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A punição perpétua pela estigmatização social.

A exigência de atestado de antecedentes para contratação em empresa privada na região de Criciúma (SC)

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RESUMO

Trata-se de pesquisa doutrinária, legislativa e de caráter indutivo desenvolvida em estágio na 6ª Delegacia Regional da Policia Civil de Criciúma no período de 2010/2011. Objetiva-se evidenciar a afronta aos princípios constitucionais e penais, ressaltando a garantia da não estigmatização, sendo somente do Estado a competência punitiva dos que atentam contra a legislação e na medida de suas proporções. Havendo proibição constitucional de punição perpétua, além da vedação legislativa de fornecimento de informações penais sem autorização judicial, bem como sigilo quanto às informações de cometimento de ato infracional por crianças e adolescentes, enfatizando que exigir do cidadão uma certidão de "boa conduta" para emprego em empresa privada é alimentar a estigmatização social.

Palavras chave: Princípios constitucionais; Competência punitiva; Estigmatização social.

RESUMEN

Es una investigación de carácter doctrinal, legislativo e inductivo desarrollado en la 6ª División Regional de la Policía Civil de Criciúma en el período 2010/2011. Su objetivo es destacar la afrenta a los principios constitucionales y penales, haciendo hincapié en la garantía de la no estigmatización, ya que es solo del Estado la jurisdicción para castigar a quienes que violan la ley y en la medida de sus proprorciones. Habiendo prohibicion constitucional de la pena perpetua, además de la junta legislativa de proveer de inteligencia criminal, sin autorización judicial, y la confidencialidadde la información sobre la comisión de los delitos cometidos por niños y adolescentes, haciendo hincapié en que los ciudadanos requieren de un certificado de "buena conducta" para el empleo en una empresa privada estas a alimentar  la estigmatización social.

Palabras clave: principios constitucionales; punitivas competencia; estigmatización social.


INTRODUÇÃO

A Constituição Política do Império do Brasil, promulgada aos vinte e cinco dias do mês de março de 1.824, aboliu definitivamente as punições por açoites, marcas de ferro quente e demais penas cruéis.

Nesta época em que ainda vivíamos em regime imperial, já se entendia como cruel a penalidade que marcava a pele do individuo com ferro quente, como forma humilhante de punição, pois esta criava um estigma de criminalização.

Tal premissa foi determinada visando garantia de humanidade ao réu, uma vez que já cumprida à pena a que foi condenado, nos moldes da Lei, este pudesse retornar a vida social como cidadão reeducado. Desde então, entende-se que um cidadão que viva em liberdade, nada deva ao Estado por qualquer crime, mesmo que um dia o tenha cometido, pois se está em liberdade é porque já cumpriu a punição a ele imposta.

Exigir de um cidadão que possui direito de igualdade sem qualquer distinção, que este apresente "Atestado de Antecedentes" ou de "Boa Conduta" para fins de admissão trabalhista, é ignorar por completo a Constituição da República de 1988, pois mesmo que a vida pregressa pudesse desaboná-lo de alguma forma, se o Estado o puniu nos moldes da Lei, este não deve carregar os estigmas de tal conduta errônea como forma de punição perpétua.

A criança e o jovem até a idade dos dezoito anos possuem inimputabilidade penal, ou seja, não são considerados os autores de crime, mas sim, autores de ato infracional por não possuírem capacidade jurídica de responsabilidade por seus atos. Há ainda a previsão legal do estado de "segredo" para qualquer situação que envolva a criança ou jovem até atingir a maioridade penal, a fim de preservar os seres em desenvolvimento conforme prevê a Constituição da República de 1988, vigente atualmente.

Da mesma forma, exigir de um cidadão que sempre cumpriu com suas obrigações, jamais teve conduta desonrosa ou ilegal, que sempre primou pela moral e bons costumes, apresente um documento comprovando sua qualidade de "boa conduta", o coloca em situação demasiada humilhante, buscando em órgãos públicos (Fórum e Delegacia de Polícia) o fornecimento de declaração que ateste que nunca foi punido por qualquer crime, atentando contra a proteção constitucional do direito à igualdade, à imagem e moral do indivíduo.

