Para compreender o significado das normas concorrenciais e definir o seu âmbito de atuação deve-se, primeiramente, buscar o sentido que essas normas indicam, o que constitui um dos pontos mais discutidos da teoria econômica em matéria antitruste.
Para adentrar a análise do sistema da lei concorrencial brasileira cabe, primeiramente, tecer comentários sobre a discussão acima mencionada.
Calixto Salomão [01] contrapõe duas teorias (Escola de Chicago X Escola Ordo-Liberal), enquanto Paula A Forigioni [02] busca a análise da discussão contrapondo a Escola de Harvard à Escola de Chicago. Para maior compreensão do tema, todas essas Escolas serão devidamente identificadas a seguir.
A Escola de Harvard sustenta a concorrência buscada como um fim em si mesma, mantendo, assim, o regular funcionamento do mercado:
devem ser evitadas excessivas concentrações de poder no mercado, que acabam por gerar disfunções prejudiciais ao próprio fluxo das relações econômicas. (...) O modelo de concorrência que se propugna implica a manutenção ou incremento do número de agentes econômicos no mercado, sendo a concorrência buscada como um fim em si mesmo. Dessa forma, mantém-se a estrutura pulverizada, evitando-se as disfunções no mercado, [03]
Em oposição à tese exposta, encontra-se a Escola de Chicago, uma das principais doutrinas a respeito da indicação do sentido das normas concorrenciais. Indica essa escola que a existência das normas concorrenciais busca a maximização da eficiência, ou seja, busca a habilidade de produzir a custos menores e, assim, reduzir o preço ao consumidor. Portanto, para essa teoria, o único princípio norteador do direito antitruste passa a ser a proteção do bem-estar do consumidor (não visa a manutenção do regular funcionamento do mercado).
Esta situação de bem-estar do consumidor é identificada por meio da utilização da "teoria microeconômica neoclássica" ou "teoria marginalista" [04], reduzindo a satisfação à obtenção do menor preço ao consumidor, de modo a desconsiderar outros fatores que influenciam na satisfação .
Presume, no entanto, que sempre haja distribuição equitativa aos consumidores, dos benefícios obtidos pelas empresas, ou seja, parte do pressuposto de que o monopolista divide o seu lucro com o consumidor o que, por se mostrar irreal na prática, passa a ser o seu principal ponto de contestação por outras correntes.
A maior contestação a esta doutrina é desenvolvida pela Escola Ordo-Liberal (ou Escola de Freiburg) [05]. Para essa escola, a competição é fundamental para garantir o funcionamento econômico de uma economia de mercado, de modo que deve ser protegida.
Mas essa proteção da concorrência é vista, pelos ordo-liberais, sob a perspectiva não só do empresário concorrente, como também na perspectiva do consumidor. Isso porque, o bem-estar do consumidor estaria configurado, diferentemente do que afirmava a Escola de Chicago, na sua liberdade de escolha entre várias opções diferenciadas.
Com efeito, uma das críticas traçadas pela Escola Ordo-liberal é o conceito teórico de bem estar do consumidor que, na prática, não seria factível. Ademais, outra crítica traçada é no sentido de imputar às normas concorrenciais um sentido predeterminado (como o caso da eficiência para a Escola de Chicago). De fato, o sistema concorrencial é dotado de imprevisibilidade, notadamente em razão da transmissão de informações e existência de liberdade de escolha.
Defende, portanto, que fundamental para esse processo de escolha é a pluralidade real ou potencial de escolha entre produtos, qualidades, preços, etc. Por isso, a identificação da existência do poder econômico, para os ordo-liberais, dá-se pela verificação ou não de barreiras à entrada de novos competidores no mercado.
Analisadas, em linhas gerais, as grandes teorias desenvolvidas sobre o sentido indicado pelas normas concorrenciais, passa-se a análise do sistema concorrencial brasileiro.
