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Uma visão crítica da advocacia na pós modernidade

11/08/2011 às 17:03
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RESUMO

Objetiva-se com este singelo artigo promover uma reflexão acerca do possível relativo paradoxo a que a advocacia, no geral, vem se enveredando mais recentemente, através de certas práticas e/ou permissibilidades, em face com seu Código de Ética e com a natureza da profissão. De forma a se poder pontuar que o dito "mercado" vem se impondo aos princípios tradicionais e fundamentais do nobre ofício; fruto da atual pós modernidade.

Palavras-chave: Advocacia. Pós modernidade. Paradoxo com o Código de Ética.


INTRODUÇÃO

De forma indiscutível, tem-se presenciado hodiernamente que a advocacia vem se enveredando, na prática, por sendas que contrastam com preceitos advindos de seu respectivo Código de Ética; notadamente quanto à questão mercantil.

Longe de se intentar impor conceitos e/ou refutar, peremptoriamente, a inevitáveis inovações, o que se pretende é erigir uma séria e construtiva reflexão sobre o papel da advocacia e seu futuro frente à sociedade, e se estar-se-ia ou não, em nome do dito "mercado", infringindo a preceitos éticos profissionais.


1. OS VALORES DA PÓS MODERNIDADE

Em linhas gerais – e muito singelamente - a pós modernidade [01] - ou era do vazio ou hipermodernidade ou era pós industrial, dentre outros termos, como preferem alguns [02] – pode ser traduzida como o período hodierno sociológico, filosófico, econômico, cultural, de exacerbado individualismo e consumismo; onde impera a fluidez e a ambigüidade de valores, a indefinição de caminhos e/ou preceitos éticos, do multiculturalismo, das constantes e céleres inovações – com conseqüente procura de ruptura com o passado e/ou com valores tradicionais.

No magistério de Eduardo C. B. Bittar [03]:

O mundo que se organiza na base de uma ética pós-moderna vive superações e diferenças identificáveis, com relação aos dísticos mais representativos da modernidade, porém, também vive o dilema da indefinição: não vê e não conhece os contornos exatos da própria face projetada no espelho. As zonas limítrofes entre os valores não se definem com precisão, de modo que produzem nos espíritos os sentimentos mais estremecedores da indecisão, da falta de definição, da perda de sentido. Percebe-se que uma espécie de doença se espalhou por toda a sociedade, contaminando as mentes, as intenções, os sentimentos, o comportamento e a educação dos jovens: nada é feito sem um cálculo escrupuloso de vantagens e desvantagens, lucros e recompensas materiais. Cada indivíduo é valorizado pelo que produz e não pelo que é.

A humanidade, frente a esta realidade, se torna perplexa e caótica; a ética passa a não ter mais parâmetros e/ou delineios, do que seja certo ou errado, bom ou mau. Muita das vezes o individualismo e/ou o subjetivismo exacerbado (e assim, o que é ou não proveitoso ao indivíduo e/ou à comunidade) ditarão o caminho a ser seguido.

Na advocacia, esta realidade não é diferente; e a mesma vem enfrentando certos desafios que se entrechocam com seus princípios éticos e à própria natureza e importância do ofício - e circunstâncias específicas práticas assim o revelam.


2. OS PROBLEMAS ÉTICOS SURGIDOS NA ADVOCACIA ATUAL

Fruto desta realidade pós moderna, se apercebe – com certa estranheza – que a advocacia mais e mais vem se aproximando de termos, atitudes e compleições fronteiriças a um "mercado", a uma verdadeira empresa, onde o poder econômico fala mais alto, e onde, via reflexa, escritórios de advocacia com maior estrutura e portento (as ditas bancas) se assenhoram das grandes causas e/ou de grandes clientes e subjugam – através de terceirizações diretas ou não – aquele pequeno escritório ou aquele advogado recém formado – e que, no desespero ou na ânsia inadvertida de crescimento profissional, aceitam tal subjugo.

Não é incomum assim que grandes clientes, contratem grandes escritórios de advocacia em grandes centros urbanos (sintoma da lógica do dito "mercado" "nos tempos pós modernos") para que representem seus interesses numa área geográfica imensa. Neste passo, como tais grandes escritórios não pretendem perder tais clientes, por ser esta circunstância em si um "status" – para não dizer um "marketing" - (outro sintoma da pós modernidade: os chamados "rankings" da advocacia, que, dentre outros elementos, se valem do portento da clientela de um escritório), assumem as respectivas causas, mesmo sabendo (por mais que possuam várias filiais no país) ser impossível acompanhá-las diretamente em todos os rincões deste continental Brasil. Até aí tudo bem, já que é merecedor à respectiva banca, atuar em prol destes grandes clientes e/ou em prol de grandes causas, em face da honorabilidade, dedicação, reputação e conceito dos advogados que a compõem.