A rotina diária de atendimento na 6ª Delegacia Regional de Criciúma (SC) inspirou a produção da presente discussão acerca da inconstitucionalidade à que se expõe a sociedade local, ante o constrangimento observado nos cidadãos que buscam documento oficial para comprovar sua "boa conduta", para poderem concorrer a uma vaga de trabalho na região.

Neste sentido, é sensato e possível exigir-se de qualquer cidadão brasileiro, com base estritamente constitucional, que este apresente atestado de antecedentes ou de boa conduta para habilitar-se a uma vaga de trabalho com contrato celetista?


BREVE VISÃO HISTÓRICA CONSTITUCIONAL

Constituição do Império de 1.824

Com a declaração de independência do Brasil em 1.822 e a criação do Conselho de Estado por Dom Pedro I, foi outorgada em 1.824 a primeira Constituição do Império do Brasil marcada pelo forte centralismo administrativo e político denominado Poder Moderador, que garantiu os direitos civis abolindo as penas cruéis em seu art. 179 que previa "a inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte" e em seu inciso XIX aboliu as penalidade de açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis.

Neste mesmo artigo, prossegue garantindo os direitos humanos ao apenado, quando em seu inciso XXI, impõem que as cadeias devem ser seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias, e natureza dos seus crimes.

Também foi estabelecido no inciso XLVII que não haveria penas de morte, salvo em casos de guerra declarada, ou de caráter perpétuo, o que já enfatizava a não estigmatização do apenado com perpetuidade da punição.

Constituição

da República dos Estados Unidos do Brasil de 1.891

Em 1.891, promulgada a primeira Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, tendo como relator Rui Barbosa, a forma de governo Republicana substitui a monarquia, sendo consagrado o Sistema presidencialista e a formação do Estado Federal e constituiu-se a união perpétua e indissolúvel das antigas províncias, instituindo a igualdade entre todos os cidadãos em seu art. 72, § 2º.

Constituição

da República dos Estados Unidos do Brasil de 1.934

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1.934 recebeu influência do fascismo, evidenciando, pela primeira vez, porém, os direitos humanos de um estado social de direito, reconhecendo em seu art. 113, caput, o direito à subsistência, no inciso 1º do mesmo artigo, prevendo a igualdade entre os cidadãos, bem como em seu inciso 29º que não haveria pena de banimento, de morte ou em caráter perpétuo.

O direito à subsistência foi novamente citado no inciso 34º, prevendo ainda responsabilidade ao Poder Público ressaltando que "a todos cabe o direito de prover à própria subsistência e à de sua família, mediante trabalho honesto. O Poder Público deve amparar, na forma da lei, os que estejam em indigência."

Constituição

da República dos Estados Unidos do Brasil de 1.937

Marcada pela grande rivalidade política entre direita fascista representada pela Ação Integralista Brasileira (AIN), que defendia um Estado autoritário, e a esquerda, com ideais sociais, comunistas e sindicais representada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) e sob a presidência de Getúlio Vargas, foi apelidada de "Polaca", devido à forte influência da Constituição Polonesa extremamente fascista de 1.935, instituía a igualdade entre os cidadãos no art. 122, inciso 1º.

Havia a previsão de penas corpóreas, porém, não de caráter perpétuo, havendo também a previsão de pena de morte para os crimes elencados no inciso 13º do mesmo artigo.

Já o art. 127 demonstrou preocupação especial com a infância e juventude prevendo a responsabilidade objetiva do Estado quando especificou que "devem ser objeto de cuidados e garantias especiais por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas a assegurar-lhes condições físicas e morais de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das suas faculdades."

Quanto à proteção ao direito do trabalho, o Art. 136 entendia o trabalho como dever social, merecendo atenção e solicitude especiais do Estado considerado como um bem ao qual cabia ao Estado resguardar "assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa."