O sistema adotado pela Lei 8884/94 é um sistema hibrido, que aproveita parte do conteúdo do sistema europeu (no que tange à caracterização do ilícito pelo objeto ou pelo efeito [06]) e parte do conteúdo do sistema estadunidense [07] (quanto à tipificação dos atos), sem assemelhar-se de forma integral a qualquer um deles. É um sistema peculiar.
No sistema brasileiro, para a configuração da ilicitude do ato, os efeitos podem ser somente potenciais, sem a necessidade de seu alcance para o sancionamento da prática.
Além disso, nos termos da redação do art. 20 da Lei nº 8884/94, conclui-se pela desnecessidade, no sistema brasileiro, de que haja posição dominante para determinar a existência de infração à ordem econômica. A caracterização da posição dominante assumirá relevância, somente em algumas ocasiões, tais como a determinação dos agentes que devem ser responsabilizados e para fins de aplicação do art. 54 do mesmo diploma legal.
Não impõe a lei, por fim, forma própria do ato para a configuração do ilícito. De fato, os atos combatidos são aqueles "de qualquer forma manifestados", de modo que pode estar configurado em uma simples troca de informações, carta de intenções, etc. Serão vedadas práticas ainda que não possam ser consideradas jurídicas, ou seja, ainda que não produzam ou possam produzir qualquer efeito juridicamente vinculante.
A LEI Nº 8884/94 E OS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO À CONCORRÊNCIA
Prevê o "caput" do art. 174 da CF a imposição de limites ao exercício da livre-iniciativa. Contudo, referida previsão se dá de forma genérica cabendo ao legislador ordinário determinar a responsabilização penal, civil e administrativa dos agentes econômicos que pratiquem condutas que comprometam a livre-concorrência.
Conforme já mencionado, a repressão penal concentra-se na definição e punição dos crimes de concorrência desleal (art. 178 do Decreto-Lei n. 7.903/45); a repressão civil decorre da responsabilização genérica prevista pelo Código Civil; e da repressão administrativa cuida, atualmente, a Lei nº 8.884/94, que trata da infração contra a ordem econômica e estabelece mecanismos jurídicos para combater o abuso do poder econômico [08].
Tendo o presente trabalho o objetivo de analisar a atuação estatal por meio do CADE para a proteção da defesa da concorrência, importa analisar apenas a última esfera de repressão (repressão administrativa)
A Lei nº 8884/94 prevê a existência, na esfera administrativa, de três "órgãos de proteção" à concorrência:
1- CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).
O CADE, Conselho Administrativo de Defesa econômica foi criado pela lei 4137/62, na qualidade de simples órgão administrativo. A Lei atual, visando conferir maior estrutura e celeridade ao órgão, atribuiu-lhe natureza autárquica. Além disso, a Lei refere-se ao CADE como "órgão judicante com jurisdição em todo o território nacional" atribuindo-lhe, portanto jurisdição administrativa. Neste sentido, grande parte da doutrina confere-lhe função quase-judicial. Contudo, afora algumas peculiaridades derivadas desta função judicante, os atos emanados pelo Conselho possuem natureza administrativa, sendo as sanções aplicadas desta mesma índole (ou seja, administrativa). É, assim, órgão pertencente ao Poder Executivo, vinculado ao Ministério da Justiça.
O CADE é a última instância, na esfera administrativa, responsável pela decisão final sobre a matéria concorrencial. É auxiliado pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae/MF) e/ou pela Secretaria de Direito Econômico (SDE/MJ).
2- SDE (Secretaria de Direito Econômico)
A Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, órgão da administração direta, auxilia os trabalhos do Conselho, em matéria investigatória e preparatória do julgamento da autarquia. Além dessa atribuição, atua a Secretaria em função "fiscalizatórias da prática do mercado, como órgão orientador em matéria de infração econômica e como órgão da Administração direta federal, para adoção de medidas referentes às infrações econômicas" [09]
3- SEAE (Secretaria de Acompanhamento Econômico)
A Secretaria de Acompanhamento Econômico é órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, com função consultiva. Sua atuação no processo administrativo justifica-se em virtude da harmonização que deve ser verificada entre a repressão da infração à ordem econômica e à política econômica do governo.