O problema surge – o que também não é incomum – quando tais grandes escritórios, visando atingir o desiderato de cumprir com contratos de prestação de serviço destes grandes clientes em locais onde não possui filial ou correspondente fixo, se valem de novos advogados (e em situação de desespero) e/ou daqueles que não primam pela ética profissional (o que se pensa ser verdadeira exceção) para que cumpram diligências isoladas várias (tais como fotocópias de documentos, comparecimento em audiências, protocolizações de iniciais, etc.) a um irrisório ou aviltante valor de honorários. Numa afronta, de ambos os lados, aos ditames do Código de Ética e Disciplina da OAB [04]. Uma verdadeira autofagia na profissão!

Mais ainda; tem-se apercebido uma tendência a que certos escritórios brasileiros incorporem a compleição de escritórios estrangeiros (notadamente dos EUA) ou mesmo a intenção de que estes escritórios aqui atuem e com o mesmo feitio agressivo e destoante ao nosso Código de Ética [05] - circunstância esta a que a OAB nacional está se debruçando para emitir um parecer. As imbricações com o dito "mercado" [06] ficam cada vez mais evidentes - tanto, que palavras vinculadas a uma verdadeira empresa ou aos ditos "estrangeirismos", tais como "marketing", "rainmaking", "full service", estão mais e mais associadas à advocacia. Recentemente fora exibida matéria em revista nacional (voltada para negócios e finanças!) sobre escritório de advocacia que – no externar daquela revista – aparentava ser uma "call center" (um centro de chamadas); ali ainda lia-se que referido escritório, pretendendo inovar em certos aspectos, contrariou a própria OAB.

Em tudo isso se apercebe a nítida ligação com o chamado "contencioso de massa" e, via direta, no barateamento de custos de uma empresa e/ou instituição (seja na condição de cliente, seja na de escritório de advocacia).

Há em todas estas circunstâncias, grande influência da maioria das instituições de ensino superior de direito do país, que ao invés de formar o ser humano aluno para o lado humano, o faz para o mercado – mercado em si ou mercado dos concursos.

Sob a ótica da própria OAB, denota-se que algumas Seccionais vêm aderindo a certas inovações, de há muito clamadas por alguns profissionais, e que se afronteiriçam desta apontada "tendência" de feição mercadológica. Mais precisamente, diz-se respeito da permissão do uso de cartões de crédito – e/ou débito - em escritórios de advocacia, decisão tomada pela OAB/SP em 17/06/2010 [07] e, logo após, em 14/09/2010, pela OAB/MG [08] - ferramenta esta, notoriamente jungida ao mercado em geral.


3. DOS PRINCÍPIOS ÉTICOS DA ADVOCACIA EM CONTRASTE

É clara a emanação ética advinda do artigo 5° do Código de Ética e Disciplina da OAB [09] quando divorcia do mister – ou sacerdócio - advocatício "qualquer procedimento de mercantilização".

Ora, advocacia não é mercancia! E sempre válida é a lição – ou recomendação - magistral do incomparável Rui Barbosa aos iniciantes na advocacia: "Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. [10]"

A altivez, a sobriedade, a importância, a seriedade, a história da advocacia – tão bem representada pelo citado Rui Barbosa – não imbrica – nem deve se imbricar – com a mercantilização. Mercantil pode ser o cliente, nunca o advogado!

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E este caminho ético entende-se ser o correto – apesar de algumas poucas divergências – em face, frisa-se, à nobreza da profissão de advogado, com papel fundamental à administração da justiça [11]. Não se descurando do fato de que tal posicionamento não fora cristalizado de forma açodada, e nem pelo pensar de poucas pessoas. As regras – poder-se-ia falar: a conduta ética - de toda e qualquer entidade eminentemente de natureza mercantil é diversa – por ser mais agressiva e mais permissível – da que deve nortear-se a classe advocatícia. Não se pode vislumbrar, por exemplo, anúncio de serviços advocatícios em televisão [12], ou promoções de honorários [13] e/ou toda e qualquer estratégia de "marketing" vinculada a um ente mercantil; sob pena de ferir a própria imagem da advocacia, de derruir a credibilidade e confiança perante a sociedade e a Justiça.

Sempre bem vinda é – e sempre será – toda e qualquer inovação em prol da advocacia (até porque tal realidade é inescapável e necessária). O que se discute e o que se propõe a refletir é se tais inovações não estariam solapando – ou tentando solapar - princípios éticos fundamentais e inarredáveis da advocacia. Se em nome desta inovação, deste "avanço", não estar-se-ia pondo em aparte a própria identidade ética do advogado.


4. CONCLUSÃO – DA REFLEXÃO A QUE SE PROPÕE

A realidade pós moderna é irrefreável – assim como todas as suas particularidades. Entretanto, tais aspectos – tidos como inovadores – não podem descurar de princípios éticos elementares da advocacia. Isso, em respeito à sociedade – aí incluindo-se os clientes -, à Justiça e ao próprio advogado – que não pode aceitar o já cunhado processo autofágico da profissão.

Na feliz e muito propagada lição de Paulo Luiz Neto Lôbo [14]:

A ética profissional impõe-se ao advogado em todas as circunstâncias e vicissitudes de sua vida profissional e pessoal que possam repercutir no conceito público e na dignidade da advocacia. Os deveres éticos consignados no Código não são recomendações de bom comportamento, mas normas que devem ser cumpridas com rigor, sob pena de cometimento de infração disciplinar punível.

