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Legitimidade e eficácia da jurisdição constitucional.

A necessária adequação ao modelo jurídico adotado

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13/07/2011 às 10:31
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4.INCOERÊNCIAS DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

Observando-se o sistema jurídico-constitucional brasileiro, constatam-se incoerências entre a jurisdição constitucional e o sistema jurídico adotado e a formação de sua magistratura.

Isto porque, no Brasil, fez-se justamente a mistura indevida entre o sistema jurídico adotado, no caso da civil law, com o modelo difuso de controle de constitucionalidade, tendo como encarregado o judiciário, e ainda se imaginando que o Supremo Tribunal Federal pode fazer o papel de efetiva Corte Constitucional.

Pela formação jurídica do magistrado brasileiro, de submissão à lei, sem margem de criação do direito, torna-se ineficaz a jurisdição constitucional pátria, não havendo a real interpretação e revitalização da ordem constitucional (ROCHA, 1995, pp. 99-102).

A situação brasileira ficou ainda mais anômala com a criação da súmula vinculante pela Emenda Constitucional n° 45/2004, posto que, com ela, retira-se por completo a independência e qualquer possibilidade criativa dos juízes quanto à interpretação e revitalização do direito (ROCHA, 2009, pp. 97-101), principalmente da ordem constitucional, tornando ainda mais incompatível o controle difuso com o sistema brasileiro.

Sendo o civil law o sistema jurídico adotado no Brasil, exige-se a criação de um Tribunal Constitucional nos moldes europeus, o que traria legitimidade e eficácia à jurisdição constitucional pátria. Um órgão constitucional diverso dos três poderes, especialmente não ligado ao Poder Judiciário, tendo natureza democrática e poder político e sociológico para efetivar o real controle da ordem constitucional e dos conflitos entre poderes, é que realmente traria legitimidade ao controle de constitucionalidade no Brasil (ROCHA, 1995, pp. 102-104; GUERRA FILHO, 2007, pp. 82,83).

No Brasil, apesar de adotado o sistema jurídico da civil law, não se optou pela criação de um Tribunal Constitucional especial, ocasionando graves distorções em sua jurisdição constitucional. O Judiciário brasileiro acumula a função judicial ordinária e extraordinária, além de assumir também, de forma difusa e concentrada, a jurisdição constitucional.

O Supremo Tribunal Federal é a Corte Constitucional brasileira, mas cujo formato não é compatível com o modelo europeu, contrariando a lógica e a solução que melhor se adequariam ao sistema jurídico adotado no país. Este órgão supremo acumula as competências extraordinária e constitucional, estando sempre assoberbado de processos, ficando impossibilitado de se especializar no aspecto constitucional. Resultado disso é a falta de efetividade e eficácia de suas decisões em matéria constitucional. Outro grave problema é a influência política danosa e a ausência de real controle sobre os conflitos constitucionais, especialmente entre os poderes, justamente por ser Tribunal componente do Poder Judiciário. Falta-lhe, portanto, legitimidade constitucional.

A legitimidade constitucional é problema de consenso, ou seja, a ordem democrática e o pluralismo, dentro de um consenso social, formam "o eixo da normatividade, o liame da juridicidade com a facticidade, o traço da união do constitucional com o real", sendo que a Constituição de um Estado é, para o cientista político, instrumento de governo na defesa efetiva dos interesses da coletividade, enquanto que, para o jurista, ela é norma (BONAVIDES, 2004, pp. 326, 327).

No entanto, especificamente no caso brasileiro, a legitimidade constitucional tem passado por graves crises no decorrer de sua história, sendo que tal situação insiste em não se afastar de sua história. Esse consenso constitucional deve existir entre os poderes estatais, sendo ele uma zona intermediária a ser ocupada e concentrada justamente num órgão democrático e independente de controle da ordem constitucional.

Ensina Paulo BONAVIDES que a crise de legitimidade constitucional no Brasil tem origem em alguns fatores, como o retardamento político; a sociedade ser patriarcal e oligárquica, que evita a democracia participativa (a exemplo da Constituinte de 1987, que deu azo à Carta Federal de 1988, que evitou "o encontro do povo com sua própria soberania"); o retardamento do processo econômico; e as dificuldades do sistema capitalista. O que há, na verdade, é uma crise constituinte, pois falta o consensus constitutionis, sem o qual não se pode falar em normatividade constitucional, sendo que a participação dos grupos sociais e do cidadão "faz parte das esferas constitucionais e fundamenta uma nova legitimidade" (BONAVIDES, 2004, pp. 328, 332, 333).

A falta de legitimidade da jurisdição constitucional brasileira, além da questão da incoerência entre o sistema jurídico adotado e da falta de participação democrática, é reforçada pela falta de independência do Judiciário.

