4. LIA, direito sancionador e segurança jurídica
Nem sempre é tarefa fácil para o aplicador da LIA a conexão entre seus dispositivos e a realidade. O legislador fez clara opção política de adotar tipologia aberta, no intuito de criar sistema sancionador permeável ao sistema axiológico abraçado pelo legislador constituinte [54], e assim atender ao legítimo anseio social de criar mecanismos eficazes de prevenção e repressão da corrupção (rectius, improbidade) na esfera pública. Realmente era necessária a criação de forte meio não-penal sancionador, capaz de enfrentar a conhecida e propagada falta de seriedade e honestidade na condução do Estado. E mais uma vez lembramos que esse meio de combate à imoralidade administrativa tem origem direta em nossa Constituição, daí porque não há como se questionar a validade desse sistema. O que a Constituição engendrou foi verdadeiro e necessário esquema de sobreposição de sistemas punitivos, cada um com seu próprio colorido mas todos pertencentes ao ramo do direito sancionador, com a perceptível meta de superproteger os caros valores democráticos que formam o plexo da moralidade administrativa, eis que necessária a proteção desses valores sob pena do Estado correr o risco de falhar em sua missão de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I, CF/88). Como já visto, a democracia tem entre seus maiores adversários a corrupção estatal, e as normas que visam proteger os valores republicanos e democráticos da boa e honesta administração são absolutamente fundamentais para a sobrevivência de um sistema democrático sadio.
Consideradas essas premissas, realmente nos parece que ao legislador só havia a opção política de escolher modelo mais amplo de tipificação das improbidades em comparação com a esfera penal, sob pena de se frustrar a ratio essendi dos dispositivos constitucionais protetivos da moralidade, notadamente o § 4º do art. 37, que ao nosso ver buscavam justamente uma ampliação dos atos sancionáveis, dada a ineficácia dos mecanismos até então vigentes (esfera penal e disciplinar-administrativa).
O problema é que a tipologia adotada, francamente aberta, sobretudo no art. 11, traz como efeito colateral certa insegurança interpretativa. Tal insegurança é aumentada pela novidade que é o sistema sancionador da improbidade, quando ainda há inúmeras divergências radicais quanto a aspectos básicos, como natureza das sanções e as pessoas sujeitas à incidência, e a jurisprudência ainda não exerceu o papel de provocar certo consenso interpretativo, ao menos no plano prático.
Não é difícil perceber que o legislador entregou ao interprete e aplicador da LIA texto normativo que suscita diversas dúvidas e questionamentos. A lei 8.429/92 veio com redação imprecisa, com sistema punitivo desbalanceado e com inúmeros pontos de silêncio que trazem muitas interrogações. Diante desse quadro normativo, surgem as seguintes questões: Como aplicar a lei de modo justo e equilibrado se condutas dos mais variados graus de lesividade são baralhadas como se tivessem a mesma gravidade? E a pergunta que a nós parece a mais relevante, como compatibilizar os valores de eticidade e responsabilidade, exigidos pelo sistema constitucional e protegidos pela LIA, com preceitos essenciais inerentes ao devido processo legal e à segurança jurídica?
A primeira pergunta já vem sendo enfrentada e, como já visto acima, boa parte da literatura específica entende possível a aplicação não necessariamente cumuladas das sanções, entendimento que culminou na alteração do caput do art. 12 pela Lei 12.120 de 2009. O problema é que diante da novidade que representa a LIA, do atual estado da jurisprudência e da doutrina, a incerteza ainda perdurará por bom tempo até que se atinja níveis satisfatórios de consenso sobre a dosagem qualitativa das penas.
Mas mais grave que a indefinição quanto à intensidade da sanção, são as dúvidas conceituais sobre os pressupostos teóricos da LIA e sobre a estrutura do processo de tipificação, ou seja, sobre os requisitos para o estabelecimento da ligação entre o tipo previsto na LIA – sim, a LIA também usa a técnica do fato típico, embora muito imperfeitamente – e o que ocorreu no mundo dos fatos.