Certos aspectos aqui gizados são – ou devem ser – inflexíveis, tal como o jugo (por que não falar em escravização) de alguns poucos grandes escritórios de advocacia em desfavor de novos advogados e/ou daqueles já experientes profissionais que não se emendam eticamente. Cabe aí à OAB obstar tal círculo vicioso. De um lado há que fazer profunda orientação aos novos advogados, para que não caiam na tentação do ganho imediatista e vil, não se submetendo aos desmandos éticos destes grandes escritórios de advocacia; não aceitando prestar serviços em contraprestação a honorários irrisórios e/ou vis – não se olvidando de efetivar-se um amplo projeto nacional para que estes novos advogados tenham a oportunidade de trabalhar condignamente, face à notória dificuldade dos mesmos ao egressarem das instituições de ensino superior. De outra banda, cabe ainda à OAB fiscalizar com rigor tais práticas e punir administrativamente (após regular processo) tanto o grande escritório quanto o advogado que se submete a tal subjugo – em face à falta ética de ambos.

Noutros aspectos, cabe uma profunda reflexão acerca dos rumos que a advocacia vem tomando hodiernamente. Em nome da inovação, em nome do mundo (pós) moderno, não estar-se-ia desrespeitando a diretriz ética profissional que veda "qualquer procedimento de mercantilização"? Não haveria aí o descambo à mercancia? Não ficaria comprometida a própria imagem – que pelo menos sempre se pretendeu ter – da advocacia? Qual seria a credibilidade frente ao Judiciário em geral e a sociedade (e/ou a clientela)?

É preciso ter muito cuidado para que a advocacia não enverede por uma senda sem fronteiras, desmerecendo o importante papel constitucional do advogado. A advocacia – e todos os seus tradicionais princípios - sempre em primeiro lugar. O poder econômico e mercadológico, via reflexa, não devem se imiscuir com a nobre profissão.

A influência da advocacia estrangeira deve ser vista de forma bastante limitada; o que não importa – e nunca importará – em medida anti democrática; muito pelo contrário, a robustez ética do advogado brasileiro é fator decisivo para a democracia. Isso implica em soberania, em confiança, em credibilidade, em corroboração da seriedade e da importância do advogado na administração da justiça – tal qual emergido de nossa Constituição Federal.

Por fim, cabe à OAB – e por extensão, a todos os advogados – enfrentar tais questões, com detida reflexão e serenidade, para a efetiva aplicação prática; nunca perdendo de vista os valores éticos inquebrantáveis da profissão.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.

BITTAR, Eduardo C. B.. Curso de Ética Jurídica: ética geral e profissional. 6ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

LÔBO, Paulo Luiz Neto. Comentários ao Novo Estatuto da Advocacia e da OAB. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1994.

MATOS, Carolina. OAB discute mais restrições a estrangeiros. Folha de São Paulo, 21 jul. 2011. Mercado, ps. B1 e B3.

MOSCHELLA, Alexandre. A salsicharia do direito no JBM. Disponível em: < http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/0990/noticias/a-salsicharia-do-direito>. Acesso em: 20 jul. 2011.


Notas

  1. É comum associar-se a popularização do termo ao sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
  2. O francês Gilles Lipovetsky cunha as expressões "era do vazio" e "hipermodernidade"; já o italiano Domenico De Masi prefere a expressão sociedade "pós industrial".
  3. BITTAR, Eduardo C. B.. Curso de Ética Jurídica: ética geral e profissional. 6ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. ps. 78/79.
  4. "Art. 41. O advogado deve evitar o aviltamento de valores dos serviços profissionais, não os fixando de forma irrisória ou inferior ao mínimo fixado pela Tabela de Honorários, salvo motivo plenamente justificável."
  5. Vide a respeito, com mais detalhes, matéria do jornal Folha de São Paulo – ironicamente no caderno "mercado – do dia 21/07/2011, ps. B-1 e B-3.
  6. Até já se cunhou a expressão "mercado jurídico".
  7. Decisão que chegou a Turma 1 de Ética Deontológica do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB SP.
  8. Decisão unânime do Conselho Seccional.
  9. "Art. 5° O exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização."
  10. BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006. p. 60.
  11. Vide artigo 133 da Constituição Federal.
  12. Vide "caput" do artigo 29 do Código de Ética e Disciplina da OAB.
  13. Vide § 1° do artigo 31 e artigo 41 do CEDOAB.
  14. LÔBO, Paulo Luiz Neto. Comentários ao Novo Estatuto da Advocacia e da OAB. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica. 1994. p.116.
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Sobre o autor
Fabrizio Rodrigues Ferreira

Advogado em Frutal/MG. Professor de Ética profissional no curso de Direito da UEMG - Universidade Estadual de Minas Gerais-Campus Frutal-MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Fabrizio Rodrigues. Uma visão crítica da advocacia na pós modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2962, 11 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19743. Acesso em: 29 mar. 2024.

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