ATUAÇÃO DO CADE
A atuação do CADE pode ser dividida em duas esferas: atuação preventiva e atuação repressiva. A primeira delas corresponde aos atos de concentração (nos moldes do art. 54, §3º ) e a segunda, aos ilícitos anticoncorrenciais previstos (cooperação entre agentes) nos art. 20 e 21.
O papel preventivo corresponde basicamente à análise dos atos de concentração, ou seja, à análise das operações de fusões, incorporações e associações de qualquer espécie entre agentes econômicos. Este papel está previsto nos artigos 54 e seguintes da Lei 8.884/94.
Os atos de concentração não são ilícitos anticoncorrenciais, mas negócios jurídicos privados entre empresas. Contudo, o Cade deve, nos termos do artigo 54 da Lei nº 8.884/94, analisar os efeitos desses negócios, em particular, nos casos em que há a possibilidade de criação de prejuízos ou restrições à livre concorrência, que a lei antitruste supõe ocorrer em situações de concentração econômica acima de 20% do mercado de bem ou serviço analisado, ou quando uma das empresas possui faturamento superior a R$ 400 milhões no Brasil. Caso o negócio seja prejudicial à concorrência, o Cade tem o poder de impor restrições à operação como condição para a sua aprovação, como determinar a alienação total ou parcial dos ativos envolvidos (máquinas, fábricas, marcas, etc), alteração nos contratos ou obrigações de fazer ou de não fazer.
(...)
O papel repressivo corresponde à análise das condutas anticoncorrenciais. Essas condutas anticoncorrenciais estão previstas nos artigos 20 e seguintes da Lei nº 8.884/94, no Regimento Interno do Cade e na Resolução 20 do Cade, de forma mais detalhada e didática. Nesse caso, o Cade tem o papel de reprimir práticas infrativas à ordem econômica, tais como: cartéis, vendas casadas, preços predatórios, acordos de exclusividade, dentre outras.
É importante ressaltar que a existência de estruturas concentradas de mercado (monopólios, oligopólios), em si, não é ilegal do ponto de vista antitruste. O que ocorre é que nestes há maior probabilidade de exercício de poder de mercado e, portanto, maior a ameaça potencial de condutas anticoncorrenciais. Tais mercados devem ser mais atentamente monitorados pelos órgãos responsáveis pela preservação da livre concorrência, sejam eles regulados ou não. [10]
Para melhor análise da atuação, o estudo será iniciado pela esfera repressiva para, após, ser analisada a preventiva.
CONTROLE REPRESSIVO
A atuação do CADE, no controle repressivo, consiste sinteticamente em dois procedimentos principais: 1 – a verificação da existência da infração econômica, de acordo com a tipificação trazida pela Lei nº 8884/94; 2 – a imposição de penalidades previstas na lei aos agentes que praticarem referidas infrações [11].
Portanto, é comum neste tipo de análise, a doutrina especializada dividir essa atuação do CADE em uma atuação vinculada num primeiro momento, e discricionária quando da imposição da penalidade:
na tipificação das infrações contra a ordem econômica, o CADE exerce uma competência vinculada; mas, discricionariamente, o Plenário pode atenuar ou mesmo deixar de aplicar sanção, se a infração produziu efeitos benéficos à economia [12].
Passemos, então, a tratar da primeira dessas atribuições (tipificação da conduta) para, posteriormente, analisar a atuação estatal quanto ao seu sancionamento.
TIPIFICAÇÃO DAS INFRAÇÕES CONTRA A ORDEM ECONÔMICA
A tipificação da infração contra a ordem econômica, nos termos definidos por Calixto Salomão [13], é composta por dois momentos distintos: primeiramente, cumpre verificar a existência ou não do poder econômico (critério de identificação); num segundo momento, deve-se analisar a ilicitude ou não da conduta praticada (critério de sancionamento). Tipificada a conduta, tem-se a existência de infração contra a ordem econômica.
