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A objetivação do controle difuso.

Recorte da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e alterações legislativas

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7. O Papel do Senado Federal no controle difuso: Mutação constitucional?

Se o instituto da súmula vinculante representa o ponto máximo das alterações legislativas que compõe o fenômeno em estudo, a discussão sobre uma suposta mutação constitucional do art. 52, X da Carta Magna poderia ser considerada a vanguarda desta tendência no seio do STF.

A polêmica gira em torno do papel a ser exercido pelo Senado Federal no âmbito do controle difuso de constitucionalidade. O tema está em discussão nos autos da Reclamação de nº 4.335-5/AC, proposta pela Defensoria Pública da União em face do Juízo de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco.

Na espécie, alega-se descumprimento da decisão tomada pelo STF no HC 82.959, que afastou a vedação de progressão de regime aos condenados pela prática de crimes hediondos por considerar inconstitucional dispositivo da Lei nº 8.072/1990.

O tradicional entendimento sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no âmbito do sistema difuso vai de encontro à pretensão dos reclamantes: em tese, como se trata de declaração incidenter tantum, a eficácia do pronunciamento do Supremo estaria restrita às partes do processo na qual ocorreu. Não sendo sujeitos da relação processual que ensejou a declaração de inconstitucionalidade, não haveria que se falar em qualquer descumprimento. Para que o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal alcançasse os reclamantes, seria necessário que: a declaração houvesse sido proferida em sede de controle concentrado; ou que o Senado Federal suspendesse a execução do dispositivo legal valendo-se da competência atribuída pela Constituição em seu art. 52, X.

O julgamento segue inconcluso até o presente momento. Já houve pronunciamento de dois ministros pela não admissão da reclamação (acompanhada pela concessão de habeas corpus de ofício em relação aos reclamantes). Outros dois, Gilmar Mendes (relator) e Eros Grau, votaram pelo conhecimento e provimento do feito.

Aqui, interessa a análise dos argumentos trazidos pelos dois últimos ministros. Sustentam que o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, em seu atual estágio, permitiria o entendimento de que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo em sede de controle difuso, gozariam de eficácia erga omnes e seriam vinculantes para todos os órgãos do Poder Judiciário.

Entretanto, esbarra-se em disposição expressa da Constituição Federal:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

(...)

X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal

Se a Constituição confere ao Senado a competência para ampliar os efeitos da decisão do Supremo Tribunal, está a indicar que o constituinte não desejou que declarações proferidas incidenter tantum tivessem efeitos erga omnes.

Neste ponto, ambos os ministros defendem a ocorrência de uma suposta mutação constitucional quanto ao referido dispositivo. Assim, a fórmula insculpida no art. 52, X da Constituição Federal teria passado, segundo o Min. Eros Grau:

(...) de um texto

[compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal]

a outro texto

[compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo].

Em sede doutrinária, a semelhança do que fez em seu voto, Gilmar Mendes (2004, p. 155-156) colaciona diversas razões para embasar este entendimento:

- A amplitude conferida ao controle abstrato, pós-Constituição de 1988, que permite, inclusive, a suspensão liminar da eficácia de uma lei (e até mesmo de emenda constitucional);

- O instituto da suspensão de lei por parte do Senado Federal mostra-se inadequado para assegurar a eficácia geral de decisões do Supremo que não declaram a inconstitucionalidade da lei, mas que lhe confere tal ou qual interpretação.

- A suspensão não alcançaria, da mesma forma, as declarações de não-recepção de normas anteriores a Constituição vigente.

Estes, e outros motivos, corroborariam a inadequação do instituto diante das mudanças experimentadas pelo sistema brasileiro de maneira que "o instituto da suspensão pelo Senado assenta-se hoje em razão de índole exclusivamente histórica" (Mendes, 2004, p. 155).

Argumenta-se, ainda, que instituto da suspensão de lei pelo Senado caiu em desuso após o advento da Constituição de 1988, dado que esta Carta ampliou sobremaneira o acesso ao controle concentrado: o que deslocou o foco da atuação constitucional do STF, fazendo com que as controvérsias de maior relevância fossem apreciadas por meio das ações diretas (Mendes; Coelho; Branco 2008, p. 1082).