Constituição

da República dos Estados Unidos do Brasil de 1.946

Em virtude da perda de legitimidade do modelo fascista ante a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o Estado Novo teve fim em outubro de 1.945, quando após a queda de Getúlio Vargas, ocorreu a redemocratização do Estado que culminou na promulgação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1.946.

O direito de igualdade entre os cidadãos repetiu-se no art. 141, §1º, havendo no § 31 do mesmo artigo, a proibição das penas de morte, banimento, confisco dos bens ou de caráter perpétuo.

Constituição da República Federativa do Brasil de 1.967

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1.967 foi constituída nos moldes da Carta de 1.937, porém, concentrou o poder na esfera Federal conferindo-se amplos poderes ao Presidente da República, garantindo o direito individual fundamental de igualdade dos cidadãos no art. 150, §1º, seguindo o mesmo exemplo das anteriores.

Emenda Constitucional nº 01 de 17.10.1969 (Constituição de 1.969)

Com o afastamento do presidente Costa e Silva por motivos de saúde, instaurou-se um governo de Juntas Militares, onde os Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, usando das atribuições que lhes foi conferida pelo art. 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1º do art. 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, e mesmo sob regime extremamente duro e autoritário, garantia em seu art. 153, §1º, a igualdade entre todos os indivíduos sem qualquer distinção.

Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988

A Constituição da República do Brasil de 1.988, constituiu-se em Estado Democrático de Direito em seu art. 1º, e solidificou a presente explanação em seus incisos II, III e IV, definindo como princípios fundamentais o direito a cidadania, dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Também consagrou em sua melhor forma os direitos fundamentais e invioláveis do cidadão em seu art. 5º, caput, quando determinou que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade", e em seu inciso XLVII, b, que não haveria pena de prisão perpétua, o que por analogia, se considera a punição de caráter perpétuo.

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O art. 6ª cuida da proteção e garantia, especificando como "direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados", ressaltando aqui que o trabalho é entendido como direito social.

Já o art. 7º prevê nos incisos XXX e XXI, a proibição de discriminação de qualquer tipo entre os trabalhadores, ressaltando os direitos constitucionais já instituídos.

A história constitucional, portanto, deixa claro que desde os primórdios garantia-se a igualdade e a não discriminação entre cidadãos, bem como a proibição de punição perpétua.


A ESTIGMATIZAÇÃO DO APENADO

Desrespeitar o cidadão punindo-lhe socialmente e em perpetuidade, é uma afronta a constituição, que como ja visto, aboliu as punições estigmatizadoras. Há neste aspecto, desrespeito não apenas à principios constitucionais, mas também aos princípios de direito penal, sendo que os princípios são a base que norteia a fundamentação da República, como vemos:

Advogamos que o princípio está incorporado em nossa realidade constitucional, não sendo dedutível dos demais valores e princípios, mas sendo ‘o’ princípio do qual aqueles são dedutíveis. Nesse sentido, a categoria corresponde a um dos núcleos substanciais do ordenamento jurídico, juntamente com os preceitos preambulares da Constituição (o pluralismo, a fraternidade, o pacifismo, a igualdade) e os ‘fundamentos’ estabelecidos no art. 1° (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, pluralismo político). Tais princípios, ou valores constitucionais, sedimentam os pilares axiológicos sob os quais está fundada a República, conformando a estrutura jurídica basilar do Estado, diluindo e contaminando sua carga valorativa às demais esferas normativas. [01]

O princípio da humanidade do direito penal prevê a garantia de humanidade contra ato que agrida socialmente o indivíduo ou nas punições deste, justificando a vinculação do direito penal aos valores constitucionais, merecendo respaldo:

Das exigências fundamentais inseridas na Constituição, inferem-se os limites traçados, por ela, para o Direito Penal. Não se pode olvidar que este, mormente em um Estado promocional, é, por natureza, um de seus instrumentos mais eficazes. [...].

A dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, é o valor expresso no princípio da humanidade do Direito Penal, que não pode deixar de ser considerado quando da criminalização de qualquer fato, etiquetado como socialmente agressivo, ou quando da cogitação de qualquer sanção criminal.