Essa tipificação, conforme já mencionado, configura uma competência vinculada exercida pelo CADE, de modo que não pode considerar infração o que o legislador não tipificou como tal, do mesmo modo que não poderá afirmar pela não existência de infração quando a conduta praticada tiver sido descrita pelo legislador como infratora.
Critérios de identificação do poder econômico
Existem diversos critérios de mensuração do poder econômico que, conforme a doutrina de Calixto Salomão [14], podem ser reunidos em dois grupos diversos:
1- formas de determinação não baseadas na definição de mercado;
2- formas de determinação baseada na definição do mercado.
Os critérios do primeiro grupo (formas de determinação não baseadas na definição de mercado) "procuram mensurar o poder de mercado a partir de uma verificação direta da existência de sobrepreço típico de monopólio" [15], o que poderá ser realizado de diversas formas (derivando diretamente do sobrepreço monopolista, da chamada curva de demanda residual, da existência de discriminação de preços entre consumidores ou, ainda, da existência de lucros abusivos).
O fundamento dessa primeira forma de determinação está na verificação de comportamentos a partir dos quais imagina-se ser possível inferir ou mensurar aumento de preços para níveis de monopólio. Calixto Salomão, ao expor referida forma, traz à baila a crítica no sentido de que esta reduz o comportamento monopolista exclusivamente ao aumento de preços, o que a torna de pouca utilidade quando esse aumento não é praticado (ou seja, o agente detentor do poder, podendo aumentar os preços, não o faz), ou não é comprovável.
Dos critérios que compõe o primeiro grupo, merece destaque o aumento arbitrário de lucros, expressamente adotado pelo legislador brasileiro (art. 20, III da Lei 8884/94), a ser analisado mais adiante.
A segunda forma de determinação, por sua vez, leva em conta a existência de poder no mercado na medida em que, identificado o que vem a ser o "mercado relevante", passa a verificar o comportamento dos agentes neste, aferindo a existência de controle ou não. É o critério adotado pelo sistema brasileiro (artigos, 20, § 3º e 54, § 3º da Lei 8884/94), a ser analisado no próximo item.
Paula Forgioni, a fim de determinar a existência da posição dominante, afirma: "a diferença entre um mercado concentrado e um mercado competitivo é apenas uma questão de grau" [16]. Após, elenca alguns critérios indicativos de sua existência, a saber:
1- Critério da parcela do mercado: é o critério mais utilizado pelas autoridades antitrustes, uma vez que constitui forte indício sobre a existência, ou não, de posição dominante. Isso porque, "há uma aproximação quase intuitiva da parcela de mercado detida pelo agente econômico e o poder dela derivado" [17]. No caso da lei brasileira, este critério encontra-se determinado pelo §3º do artigo 20 da Lei 8884/94, a ser analisado no próximo item.
2- Critério da ausência de concorrência potencial e existência de barreiras à entrada de novos agentes econômicos. Esse critério fundamentação do fato de que a ausência de concorrentes atuais ou potenciais revela uma independência tal do agente, que permite uma atuação potestativa.
Embora detentor de parcela significativa do mercado (segundo o primeiro critério), por vezes o agente se vê impossibilitado de atuar em comportamento típico monopolista, em virtude de uma concorrência potencial [18] naquele mercado ou mesmo de uma "capacidade ociosa" dos demais agentes econômicos.
3- Comportamento ou dependência dos consumidores e/ou dos fornecedores. O baixo grau de intercambialidade entre o produto produzido pelo agente e outro similar, que pode decorrer da insatisfação do consumidor em relação ao similar ou de sai fidelidade em relação ao determinado produto, também poderá levar à existência de poder econômico. Importante ressaltar que Calixto Salomão [19] também dá destaque à inexistência desta intercambialidade, referindo-se aos substitutos da demanda e da oferta tanto no que tange ao mercado relevante geográfico, como no tocante ao mercado relevante material. Esta situação também será analisada à luz da legislação antitruste brasileira.