O mecanismo constante no art. 52, X da Carta atual foi introduzido em um contexto completamente diverso do que é vivenciado na atualidade. A importação do judial review americano, feita pela Constituição de 1891, não veio acompanhada de mecanismo que conferisse estabilidade e autoridade às decisões tomadas em sede de controle difuso. Faltava à tradição jurídica brasileira o stare decisis do common law.

A assimilação gradativa instrumentos de jurisdição constitucional concentrada alcançou seu apogeu com a Constituição de 1988 que, ao ampliar o rol de legitimados para a propositura das ações diretas, concedeu-lhe primazia dentro do sistema misto brasileiro.

Paralelamente, o controle incidental de normas teve sua eficácia reforçada pelas alterações legislativas e jurisprudenciais já mencionadas: conferindo aos pronunciamentos do STF, muitas vezes, efeitos que transcendem os limites subjetivos da lide na qual surge a controvérsia constitucional.

Sobre o tema, Streck, Oliveira e Lima (2011, p. 7) relembram que a legitimidade democrática do controle concentrado afirma-se na medida em que este permite a participação de terceiros interessados, na condição de amice curiae, abrindo a discussão da controvérsia constitucional à sociedade. No que tange ao controle difuso, comenta que:

Mas o modelo de participação democrática no controle difuso também se dá, de forma indireta, pela atribuição constitucional deixada ao Senado Federal. Excluir a competência do Senado Federal (...) significa, por fim, retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de 1988.

Relembre-se que a participação de amicus curiae em sede de recurso extraordinário, por exemplo, está restrita a algumas hipóteses como o julgamento dos recursos advindos dos juizados especiais federais e o procedimento para aferição de repercussão geral.

Ainda, o controle difuso exercido pelo STF não se restringe aos recursos extraordinários: o Supremo Tribunal Federal o exerce, incidenter tantum, em qualquer processo de sua competência e não há, nas demais classes processuais qualquer previsão de abertura do diálogo constitucional.

Outro aspecto que merece destaque é que sem qualquer abertura democrática, o efeito vinculante advindo de pronunciamentos proferidos incidentalmente fere "os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (...), pois assim se pretende atingir aqueles que não tiveram garantido o seu direito constitucional de participação nos processos de tomada da decisão que os afetará." (Streck; Oliveira; Lima, 2011, p. 7)

Ao mesmo tempo, o advento da súmula vinculante pode prejudicar a aceitação da tese de mutação constitucional do art. 52, X da Constituição Federal. Ora, o constituinte derivado colocou ao alcance do Supremo Tribunal uma ferramenta poderosíssima para que o mesmo proceda à generalização das teses jurídicas desenvolvidas pela Corte em sede de controle difuso.

Deste modo, como aceitar que uma decisão que não cumpre nenhuma das exigências trazidas pela Constituição (art. 103-A e §§) e pela Lei nº 11.417/2006 seja equiparada, quanto aos efeitos, à edição de súmula vinculante em matéria constitucional?

A Constituição previu um verdadeiro processo objetivo para a edição de súmula vinculante, com a possibilidade de participação da sociedade, quorum qualificado de dois terços dos ministros e a necessidade de várias decisões no mesmo sentido.

Estes requisitos, sobretudo os dois últimos (quorum qualificado e decisões reiteradas), parecem deixar claro que o constituinte derivado fez um juízo de valor em relação às decisões tomadas no âmbito do controle incidental. Em outras palavras, não quis que tais decisões extrapolassem os limites subjetivos da relação processual originária, senão quando cumpridos os requisitos constitucionais. Buscou a Constituição mitigar o risco de posicionamentos efêmeros advindos de maiorias eventuais e sem a devida ponderação.