Quando dizemos que ainda falta definição sobre os pressupostos teóricos, nos referimos à posição sui generis que a LIA ocupa em nosso sistema, em que traz importantes e graves sanções aos condenados, o que a aproxima das disposições penais, ao mesmo tempo em que é aplicada através do processo civil, com aplicação de institutos e raciocínios típicos do Direito Administrativo. A melhor solução teórica para a essa aparente concorrência de categorias é a utilização de uma super-categoria que, apesar de intuitiva, tem sido pouco estudada: o direito sancionador, como grande ramo do direito público que reúne as características e limitações inerentes ao poder punitivo estatal em suas mais diferenciadas manifestações [55]. Essa grande área do Direito polariza algumas características que são mais ou menos comuns nas sociedades democráticas: exige-se que a pena imposta pelo Estado tenha fundamento em lei formal e que tanto quanto possível a lei traga elementos que possibilitem sua aplicação objetiva; exige-se que a pena prevista e imposta pelo Estado seja razoavelmente correspondente à gravidade do ato; exige-se algum procedimento legal que permita defesa, ainda que a posteriori; exige-se por parte da autoridade aplicadora da sanção exposição dos motivos que a levaram a punir; repele-se o excesso de poder ou arbítrio [56]. Tais restrições são absolutamente fundamentais porque toda emanação do ius puniendi estatal acaba por limitar, em variados graus, que dependem do tipo de ius puniendi exercido e do bem jurídico protegido, direitos fundamentais, como à liberdade ou à propriedade. Chamamos a atenção assim para o que nos parece um fato: apesar de haver autonomia – relativa, como já vimos [57]- dogmática entre Direito Administrativo e Direito Penal, porque são técnicas jurídicas diferentes em sua forma e na maneira como são efetivadas suas normas, o conteúdo que esses diferentes ramos do Direito protegem, os valores jurídicos, podem ser idênticos, e muitas vezes são. Assim não vemos, em absoluto, diferenças ontológicas entre as sanções administrativas e as sanções penais [58], podendo o legislador, diante do desvalor de determinada conduta, tipificá-la como crime ou como infração administrativa, ou como ambas figuras [59]. É importante lembrar que toda a construção histórica dos direitos fundamentais foram exatamente no sentido de limitar e legitimar o exercício de poder por parte do Estado, em especial o direito punitivo, já que é uma das facetas mais agudas e delicadas da relação Estado-indivíduo. Nesse diapasão, temos que fixar, dada a insuficiência legislativa, doutrinária e jurisprudencial, e ainda considerando que estamos a tratar de direito punitivo de inegável gravosidade, que é devida a utilização de institutos penais, dosados e bem temperados [60] com a necessidade de se conferir efetividade ao combate à improbidade e de se cumprir a missão constitucional de dar enfrentamento a esse mal (improbidade) que pode colocar em risco o próprio sistema democrático. É fundamental, portanto, e dificílimo, ao mesmo tempo, o equilíbrio entre a efetividade das normas punitivas e a aplicação das limitações ao poder punitivo do Estado.
Dentro desse contexto temos a questão da segurança jurídica, como direito fundamental (art. 5º, caput, CF/88), aqui entendida como os atributos de certeza e previsibilidade que o ordenamento jurídico democrático deve, tanto quanto possível, ostentar, de modo que o Direito cumpra uma de suas funções essenciais: possibilitar a tranquilidade social. Consiste no "conjunto de condições que tornam possíveis às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida" [61].
Canotilho, reconhecendo que uma das razões do surgimento do liberalismo político e econômico, e logo do constitucionalismo moderno, era a necessidade de um sistema capaz de conferir às classes sociais emergentes a segurança jurídica [62], ensina que "o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente sua vida. Por isso, desde cedo se consideraram os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito. Estes dois princípios – segurança jurídica e protecção da confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos de poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo ou judicial" [63].
Especificando o significado do princípio, o mestre português chega a um ponto nodal para nossa exposição: "A segurança jurídica postula o princípio da precisão ou determinabilidade dos actos normativos, ou seja, a conformação material ou formal dos actos normativos em termos linguisticamente claros, compreensíveis e não contraditórios. Nesta perspectiva se fala em princípios jurídicos da normação jurídica concretizadores das exigências de determinabilidade, clareza e fiabilidade da ordem jurídica, e consequentemente, da segurança jurídica e do Estado de direito. O princípio da determinabilidade das leis reconduz-se, sob o ponto de vista intrínseco, a duas ideias fundamentais. A primeira é a da exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto. A segunda aponta para a exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto legislativo (ou um acto normativo em geral) que não contém uma disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições juridicamente protegidas pelos cidadãos; (2) constituir uma norma de actuação para a Administração; (3) possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos (...) [64]".
A incerteza quanto à aplicação da LIA é especialmente sentida, além das questões do referencial teórico e da possibilidade ou não da aplicação das sanções em bloco, já abordadas, nos seguintes aspectos: a) quanto à tipicidade, possibilidade de aplicação de excludentes de antijuridicidade e de culpabilidade; b) quanto ao elemento subjetivo necessário para a caracterização do ato como ímprobo e a estrutura da conduta; b) quanto à extensão do artigo 11 da lei [65].