4- Outros critérios: além dos critérios já esmiuçados, destacam-se também a potência econômica da empresa (grandes conglomerados com disponibilidade interna de recursos ou facilidade de captação financeira), estrutura avançada da empresa (nos casos de controle de várias ou todas as fases do processo de produção ou distribuição de um produto), a existência de vantagens tecnológicas (configurada no domínio da tecnologia que as outras empresas, por qualquer razão, não têm acesso), etc.
Para a legislação brasileira, (art. 20, § 2º da Lei n º 8884/94) "ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente ou financiados de um produto, serviço ou tecnologia a ela relativa".
Critério de sancionamento do poder econômico (Abuso do poder econômico)
O poder econômico, exercido de forma legítima, não é e nem poderia ser reprimido pela Constituição Federal [20]. Mas o seu exercício deve ser calcado no interesse maior da sociedade.
Assim, a Constituição determina seja reprimido o abuso deste poder econômico. Necessário se faz, então, determinar qual o limite encontrado entre o uso e o abuso do poder econômico, a fim de encontrar, assim, o objeto da legislação antitruste.
Conforme acentua Cristiane Derani:
o uso do poder econômico é o uso livre de um capital. E o abuso deste poder econômico é o uso livre deste capital que resulta na exclusão de outros agentes econômicos, os quais, apesar de deterem um capital, não podem competir, porque o capital é inferior à quantidade ou a qualidade. [21]
O que será importante para traçar o limite entre a conduta lícita e a ilícita do agente detentor do poder econômico é a finalidade, o propósito dos atos praticados. Parte-se, então, de um conceito finalístico de "abuso de poder econômico":
O conceito de abuso do poder econômico é finalístico, pois se forma de uma irregular conduta das empresas privadas na tentativa de desviar as regras normais do mercado econômico, objetivando com isto a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros [22].
Pode-se afirmar, então, que a Constituição e a Lei almejam é impedir a posição monopolista de determinados agentes econômicos, estando este comportamento configurado não no fato de ser o único a atuar no mercado, mas na possibilidade de atuação independente e indiferente em relação ao comportamento dos demais agentes. Essa atuação irregular no mercado, levaria à sujeição dos demais empresários, de forma que o agente detentor do poder econômico passaria a ditar as "regras do jogo" (as regras do mercado) de forma unilateral, da forma que melhor lhe convier, neutralizando as forças normais que regeriam o mercado [23].
Pois bem. Falar em abuso de posição econômica é falar, nos termos utilizados pela Lei nº 8884/94, em infração contra a ordem econômica.
E a Lei nº 8884/94 tratou "das infrações da ordem econômica" em seu Título V, reservando o Capítulo II para a determinação e tipificação das infrações. Este capítulo é composto por dois artigos em vigência (artigos 20 e 21, tendo o artigo 22 sido vetado) [24].
A caracterização da infração contra a ordem econômica é feita pela indispensável conjugação destes dois dispositivos. Deste modo, a conduta tipificada no artigo 21 somente será tida por ilícita (ter-se-á, portanto, o abuso do poder econômico) se o seu efeito, efetivo ou potencial, estiver previsto no artigo 20, ou seja, se a conduta praticada nos termos do artigo 21 resultar em dominação de mercado, eliminação da concorrência ou aumento arbitrário de lucros.
Conforme acentua Fábio Ulhoa Coelho, esta previsão encontra-se em plena consonância à previsão constitucional, que determinou a repressão de condutas que vise determinados efeitos lesivos às estruturas do mercado [25].