Esta opinião é esposada por Lunardi e Dimoulis (2010, p. 304) bem como por Ivo Dantas (2010b, p. 204), que vêem tal argumento como decisivo, a indicar a inconstitucionalidade da pretendida mutação.

Ainda no contexto de tal argumento, relembre-se trecho do voto do Min. Eros Grau, no qual o mesmo defende a corretude da referida mutação:

Em casos como tais importa apurarmos se, ao ultrapassarmos os lindes do texto, permanecemos a falar a língua em que ele fora escrito, de sorte que, embora tendo sido objeto de mutação, sua tradição seja mantida e ele, o texto dela resultante, seja coerente com o todo, no seu contexto. Pois é certo que a unidade do contexto repousa em uma tradição que cumpre preservar [15].

Ora, como cogitar de coerência com o todo se a pretendida mutação não resiste a uma interpretação sistêmica da Constituição, conforme exposto nas linhas acima. A norma insculpida no art. 102, X conserva, assim, sua força normativa na medida em que reforça o sentido de outros preceitos constitucionais, pouco importando que o Senado Federal não faça uso de sua competência.

É necessário ressaltar que não houve, desde a promulgação da Constituição de 1988, a ocorrência de fatores sociais que alicercem a tese da mutação. Houve, no máximo, um aumento significativo da carga de trabalho do STF. Está-se diante, apenas, de "considerações de cunho utilitarista relacionadas a um desequilíbrio entre demandas de tutela e capacidade produtiva do Judiciário" (Lunardi; Dimoulis, 2010, p. 310). Tal contexto não parece autorizar o Supremo Tribunal Federal a modificar a competência atribuída ao Senado pela Carta Magna.

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8. Considerações Finais

Ao tratar da objetivação do controle difuso no Brasil, este trabalho selecionou um conjunto de alterações legislativas e jurisprudenciais. Não houve, porém, qualquer pretensão de exaustividade. Assim, por razões de escopo, não foram analisadas outras manifestações apontadas pela literatura, tais como: a ação civil pública enquanto mecanismo de controle de constitucionalidade, tendo em vista os efeitos erga omnes [16] advindos das sentenças proferidas (Mendes; Coelho; Branco, 2008, p.1092 e ss); o entendimento segundo o qual a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) pode ser dispensada, desde que exista decisão declarando a inconstitucionalidade da norma pelo plenário do STF, mesmo que incidenter tantum (Moreira, 2008, p. 44-45); e a modulação dos efeitos de decisões tomadas pelo Supremo Tribunal em sede de controle difuso, a exemplo do previsto no art. 27 da Lei nº 9.868 de 1999 (Mendes; Coelho; Branco, 2008, p.1096 e ss).

No plano do direito comparado, a rígida separação conceitual entre os modelos de controle de constitucionalidade deve ser compreendida cum grano salis. Sob uma perspectiva histórica, a completa vigência prática dos postulados teóricos que alicerçavam a bipolaridade entre os sistemas foi muito mais escassa do que se possa imaginar (Segado, 2003, p. 65). Ressalte-se, inclusive, que à época da concepção do modelo europeu, a jurisdição constitucional americana já havia flexibilizado diversos dos dogmas que a compunham inicialmente.

Ao longo da história constitucional brasileira, o sistema de controle adotado evoluiu de um paradigma puramente difuso para outro de caráter misto, no qual ambos os modelos conviviam em compartimentos estanques. Pode-se dizer que a ruptura do equilíbrio entre os sistemas assumiu seus contornos iniciais com a própria promulgação da Constituição de 1988, pois aí o modelo concentrado passou a ocupar lugar de destaque, tendo em vista a ampliação da legitimidade para propositura das ações diretas.

Por outro lado, conforme anotam Gilmar Mendes e Ives Gandra Martins (2009, p. 104), o controle concentrado não alcançava, ao menos inicialmente, certo âmbito de atuação. Assim, o direito pré-constitucional [17], a controvérsia sobre normas revogadas e o controle de constitucionalidade do direito municipal em face da Constituição, entre outros aspectos, estavam imunes ao exame por via de ação direta. Foi esse espaço o responsável, segundo os autores, "pela repetição de processos, pela demora na definição das decisões sobre importantes controvérsias constitucionais e pelo fenômeno social e jurídico da chamada ‘guerra de liminares’".

