o que se tem chamado de relativização da coisa julgada material ou coisa julgada inconstitucional merece "reservas de ordem terminológica" [15].

Não há como tecer maiores comentários sobre o assunto de ordem terminológica, até pelo objetivo de simplificar o presente trabalho, de modo que o fato foi exposto somente com o fito de demonstrar tamanha a discussão que se tem sobre a relativização da coisa julgada.

Com efeito, tese a respeito da relativização ou desconstituição da coisa julgada deu-se com maior afinco em relação às questões atinentes à paternidade, notadamente pelo advento do exame de DNA.

Nesses casos ponderou-se que a coisa julgada não pode fazer do preto branco, ou seja, do não pai, pai.

Cristiano Chaves de Farias, ao expor a relevância da verdade real nas ações sobre direitos indisponíveis, vendo no processo um instrumento para o alcance da justiça, diz que "a velha assertiva de que o direito processual civil se contentava com a verdade formal está definitivamente superada". [16]

Expõe o doutrinador, ser as ações de reconhecimento de paternidade uma das questões que sublevou as discussões sobre a relativização da coisa julgada, notadamente com o advento do exame de DNA (ácido desoxirribonucléico), o qual proporciona uma certeza sobre as questões de paternidade, pois a dignidade da pessoa humana se revela fundamento da República, de modo que:

Não se pode olvidar que a dignidade da pessoa humana, insculpida como motor de propulsão da nova ordem jurídica (art. 1º, III, CR), impõe uma nova visão da filiação, uma vez que confere a todos o direito à vida digna, iniciada, por evidente, pela inserção em um ambiente familiar. Assim, tornou-se inadmissível qualquer vedação ou restrição aos direitos fundamentais do cidadão, ressaltando o caráter absoluto da dignidade do homem. [17]

Assim, tem-se que, apesar de existir uma decisão transitada em julgado reconhecendo que Tício não é pai de João, havendo a prova realizada mediante o exame de DNA atestando que Tício é pai de João, para alguns, a situação anterior não pode subsistir, nem mesmo se passado o prazo para rescisória.

Com maior amplitude o mestre Cândido Rangel Dinamarco defendeu em seu artigo não ser tolerável em uma ordem constitucional o fato de se eternizar injustiças a pretexto de não eternizar litígios, para tanto, ponderou que a tese da relativização "propõe-se apenas um tratado extraordinário destinado a situações extraordinárias com o objetivo de afastar absurdos, injustiças flagrantes, fraudes e infrações à Constituição". [18]

Ainda, em consonância com a doutrina acima apresentada, Tereza Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina afirmam que em virtude da função instrumental do processo, não se pode conceber que haja uma distancia vultosa entre a realidade real e a criada no processo, sendo assim, as sentenças inconstitucionais que acolhem pedidos inconstitucionais não transitam em julgado. [19]

Em outra corrente, Luiz Guilherme Marinoni propõe-se contra a desconsideração da coisa julgada e afirma que nos casos relativos ao exame de DNA, há, na verdade, uma prova (documento) nova que legitima a propositura da ação rescisória e, sobre o lapso de dois anos, aduz o doutrinador que deve ser considerado da ciência da parte vencida da existência do aludido exame [20].

Destaca Marinoni não se tratar de balancear a coisa julgada com a dignidade da pessoa humana, mas ter-se em mente a existência de um documento novo, isto é, uma nova forma de prova, fato que legitima a propositura da ação rescisória. [21]

Afirma que "a falta de critérios seguros e racionais para a ‘relativização’ da coisa julgada material pode, na verdade, conduzir à sua ‘desconsideração’, estabelecendo um estado de grande incerteza e injustiça". [22] Conclui seu estudo aduzindo:

Está claro que as teorias que vêm se disseminando sobre a relativização da coisa julgada não podem ser aceitas. As soluções apresentadas são por demais simplistas para merecerem guarida, principalmente no atual estágio de desenvolvimento da ciência do Direito e na absoluta ausência de uma fórmula racionalmente justificável que faça prevalecer, em todos os casos, determinada teoria da justiça. [...] É óbvio que uma teoria que conseguisse fazer com que todos os processos terminassem com um julgamento justo seria a ideal. Mas, na sua falta, não há dúvida de que se deve manter a atual concepção da coisa julgada material. [23]

O tema é tormentoso e, como se viu, gera discussão dos mais renomados nomes do Processo Civil brasileiro. Há, no caso, um conflito de bens juridicamente relevantes. De um lado, pela não mitigação da coisa julgada existe a segurança jurídica como um dogma e via conseqüência, o próprio Estado Democrático de Direito. Do outro, pela relativização da coisa julgada, tem-se a justiça, fim precípuo do Direito, a dignidade da pessoa humana, a proporcionalidade e a razoabilidade, entre outros princípios e diretrizes constitucionais.