[02]

O direito penal brasileiro consagra a garantia dos direitos fundamentais do preso, resalvada a liberdade enquanto perdurar a punição conforme art. 38 do Código Penal, que preceitua que "o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral".

Uma vez que haja punição por ato delituoso, cumprida a penalidade e posto em liberdade, o autor recupera a integralidade de seus direitos constitucionais, o que evidencia assim a não perpetuidade social na punição.

A ‘penetração’ dos valores constitucionais no corpo do sistema penal (como, de resto, no de qualquer outro ramo do ordenamento) pode ocorrer mediante a ‘via legislativa’, por intermédio de leis de atuação constitucional, ou pela ‘via jurisdicional’, entendendo-se como tal não apenas o trabalho de adequação do magistrado a quanto se contenha nas malhas da lei, mas, principalmente, a decisiva atividade Constitucional. Ora, se a primeira via não apresenta problemas particulares no campo penal, a segunda põe-se numa problemática relação a propósito do princípio fundamental da estrita legalidade dos delitos e das penas. [03]

Diversas são as teorias da pena. Apenas para referendar, a teoria abolicionista tem como característica principal seu viés negativo ante a ineficácia de nosso sistema penal, já a teoria justificacionista trabalha a racionalidade conceitual sustentando a intervenção sancionatória penal como meio preventivo.

Tais teorias, ao contrário dos ideais abolicionistas, concebem uma importância ao direito penal e nele vêem como uma solução efetiva a inúmeros problemas sociais. Reduzem-se, em geral, a duas doutrinas: as teorias absolutas (ou punitur, quia peccatum est) ou relativas (punitur, ne peccetur). Para as primeiras, a pena é concebida como um fim em si mesma, ou seja, um ‘castigo’, ‘compensação’, ‘reação’, ‘reparação’ ou ‘retribuição’ do delito, não permitindo uma finalidade outra – como a prevenção – e não concebendo que a pena não seja cumprida e na sua totalidade, sob pena de afrontar os ideais da justiça (idéia sustentada por KANT) ou do direito (referida por HEGEL); já as teorias relativas justificam a pena como um meio para que não sejam praticados delitos no futuro. [04]

As teorias relativas aduzem que a punição atua diretamente na prevenção da reincidencia do ato criminoso, uma vez que punido o autor pague na medida de sua conduta delituosa e retorne ao convivio social como cidadão de direitos.

Para essa doutrina, a pena não vislumbra como finalidade, algo socialmente relevante ou útil, mas apenas a imposição de um mal merecido que é retribuído a um mal cometido, compensando, assim, a culpabilidade do agente em virtude do ilícito praticado. A pena, assim, funcionaria não só como um efetivo castigo à pessoa do delinqüente, mas também como a possibilidade de o autor do delito se redimir perante a sociedade, ou seja, saldar sua dívida para com ela. [05]

Vale ressaltar, quanto à teoria relativa lecionada por Pedro Krebs [06] que a pena é um meio para prevenir a prática de crimes futuros, tendo finalidade utilitarista, entendida como prevenção do delito, e não como um fim de si mesma. Dessa forma, a pena passa a ser necessária para evitar a prática de lesões a determinados interesses sociais. Não importa a culpa, pois a finalidade da pena não prediz a culpa do agente, mas atua na prevenção da ocorrência de novos delitos.

Há de se observar ainda, a teoria da expiação, que reflete a pena como possibilidade da reconciliação do agente consigo mesmo, num gesto de dignidade moral, porém, tal teoria não demonstra qualquer preocupação na recuperação da ordem das coisas ou na prevenção de novos delitos. O que fundamenta e justifica a sanção é o restabelecimento da ordem jurídica violada, exigindo-se, contudo, que a sociedade reconheça no agente sua redenção ou um livre arrependimento.