O Poder Judiciário brasileiro, na forma como se encontra estruturado, pende mais para fomentar o anarquismo, pois sua atuação é tendenciosa para acobertar os interesses individuais. Tudo isso pelo fato de que a Constituição Federal de 1988, por não ter o constituinte observado (e continuar não observando) os fatores éticos, culturais e sociológicos do povo, deixa margem para a corrupção e para os desvios políticos. Com isso, fica comprometida a jurisdição constitucional brasileira. Esse anarquismo é resultante da falta de independência por parte dos membros do Judiciário. A independência é de extrema importância para a efetiva realização das funções judiciais. Sem ela o Judiciário será apenas um fantoche nas mãos de alguns. Tal falta de independência reflete negativa e prejudicialmente na jurisdição constitucional pátria.

Por meio de sua obra O Poder dos Juízes, Dalmo de Abreu DALLARI enfatiza que "longe de ser um privilégio para os juízes, a independência da magistratura é necessária para o povo" (2008, p. 47). Mencionando os "inimigos da magistratura independente", aborda os obstáculos à independência e os meios para conquistá-la e preservá-la, sendo incisivo em enfatizar a parcela de culpa dos próprios magistrados e a parcela de culpa dos fatores externos, estabelecidos na própria Constituição Federal. [07]

Discorrendo sobre os inimigos da independência do Judiciário, enumera as (1) ditaduras; as (2) estruturas sociais e políticas antidemocráticas, dentre elas o que ele chama de "ditaduras constitucionais", que amparam a legalidade estrita; as (3) agressões psicológicas e físicas a membros da magistratura; e a (4) conduta omissiva e comissiva de magistrados que renunciam à sua independência, sendo cúmplices, por não exercer as funções da jurisdição, especialmente de criação do Direito (DALLARI, 2008. pp. 49-55).

Discorrendo, porém, sobre o outro lado da moeda (ou verdadeira essência da moeda), DALLARI ensina sobre a corrupção no Judiciário (2008, pp. 52, 62):

O que tem havido com maior freqüência no Brasil são mais casos de corrupção de magistrados do que de violência contra eles. Os corruptores podem ser pessoas ou empresas com altos interesses econômicos dependentes de decisão judicial ou que estão celebrando contratos de elevada expressão econômica com algum órgão do Poder Judiciário, havendo também casos em que os corruptores são políticos e governantes sem escrúpulos. Neste caso a corrupção é feita, geralmente, com certa sutileza, ou por meio de homenagens que afagam a vaidade de magistrados e tribunais ou com o disfarce de colaboração recíproca no interesse público, colocando em altos cargos de governo pessoas que possam influir para abrandar ou anular os rigores legalistas da magistratura.

Na prática o que se tem visto é que muitos juizes aceitam sem revolta e até mesmo com satisfação e alívio a falta de independência, invocando como desculpa os fatores de condicionamento e limitação de suas decisões sempre que questionados.

O professor José de Albuquerque ROCHA, em suas obras Estudos sobre o Poder Judiciário e Teoria Geral do Processo, discorre acerca do quadro desse poder republicano.

Dentre outros pontos, frisa ele que a independência do Judiciário deve ser vista sob dois ângulos: a independência política e a independência administrativa. Na independência política encontra-se a própria função jurisdicional, sendo política por envolver a sua "relação com o exercício do poder estatal" e por ter a "finalidade política, qual seja, a defesa da liberdade". Acerca da independência administrativa, indica ele que a mesma se refere à capacidade de autogoverno, mas que este encontra-se "exercido pelos tribunais de maneira autocrática, o que contradiz o princípio democrático", havendo a "necessidade de democratizar o exercício do poder no interior do Judiciário a significar a participação de representantes de todos os segmentos da magistratura e da sociedade" (ROCHA, 2003, pp.108, 109).

Em adição, explicita os motivos da falta de independência funcional dos magistrados: 1) indicação política para a magistratura da União, no caso, para os tribunais superiores; e 2) "relação de subordinação administrativa entre os juízes do 1º grau e os membros dos tribunais". A questão é que "como o tribunal que administra a carreira do juiz é o mesmo que revê suas sentenças, através dos recursos, a dependência administrativa determina dependência funcional, já que ao decidir não está livre dos temores das represálias ou das expectativas dos favores daqueles que detêm o controle de sua carreira, [...]" (ROCHA, 2003, pp. 142, 143).

Neste sentido, impende enfrentar objetivamente a questão da origem desta falta de independência, cujas razões são oriundas de quatro fatores: comodismo da magistratura, autocracia,dependência financeira em relação aos demais poderes e indicação política.