A jurisprudência também não se entende, pois há casos em que se conhece a tese da relativização e existem casos em que ela é totalmente rechaçada, seguem dois exemplos contrapostos, o primeiro do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul e o segundo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA – PROTOCOLO INTEGRADO – INTEMPESTIVIDADE NÃO CONFIGURADA – OFENSA À COISA JULGADA – POSSIBILIDADE DE ENRIQUECIMENTO ILÍCITO – TEORIA DA RELATIVIZAÇÃO – APLICADA – IMPROVIDO. O protocolo do recurso por meio do sistema integrado é válido para aferimento da tempestividade. Em prevalência do império da Justiça admite-se a aplicação da Teoria da Relativização da Coisa Julgada (AGRAVO DE INSTRUMENTO, 2007.006441-4, D.J. 01, 17.7.07).

PROCESSUAL CIVIL. COISA JULGADA. RELATIVIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. NULIDADE DA SENTENÇA. INOCORRÊNCIA. 1) Não se verifica a nulidade da sentença quando esta analisa exata e suficientemente a matéria versada no feito, decidindo dentro dos limites da lide, ainda que parte da fundamentação não guarde relação com os autos. 2) Não obstante a profunda divergência doutrinária a respeito da relativização atípica da coisa julgada, sopesando-se os valores contidos nos posicionamentos conflitantes (justiça para os que defendem a relativização vs. segurança para os contrários a ela), deve este prevalecer, porquanto relativizar a coisa julgada resultaria, na prática, na própria extinção desta, exterminando-se, de modo absoluto, a tão almejada segurança jurídica construída ao longo dos anos e refletida na coisa julgada, em face de um conceito de justiça que ainda não conseguiu ser definido pela ciência jurídica. PRELIMINAR REJEITADA. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível, 70018859785, D.J. 17.9.08, p. 33).

Perceba, o tema é substancialmente infausto, pois altera-se um dogma importantíssimo do ordenamento jurídico capaz de obstar a manutenção das demandas e eternização dos conflitos, proporcionando segurança jurídica e paz social.

Todavia, faz-se a indagação: há paz social na perpetuação da injustiça?

No direito penal há a coisa julgada e, por conseguinte, a imutabilidade de seus efeitos.

Entretanto, possibilita a legislação infraconstitucional penal a mitigação da coisa julgada na medida em que os efeitos da decisão passada em julgado pode ser obstados e a decisão rescindida. É o que se nota no artigo 621 do Código de Processo Penal.

Cumpre a transcrição do dispositivo legal:

Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida:

I - quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos;

II - quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;

III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena. [24]

Entenda, a Lei Adjetiva Penal possibilita, sem a estipulação de prazo, a revisão de processos findos nos casos de sentenças condenatórias contrárias ao texto expresso da lei ou à evidência dos autos, fundada em provas comprovadamente falsas ou quando há prova nova.

Sobre a revisão criminal, Paulo Rangel expõe:

[...] certeza jurídica e estabilidade social são duas vertentes que fundamentam uma decisão judicial. Entretanto, estas duas vertentes só podem ser alcançadas se houver a impossibilidade de, uma vez transitada em julgado, esta decisão ser revista, salvo nos casos expressamente previstos em lei, pois a máxima res judicata pro viritate habetur não pode nem deve ter valor absoluto, principalmente em matéria criminal, se a decisão for condenatória. [25]

Verifica-se que o doutrinador não deixa de reconhecer a importância da coisa julgada, mas sustenta que isto não legitima que lhe seja fornecido caráter absoluto.

Ainda, vige no Direito Penal, até por conta do mandamento constitucional (Art. 5º, XL, Constituição Federal de 1988 [26]), o princípio da retroatividade da lei mais nova, benéfica ao réu, mesmo existindo sentença penal condenatória transitada em julgado.

A propósito, confira: "A retroatividade da lei mais benigna é uma das garantias individuais consagradas na CF (art. 5º, XL) e no CP (art. 2º)." [27].

Nesse aspecto, funciona também a figura do abolitio criminis, segundo a qual o próprio Juízo da execução penal deve decretar de ofício (art. 66, I, da Lei 7.210/84 [28]).

Por conseguinte há no processo penal uma maior flexibilização ou relativização da coisa julgada, tudo por meio de leis que por sua vez são plenamente aplicadas.

Assim, verifica-se um transtorno doutrinário e jurisprudencial no campo do processo civil no que tange à relativização da coisa julgada, de modo que há quem diga que sentenças inconstitucionais são inexistentes ou ineficazes, podendo ser desconstituídas e há quem as considere existentes e eficazes.

No campo penal o tema é menos tormentoso, de modo que a decisão transitada em julgado poderá ser revista nos casos legais e quando há modificação legislativa que beneficie o réu.

Assim, há dissonância de pensamento cível e penal, o que será abordado na conclusão do trabalho.

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Sobre o autor
Luiz Felipe Ferreira dos Santos

Advogado. Sócio do Escritório Souza, Ferreira e Novaes. Mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos mantido pela Instituição Toledo de Ensino - ITE/Bauru e integrante do Grupo de Pesquisa “Tutela Efetiva de Direitos Coletivos” liderado pelo Professor Pós-Doutor Rui Carvalho Piva no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do Centro Universitário de Bauru/SP mantido pela Instituição Toledo de Ensino. Pós Graduado em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Pós Graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Faculdade Prof. Damásio de Jesus. Graduado em Direito pela Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Luiz Felipe Ferreira. Relativização da coisa julgada.: Julgamento do RE 594.350/RS. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2925, 5 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19478. Acesso em: 19 abr. 2024.

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