La pena como expiación – a diferencia de la pena como retribución – no es uma restitución del orden correcto de las cosas, sino la reconciliación del delincuente consigo mismo, com el ordenamiento quebrantado, en definitiva, com la comunidad. Con la expiación moral "el culpable se libera de sua culpa, alcanza de nuevo la plena posesión de sua dignidade personal. Expiación em este sentido solo puede tener éxtito de todas formas allí donde el culpable preste su libre arrepentimineto, un arrepentimiento que sea visto la sociedad como redención de sua culpa. [07]

Tratar como criminoso um cidadão de direitos, cujo erro foi punido nos moldes da Lei, discriminando o bem jurídico denominado igualdade, é dar guarida a novas incursões em crimes, já que não há para ele outro meio de subsistir e manter sua dignidade enquanto pessoa humana.

[...] há de fazer-se sem conflito com os princípios constitucionais. É de sustentar-se também que a criminalização desses bens não previstos nas constituições não só não podem entrar em conflito com essas, como nelas encontram para a criminalização limitações insuperáveis. E isso porque nos textos constitucionais a criminalização encontra proibições expressas, bem como vedações explícitas. [...].

As Constituições, portanto, não apenas são o repositório principal de bens passíveis de criminalização, mas também contêm princípios relevantíssimos que modelam a vida da comunidade e que, para usar a linguagem dos constitucionalistas, constituem cláusulas pétreas, embasadoras do sistema constitucional, insuscetíveis de serem revistas. [08]

Não há, portanto, o que justifique o desrespeito aos direitos fundamentais constitucionais, entendidos como bens jurídicos, lembrando que a função da pena é não somente punir, mas prevenir a reincidência.

A rigor, portanto, certa é a polifuncionalidade da pena, sendo que seus fins principais são o de retribuir o mal do crime e o da prevenção. Em caráter secundário a pena pode servir para educar ou reeducar o delinqüente. Mas isso só é eventualmente viável, dependendo de uma série de circunstâncias conjunturais, principalmente da decisão política de aplicar os recursos necessários para que se torne possível o objetivo em causa. [09]

Para que seja efetivamente viável a pena, no sentido de reeducação do apenado, mostra-se indispensável à ressocialização deste, proporcionando, em pé de igualdade com os demais cidadãos, a igualdade constitucional na busca por sua subsistência, sem lhe ser imposto pela sociedade o estigma de criminoso.

A dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, é o valor expresso no princípio da humanidade do Direito Penal, que não pode deixar de ser considerado quando da criminalização de qualquer fato, etiquetado como socialmente agressivo, ou quando da cogitação de qualquer sanção criminal. [10]

Cabe aqui ressaltar que é de se considerar esse mesmo nível de hierarquia e compatibilidade entre os direitos fundamentais e o direito penal devendo observado-los quando da imposição do sancionamento, seja na dosimetria da culpabilidade como fundamento e limite temporal, seja na vinculação da função da pena aos valores fundamentais, garantindo-se após o cumprimento da punição, a não estigmatização do apenado e reinserção no mercado de trabalho.

O princípio da dignidade da pessoa humana especifica que o sancionamento jamais pode ser desnecessário ou aplicado de forma perpétua, neste sentido:

Dignidade da pessoa humana constitui um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, englobando desde os direitos pessoais, os direitos sociais, os direitos dos trabalhadores até à organização econômica. Consiste num valor autônomo e específico, inerente aos homens em virtude de sua simples pessoalidade, obrigando a uma intensa densificação valorativa que tenha em conta seu amplo sentido normativo constitucional. De acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, nenhum cidadão pode ser sancionado desnecessária ou ilimitadamente, devendo haver restrições temporais máximas à sua punição, respeitando-se o homem em seus atributos no instante da enunciação e aplicação dos preceitos primários, bem como das sanções penais. [11]

Ainda quanto a esse principio, para o cumprimento da função preventiva da pena, no cometimento do delito e na aplicação da sanção, deve haver proporcionalidade:

[...] a dignidade da pessoa humana exige que a punição esteja identificada, temporalmente, o mais próximo possível com o cometimento do delito para se evitar que a pena seja imposta à pessoa que já expiou pelo tempo, por sua mudança de temperamento, caráter ou pelo sentimento de culpa de que não tenha se libertado, sofrimento bastante para tornar improdutiva pena criminal que venha a ser imposta. [12]

A Organização das Nações Unidas (ONU) com a Declaração Universal dos Direitos Humanos assinada em 1.948, instituiu os direitos universais de todo os seres humanos atribuindo a igualdade em dignidade e direitos em seu art. I onde preceitua que "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade."