Disposição normativa punitiva severa que não tem ao certo referencial teórico confiável acaba por vulnerar a segurança jurídica, levando ao meio social, em especial aos potenciais atingidos pelas normas inquietação, desconfiança e incerteza sobre a juridicidade dos comportamentos. Adiante tentaremos esboçar algumas soluções.
5. Alguns caminhos possíveis
Como já mencionamos anteriormente, é necessário que o direito sancionador seja reconhecido como categoria em que é necessário fornecer ao cidadão garantias legitimadoras jurídicas e sociológicas da sanção. Garantias processuais-procedimentais como devido processo legal, proibição da prova ilícita, presunção de inocência; e substanciais como culpabilidade (necessidade da aferição de elemento subjetivo), individualização da pena, proporcionalidade e legalidade.
O problema torna-se mais complexo quando reconhecemos que a mera utilização do referencial teórico penal [66] pode atentar, dependendo da forma com que se apliquem os institutos penais, contra a efetividade do combate à improbidade, também importantíssimo para o Estado Democrático de Direito [67]. Mais uma vez afirmamos que o Direito Penal deve sim servir de paradigma na aplicação da LIA, porém cum grano salis, atentando que se trata de espécie normativa que tem sua base axiológica e hermenêutica fundada em institutos de Direito Administrativo, e que essa utilização idealmente não pode reduzir o espectro de eficiência repressiva, que foi visivelmente buscado pelo constituinte ao criar especialíssimo mecanismo de tutela do direito metaindividual à probidade administrativa que não se utilizasse do processo penal [68]. O que se defende aqui não é a pura e simples transfusão dos institutos do Direito Penal para a LIA, mas sim a sanação, através da utilização de modelo normativo tecnicamente mais desenvolvido e historicamente sedimentado, de falhas que podem comprometer as garantias fundamentais que o cidadão deve ter frente ao Estado e a segurança jurídica na aplicação das disposições da LIA.
5.1. Do elemento subjetivo.
Muito se tem discutido sobre o elemento subjetivo do agente em se tratando de improbidade administrativa. A jurisprudência do STJ parece ter se sedimentado no sentido de exigir a demonstração de elemento subjetivo [69], muito embora tenhamos arestos mais antigos que dispensam sua análise [70]. Neste sentido também é a melhor doutrina, a exemplo de Fábio Medina Osório: "Das garantias resultantes do sistema constitucional do direito administrativo sancionador pátrio, que se assenta no devido processo legal, destacamos a perspectiva de responsabilidade subjetiva dos infratores do dever de probidade. Tratamos do dolo e da culpa como pressupostos de responsabilidade por improbidade administrativa" [71].
A demonstração do elemento subjetivo se faz mediante material probatório que indique que o agente, numa conduta livre, consciente, antijurídica e culpável, agiu no sentido de praticar um dos tipos previstos na LIA. Daí a importância da existência de elementos que demonstrem o nexo subjetivo entre resultado e a conduta do agente, ou seja, de que o agente queria de fato praticar conduta que se amolda a uma das molduras típicas encontradas na LIA. Como o elemento subjetivo é sempre intuído [72] através dos elementos que indicam determinada vontade, é fundamental que haja produção probatória idônea anterior ao ajuizamento da ação civil pública por ato de improbidade, que ao menos indique, com razoável margem de confiabilidade, a presença de elemento subjetivo [73]. Vale mencionar que o dolo exigido para a caracterização não é o chamado dolo específico ou dolus malus, bastando a livre consciência de que se está praticando algo errado [74].
Quanto à possibilidade de conduta culposa, há julgados do STJ admitindo tão somente em relação ao art. 10 da LIA [75] ante a expressa previsão legal somente neste artigo. Há dissenso entre a Primeira e Segunda Turmas do Tribunal quanto a possibilidade de ato culposo no artigo 11 (REsp 765212/AC). A Segunda Turma admite a figura do artigo 11 na forma dolosa e culposa, ao contrário da Primeira. Afiliamo-nos à corrente mais restritiva que somente vê possibilidade de conduta culposa no artigo 10, único dos tipos que traz previsão de conduta culposa.
O importante, como já registrado inúmeras vezes, é que haja cuidadosa pesquisa sobre as circunstâncias que cercaram o fato, de modo que fique demonstrado a que título o sujeito praticou o ato.