No comodismo estão envolvidos a ausência de vontade e de coragem para enfrentar a realidade social e estabelecer as conquistas sociais em face dos interesses das classes mais favorecidas, que mantém o povo marginalizado e fora das esferas do poder. Nesse item está a questão do positivismo jurídico, porquanto seja do interesse dos governantes que o Judiciário não tenha forças para interpretar a lei, vivificar a lei, humanizar a lei, suplementar a lei e rejuvenescer a lei. Aqui a culpa é dos próprios magistrados que, ao serem aprovados num concurso público, acham-se endeusados e parecem desconsiderar a necessidade de estudo e aperfeiçoamento contínuo, demonstrando uma atitude omissiva.

O problema da autocracia reside na questão da promoção dos juízes de primeiro grau, que se encontra nas mãos dos tribunais, acabando por influenciar a atuação jurisdicional na instância inicial; e no fato da eleição para a presidência dos tribunais ser realizada apenas entre seus membros. O comodismo, por sua vez, encontra combustível nessa influência deslumbrante de quem manda dentro dos tribunais. [08]

Em relação à dependência financeira, esta também contribui para as nefastas influências dos outros dois poderes e da pressão sobre as decisões judiciais.

Na questão do acesso político, este é observado pela forma de ingresso a todos os Tribunais que compõem o Poder Judiciário, chegando, inclusive, ao Conselho Nacional de Justiça. O acesso aos Tribunais pela forma política inclui a via do quinto constitucional. Apesar de objetivar uma suposta democratização dos tribunais, garantindo a representatividade da Advocacia e do Ministério Público, a decisão do quinto constitucional tem o viés político, deixando suas amarras políticas sobre os indicados, retirando-lhes a independência.

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Frisando além do aspecto político do acesso, mas do elemento oligárquico e a presença da corrupção no Judiciário, ensina o professor José de Albuquerque ROCHA (1995, p. 51):

A composição dos tribunais não obedece aos procedimentos democráticos, já que seus membros são escolhidos pelo próprio tribunal. Esse modo de formação dos tribunais transforma-os em uma oligarquia, ou seja, em um pequeno grupo que governa em seu próprio nome, dominando, de forma incontrastável, o governo da instituição judiciária, sem nenhuma dependência dos demais interessados.

A experiência histórica mostra que o exercício do poder sem controle leva, fatalmente, ao seu abuso e desvio, produzindo uma séria de vícios, entre os quais aquele que, em termos muitos gerais, chamamos de corrupção, em suas inúmeras modalidades.

Os tribunais brasileiros, como entidades oligárquicas, que concentram em si todo o poder administrativo do Judiciário, não podiam fugir à regra geral do abuso e do desvio do poder. Resultado disso é a avalanche de denúncias, cada vez maior, de abusos e desvios de poder praticados pelos tribunais, evidenciando a existência de sérias distorções morais no comportamento de seus membros.

O modo como está estruturado termina por indicar que o Judiciário não se encontra apto para o exercício da jurisdição constitucional, tendo em vista seu papel na manutenção do poder nas mãos dos membros do executivo e do legislativo, bem como dos componentes dos próprios tribunais, tudo isso somado à falta de independência funcional dos juízes de primeiro grau.

Quando o trabalho judicial chega aos tribunais, verificam-se, além desse quadro, as amarras políticas e a tendência de pressionar a atuação da primeira instância. Neles aparecem a corrupção e o corporativismo.

Todo o elenco de problemas e desvios acima discorridos, que repousa sobre o Poder Judiciário pátrio, acaba refletindo na efetividade e na eficácia da jurisdição constitucional, já que esta, no Brasil, é difusa, sendo que todos os juízes podem se manifestar acerca da constitucionalidade das normas.

Ainda que o Supremo Tribunal Federal fosse o único órgão judicial a fazer o controle de constitucionalidade no Brasil, ainda assim restaria comprometida a jurisdição constitucional pátria, porquanto esta Corte Constitucional apresenta as referidas anomalias, sendo componente dos três poderes do Estado, não sendo órgão exclusivamente constitucional (no molde europeu), está comprometido politicamente e falta-lhe a necessária independência.

Tendo em vista que o sistema adotado no Brasil é o da civil law, correto seria, para que a sua jurisdição constitucional fosse legítima e eficaz, a criação de um Tribunal Constitucional nos moldes europeus: um órgão não ligado a nenhum dos três poderes estabelecidos. Não haveria a violação material da Constituição Federal, porquanto a separação dos poderes não deixaria de existir, apenas sendo criado um órgão protetor da Constituição e de arbitragem dos conflitos entre os poderes estabelecidos.

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Sobre o autor
Michel Mascarenhas Silva

Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza-UNIFOR. Advogado. Professor da Universidade Federal do Ceará-UFC, da Universidade de Fortaleza-UNIFOR e da Faculdade Sete de Setembro-FA7.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Michel Mascarenhas. Legitimidade e eficácia da jurisdição constitucional.: A necessária adequação ao modelo jurídico adotado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2933, 13 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19527. Acesso em: 12 mai. 2024.

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