Prossegue em seu art. II reafirmando a igualdade "sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição."

Novamente trata sobre a igualdade em seu art. VII aduzindo que "todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação."

Com relação ao direito ao trabalho, o art. XXIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê que "todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego", resguardando o princípio da livre iniciativa.

O princípio constitucional da livre iniciatica reflete não apenas um princípio, mas também um valor. O valor é no sentido de ideal em busca da ordem social aberta e democrática possibilitando acesso, permanencia e manutenção, de todos os que desejem desenvolver qualquer atividade econômica, consubstanciando-se com a idéia de liberdade e de desnecessidade de permissão para atuar no mercado. Já o princípio, refere-se ao caráter normativo visando o resguardo do valor da livre iniciativa.

Consagrado o principio da livre iniciativa no art. 170, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988, sendo princípio fundamental da ordem econômica, este condiciona a interpretação dos demais princípios especificados em seus incisos:

Além daqueles princípios fundamentais – livre iniciativa e valor social da iniciativa humana – enumerados em seu caput, o art. 170 das Constituição relaciona em seus nove incisos os princípios constitucionais da ordem econômica, afirmando que esta tem por fim assegurar a existência digna, conforme os ditames da justiça social, respeitados os seguintes princípios: soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego e tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.

Estes princípios perfazem um conjunto cogente de comandos normativos, devendo ser respeitados e observados por todos os "Poderes", sob pena de inconstitucionalidade do ato praticado ao arrepio de qualquer deles. Portanto, serão inadmissíveis (inválidas) perante a ordem constitucional as decisões do Poder Judiciário que afrontarem estes princípios, assim como as leis e qualquer outro ato estatal que estabelecer metas e comandos normativos que, de qualquer maneira, oponham-se ou violem tais princípios. [13]

Se o trabalho é bem jurídico, direito do ser humano, tutelado pelo Estado e se a igualdade está instituída desde os primórdios legislativos com a não estigmatização do apenado, bem como reforçada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, não se pode permitir que empresas privadas ajam com total e evidente discriminação, exigindo para seleção a vagas de emprego, que os candidatos apresentem um documento que permita que a empresa os diferencie pela vida pregressa, mesmo que já tenham cumprido a pena a eles imposta.

Cumpre lembrar que não há punição perpétua no Brasil!

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Sobre os autores
Mariana Garcia Amarante

Acadêmica do curso de direito da Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL; bolsista do Programa "Novos Valores", regulamentado pelo Decreto nº 2.113/09; membro da Comissão da Criança, Adolescente e Idoso da OAB/SC - subseção de Criciúma.

Rosinei da Silveira

Profº da pós graduação do Centro de Ensino Superior Sul Brasileiro - CESULBRA; Profº de Polícia Comunitária/SENASP/SSPSC; Profº NAT/SAÚDE/UFSC - Guardas Municipais; Graduado em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC; Especialista em Filosofia de Polícia Comunitária pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL; Especialista em Gestão de Polícia Comunitária pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI; Agente de Polícia Civil no Estado de Santa Catarina; Coordenador Regional de Polícia Comunitária e CONSEG'S na Polícia Civil; Membro do Comitê Regional e Prevenção à Violência Escolar - CPREVE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARANTE, Mariana Garcia ; SILVEIRA, Rosinei. A punição perpétua pela estigmatização social.: A exigência de atestado de antecedentes para contratação em empresa privada na região de Criciúma (SC). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2953, 2 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19681. Acesso em: 26 abr. 2024.

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