5.2. Da possibilidade de aplicação das excludentes de ilicitude e de culpabilidade
Apesar do completo silêncio da LIA, parece-nos ser intuitivo que é possível a aplicação analógica das excludentes de ilicitude e culpabilidade do Direito Penal. A utilização desses institutos, ante a carência de elementos da LIA, apresenta visíveis vantagens de segurança jurídica e garantia para o cidadão.
Em contrapartida, tal aplicação não revela obstacularização excessiva ao direito à probidade administrativa, posto que obviamente não se deseja que pessoas que praticaram determinado ato com justificativas ou sem reprovabilidade sejam punidas. Assim somos pela possibilidade de isenção de punição quando demonstrado que determinado sujeito atuou, por exemplo, em legítima defesa ou estado de necessidade.
Esta questão vem passando ao largo da jurisprudência dos Tribunais Superiores, embora já trabalhada pela doutrina [76]. O STJ já decidiu, ao que parece fazendo paralelo à jurisprudência relacionado ao crime do 168-A do Código Penal, que não é improbidade a ausência de repasse dos valores descontados dos servidores a título de contribuição previdenciária quando houve aplicação da verba para saldar dívidas anteriores e evitar o bloqueio do repasse do Fundo de Participação dos Municípios (REsp 246746), em evidente aplicação da excludente estado de necessidade. Há ainda interessantíssimo julgado relatado pelo Ministro Mauro Campbell Marques em que se assevera que "(...) o estado de necessidade não é instituto inerente apenas ao Direito Penal; ao contrário, tem-se aí conceito ligado a todo o Direito Sancionador - inclusive nos ramos cível e administrativo. A figura do estado de necessidade liga-se à idéia de que não pode existir atentado ao Direito, ao justo, na conduta praticada a fim de salvaguardar bem jurídico de maior relevância que o bem jurídico maculado. A lógica é evidente: o ordenamento jurídico não pode deslegitimar conduta que é benéfica a bem jurídico a que ele próprio confere valor diferenciado (para mais). A legitimidade da conduta, neste caso, deve ser compreendida de forma abrangente, englobando tanto o aspecto penal, como os aspectos cível e administrativo. (...) Na esfera administrativa, em razão da inexistência de codificação, não há dispositivo expresso sobre o instituto. Nada obstante, a construção de precedentes dos órgãos julgadores da Administração Pública e dos órgãos judiciais sempre foi no sentido do pleno reconhecimento e da real efetividade do estado de necessidade na seara administrativa"(REsp 1123876/DF).
Pelas mesmas razões devem ser aplicadas as demais excludentes de ilicitude, bem como de culpabilidade, visto ser absurdo que se puna pessoa por ato em que não seria, diante das circunstâncias, exigível que se comportasse de outra maneira. No exame mais acurado da jurisprudência é possível perceber que os tribunais já vem usando essa ideia básica de afastar a punição em relação aos atos justificáveis ou não culpáveis, mas ao invés de expressamente reconhecer tais circunstâncias dizem não haver dolo ou má-fé na conduta.
5.3. Construção de standards de conduta pela jurisprudência
Dada a abertura dos tipos da LIA, a jurisprudência assume papel decisivo no aclareamento de zonas cinzentas, em especial em relação ao tão criticado artigo 11. Cabe então a jurisprudência criar standards de conduta para guiar aplicadores e gestores. Lamentavelmente os Tribunais durante muito tempo mais se ocuparam de questões periféricas, como a aplicabilidade da LIA aos agentes políticos, do que da construção de referenciais práticos sistematizados para casos duvidosos. Nada obstante, já podemos achar alguns exemplos de soluções para hard cases, que tendem a se sedimentar e servir de guia futuro para os aplicadores.
O STJ já decidiu que há improbidade quando se realiza concurso irregular, com empresa responsável contratada sem licitação, atraso na abertura dos portões e violação de lacre dos envelopes de prova (REsp 114815/MT); que caracteriza improbidade a contratação de serviços sem licitação e ausente justificação de exigibilidade; que é punível a improbidade tentada [77] (REsp 1182966/MG); o pedido e aquisição de diárias indevidas é improbidade (REsp 980706/RS); falta de prestação de contas com má-fé é improbidade (REsp 852671/BA); contratação de servidor sem concurso é ato ímprobo (REsp 1005801/PR); promoção pessoal em propaganda governamental se enquadra no art. 11 (REsp 765212/AC).