E continua o referido autor:
Em suma, a caracterização da infração contra a ordem econômica é feita já pelo texto constitucional (art. 173, §4º), reproduzido no art. 20 da lei. O elenco de condutas apresentados pelo art. 21 é mera exemplificação dos instrumentos mais comumentes utilizados no abuso do poder econômico, e por certo não esgotam todas as possibilidades de condutas empresariais lesivas às estruturas do livre mercado. [26]
Passa-se, então, a analisar cada um dos efeitos previstos no art. 20:
a- Prejuízo à livre iniciativa e à livre concorrência:
O inciso primeiro revela a repressão aos atos que visem limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência e a livre iniciativa. Trata-se de um inciso que reprime as condutas que barrem total ou parcialmente o acesso de outros empreendedores à atividade produtiva em questão ("limitar"); reprime atos tendentes a ocultar práticas restritivas, por meio de atos ou contratos simulados ("falsear") ou a prática de qualquer outro ato lesivo às estruturas do mercado ("prejudicar").
b- Domínio de mercado relevante
Para delinear os contornos impostos pelo inciso II, necessário se faz determinar o que o ordenamento brasileiro identifica como "mercado relevante" [27] para, após, verificar o seu domínio.
O mercado relevante é aquele em que se travam as relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento está sendo analisado... A partir do momento em que o texto normativo faz menção à restrição da "concorrência", para a caracterização do ilícito devemos determinar de qual concorrência estamos tratando. [28]
Por isso, é possível afirmar que o conceito de mercado relevante permeia todo o direito antitruste, já que determina o próprio âmbito da concorrência.
A determinação do "mercado relevante" deve tomar por critério dois aspectos fundamentais: o aspecto geográfico e o aspecto material; bem como dois elementos distintos: os substitutos do lado da demanda e do lado da oferta [29].
O mercado geográfico é a área onde se trava a concorrência relacionada à prática supostamente restritiva, é o espaço físico em que se desenvolvem as atividades. Para a sua definição devem ser considerados os eventuais substitutos do lado da oferta e do lado da demanda. Paula Forgioni [30] destaca alguns aspectos que podem determinar o mercado relevante geográfico: hábito dos consumidores (verificar se o consumidor está disposto a se afastar do local que está para adquiri-lo); incidência de custo de transporte (a diferença de valor e qualidade não é compensada pelo custo do transporte utilizado até o estabelecimento); características do produto, incentivos de autoridades locais, existência de barreiras à entrada de novos agentes econômicos (como a incidência de imposto de importação que, por vezes, fazem com que o mercado relevante estrangeiro não se confunda com o brasileiro) e taxa de câmbio (que pode prejudicar a permanência de preços competitivos).
O mercado relevante material, por sua vez, considera o bem ou serviço oferecido pelo agente e, do mesmo modo como ocorre com a determinação do mercado relevante geográfico, deverá considerar a fungibilidade ou intercambialidade dos produtos e serviços do ponto de vista do consumidor (substitutos da oferta) e do fornecedor (substitutos da demanda).
A identificação do mercado relevante é construída em cada caso em instrumental. Contudo, o desenvolvimento de atividades econômicas deve ser patrocinado por segurança e previsibilidade, de modo que o ordenamento jurídico deve traçar ao menos sinalizações do que tem-se por "mercado relevante".
O ordenamento norte-americano, por exemplo, adota o critério do "monopolista hipotético" [31]. Na Europa, por sua vez, o conceito está intimamente relacionado aos objetivos da política de concorrência da União Européia, dentre os quais se destaca a promoção da integração do mercado europeu.
No Brasil, para facilitar a análise dos atos de concentração, bem como tornar o processo mais transparente, o CADE regulamentou, por meio da Resolução CADE nº 15, de 19 de agosto de 1998, e de seu Regimento Interno, as formalidades e procedimentos desta espécie de processo, no âmbito da Autarquia. Dispõe o Anexo V da Resolução 15 do CADE:
mercado relevante do produto compreende todos os produtos/serviços considerados substituíveis entre si pelo consumidor devido às suas características, preços e utilização. Um mercado relevante do produto pode eventualmente ser composto por um certo número de produto/serviços que apresentam características físicas, técnicas ou de comercialização que recomendem o agrupamento.