Evidenciou-se, assim, uma imperfeição latente do sistema difuso nos moldes em que foi adotado pelo Brasil: faltava-lhe um mecanismo efetivo de estabilização. Isto é, algum apto a combater a ocorrência de pronunciamentos conflitantes, notadamente após a controvérsia constitucional já ter sido analisada pelo STF.

Estas reflexões parecem indicar que o caráter misto do controle de constitucionalidade brasileiro, longe de rendundar numa coexistência harmoniosa entre os sistemas difuso e concentrado, apontava para uma convivência dialética no seio do Supremo Tribunal Federal. A propósito, a interessante lição de Lunardi e Dimoulis (2010, p. 299):

Quando a Corte Constitucional cumula as competências de controle concentrado e de atuação como última instância do controle difuso, tal como ocorre no Brasil, surge um problema de coerência. Se o ordenamento jurídico aceita que uma Corte possa eliminar de maneira inapelável e geralmente vinculante uma norma inconstitucional, como admitir que a mesma Corte com a mesma composição, quando aprecia a constitucionalidade da mesma norma como última instância do controle difuso só possa afastar sua aplicação no caso concreto? E como admitir que as instâncias inferiores possam continuar aplicando a norma declarada inconstitucional pela Corte constitucional no controle difuso, devendo essa última se pronunciar novamente e constantemente sobre a constitucionalidade.

A maioria das modificações legislativas e jurisprudenciais estudadas impactaram na disciplina processual do recurso extraordinário, reforçando a concepção deste enquanto instrumento de defesa da ordem constitucional objetivamente considerada. Isto é, desvincula-se o mesmo de pretensões subjetivas das partes, quer seja no tocante a seu juízo de admissibilidade, quer seja no âmbito da eficácia da decisão de mérito. Buscou-se, desse modo, reforçar a autoridade das decisões tomadas incidentalmente pelo STF. Não raro recorreu-se, inclusive, à recepção legislativa de institutos inspirados na prática constitucional norte-americana.

Tal recepção legislativa externa ressalta a colocação do fenômeno estudado dentro de um contexto mais amplo, qual seja o da aproximação entre as tradições jurídicas do civil law e do common law (Dantas, 2010b, p. 183; Pegoraro, 2005, p. 68).

Um exame empírico preliminar parece apontar que as reformas legislativas empreendidas tiveram um efeito positivo no acúmulo de trabalho a cargo do STF. Dados do próprio Tribunal demonstram que o número de recursos extraordinários e agravos de instrumento distribuídos, relativamente às outras classes processuais, tem diminuído nos últimos anos. Esta tendência, inclusive, inicia-se no ano de 2008, após a edição das leis que regulamentaram a súmula vinculante e a repercussão geral (STF, 2011).

Entretanto, é necessário ponderar que a diminuição do número de recursos extraordinários foi acompanhada por um sensível aumento no número de reclamações constitucionais: relembre-se que a Lei nº 11.417/2006 previu a possibilidade de ajuizamento deste remédio em face de decisão judicial ou de ato administrativo que contrariar o enunciado de súmula vinculante.

Tais números representam apenas indícios do êxito das alterações legislativas e jurisprudenciais aqui estudadas (assim como de um possível efeito colateral das mesmas). Não obstante, pode-se concluir que a aproximação entre os modelos de jurisdição constitucional é uma realidade no Brasil, que seguiu a tendência observada no direito comparado, de flexibilizar postulados teóricos em prol de uma maior efetividade e alcance do sistema.

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Sobre o autor
Mauro La-Salette Costa Lima de Araújo

Estudante de Direito da Universidade Federal de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Mauro La-Salette Costa Lima. A objetivação do controle difuso.: Recorte da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e alterações legislativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2932, 12 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19529. Acesso em: 19 abr. 2024.

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