Por outro lado, o STJ vem entendendo que a mera administração inepta não caracteriza improbidade (REsp 1149427/SC); que a acumulação de cargos com prestação de serviço e percebimento de reduzido valor não é ato ímprobo (REsp 1245622/RS); que nem toda ilegalidade é improbidade, sendo necessário demonstrar o elemento subjetivo da conduta (AgRg 1339336/MG).
No mais, é questão de tempo a melhor definição sobre o alcance das abertas disposições do art. 11, tal qual ocorrera em relação a inúmeros tipos penais que também nasceram alargados e depois tiveram sua extensão delimitada pela interpretação dos tribunais.
5.4. Priorização da fase extra-judicial para investigação de potenciais atos de improbidade
Grande parte dos problemas na aplicação da LIA se devem a uma instrução extra-processual mal-feita, na qual não se sindicou adequadamente o elemento subjetivo do agente e as circunstancias que cercavam o fato. A prática nos ensina que o inquérito civil público é veículo mais adequado e efetivo de pesquisa dos fatos e de aproximação da verdade que o processo civil. É que a estrutura triangular e burocratizada do processo, se por um lado é rica em garantias, por outro gera notável dificuldade da célere reprodução dos fatos.
Se para a dedução em juízo dos graves pedidos sancionatórios é necessário lastro probatório confiável, nos termos do art. 17, §§ 8 e 9, LIA, é imperiosa que a atuação dos órgãos de controle produtores desse material seja desobstruída e célere. Deve-se permitir, sempre quando não se atente contra dispositivos legais e as garantias constitucionais, a ampla produção de provas, que depois serão submetidas ao crivo do contraditório.
Na fase pré-processual o Ministério Público, através do membro com atribuições para a matéria (princípio do promotor natural), não só poderá como deverá, por ser absolutamente conveniente para o sucesso da repressão à improbidade, aprofundar-se ao máximo na apuração. Apesar da jurisprudência permitir que a atuação pré-processual seja pouco profunda, a experiência mostra que uma coleta de provas mais extensa nessa fase é fundamental para um resultado satisfatório. Assim, não concordamos com Rogério Pacheco Alves quando assevera que o inquérito civil "não se destina a uma exaustiva pesquisa de tais aspectos [ilícito e sua autoria], mais adequada ao momento processual, cingindo-se, antes, à mera coleta de indícios" [78]. Se é certo que um inquérito exaustivo não é condição de procedibilidade também o é que, no mais das vezes, o sucesso da ação civil pública por ato de improbidade é diretamente proporcional ao nível de profundidade alcançado na fase pré-processual, ou seja, quanto mais fartas as provas colhidas no inquérito maior a chance de haver efetiva punição pelo ato de improbidade. Isso é reconhecido pelo próprio autor quando assevera que "sem prejuízo, é interessante observar que na prática o inquérito bem instruído contribui para o êxito da demanda. Tal aspecto foi constatado pelo Professor Paulo Cezar Pinheiro Carneiro que, na sua pesquisa acima mencionada, indica que em 61,19% das ações precedidas de inquérito civil o parquet obteve êxito" [79].
Assim, pode-se dizer que a fase pré-processual é tão importante quanto a fase jurisdicional, não só porque garante ao cidadão não ter contra si ação temerária, como porque também traz mais chances de efetivação do direito fundamental à probidade na Administração Pública.
5.5. Por fim, mas qual ética?
Não é difícil extrairmos da Carta Magna qual sistema de valores para a atividade pública, e assim podemos dizer, qual sistema ético e moral que a Constituição elegeu para nosso sistema.
Nossa Lei Maior vem carregada de valores democráticos e republicanos, compartilhados no mais das vezes pelas democracias ocidentais. São os valores da responsabilidade, transparência, isenção, respeito às normas, valorização do bem público, honestidade, separação entre público e privado, cumprimento do dever e lealdade.
Percebe-se a adoção de uma ética humanística, de valorização do ser humano, e consequentemente dos direitos individuais e sociais, de igualdade e fraternidade, e assim de vinculação da Administração Pública aos princípios da boa administração, à noção republicana de responsabilidade não só em relação ao cumprimento dos deveres formais, como de legalidade, como também à noção do dever de dar satisfação à sociedade (transparência) e de buscar o melhor resultado possível com os recursos disponíveis (eficiência) [80].
Esses valores refletem na conformação da ética pública que ao nosso ver a Constituição de 1988 incorporou, como um sistema moral que busca evitar o patrimonialismo, a corrupção e a deslealdade institucional. De certa forma, o mandamento constitucional de repressão à improbidade é a assunção desses valores éticos e resposta do Poder Constituinte à praga da corrupção.