A SEAE e a SDE, por sua vez, editaram, em 1º de agosto de 2001, o Guia para Análise de Atos de Concentrações Horizontais, por meio da Portaria Conjunta nº 50", dispondo:
"A definição de um mercado relevante é o processo de identificação do conjunto de agentes econômicos, consumidores e produtores, que efetivamente limitam as decisões referentes a preços e quantidades da empresa resultante da operação. Dentro dos limites de um mercado, a reação dos consumidores e produtores a mudanças nos preços relativos – o grau de substituição entre os produtos ou fontes de produtores – é maior do que fora desses limites. O teste do ‘monopolista hipotético, descrito adiante, é o instrumental analítico utilizado para se aferir o grau de substitutibilidade entre bens ou serviços e, como tal, para a definição do mercado relevante".
Mas a elasticidade do conceito revela uma certa convergência entre os critérios de identificação do ilícito e de sancionamento da conduta. Com efeito, a elasticidade do conceito no ordenamento jurídico, conforme destaca Forgioni [32], configura uma das válvulas de escape do direito brasileiro, a fim de viabilizar todo o desenvolvimento econômico.
Uma vez determinado o mercado relevante, faz-se necessário verificar se o agente que nele atua controla esse segmento da atividade econômica. Identificar essa situação significa verificar se as decisões adotadas por este agente repercute consideravelmente nas decisões dos demais agentes econômicos daquele mercado.
O §3º do art. 20 estabelece uma presunção deste controle, quando a participação deste agente for da ordem de 20%.
Referida presunção é relativa [33] o que, contudo, somente tem o condão de inverter o ônus da comprovação do domínio do mercado. Nestes termos, não é por que a participação do agente é inferior a 20 por cento que este detém o controle, da mesma forma que não é absoluta a certeza de que, detendo essa porcentagem, o agente econômico domina o mercado. Com efeito, a conseqüência deste dispositivo é determinar que cabe à autoridade administrativa comprovar o controle se o percentual for inferior a 20% e, sendo superior a esse percentual, caberá ao agente a comprovação de que não detém o controle.
c - Aumento arbitrário de lucros.
O inciso III reprime o lucro auferido de forma injustificável pelo agente, seja o lucro derivado do aumento de receita, seja o derivado de redução de custos. O lucro arbitrário, conforme define Fábio Ulhoa Coelho, é aquele "que não se justifica, sob o ponto de vista tecnológico, econômico ou financeiro". [34]
Para Calixto Salomão [35], o aumento de lucros somente pode ser considerado arbitrário quando decorre da exploração de uma situação de monopólio. Na ausência deste monopólio, ou seja, em situação de concorrência, o aumento dos lucros decorrerá de aumento da eficiência produtiva ou de alguma outra causa natural, temporária, não imputável ao agente.
Portanto, o excessivo aumento de lucro somente constituirá situação de abuso de poder (reprimível, portanto) se acompanhado de uma situação monopolística. A simples verificação deste aumento é insuficiente para a verificação do poder no mercado. Ou seja, a sua existência não revela, por si só, uma conduta ilícita, do mesmo modo que sua ausência não acarreta a conclusão de inexistência deste poder.
d - Abuso de posição dominante
O inciso IV do art. 20 não apresenta correspondente previsão no texto constitucional. Com efeito, o art. 173, § 4º delega ao legislador ordinário a repressão de abuso de poder econômico que vise "à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.".
Deste modo, conforme destacou Fabio Ulhoa Coelho, o referido inciso somente pode ser interpretado como redundante dos demais incisos previstos no art. 20, sob pena de inconstitucionalidade da previsão. Não pode, assim, ser interpretado como efeito autônomo dos demais previstos naquele artigo.