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A cláusula geral da boa-fé objetiva e a segurança jurídica

15/08/2011 às 14:33
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RESUMO

Apresenta o artigo considerações gerais sobre o desenvolvimento do instituto das cláusulas gerais, como técnica legislativa voltada à superação do modelo positivista tradicional e, a necessidade de evolução do Direito como instrumento capaz de harmonizar e regular as relações havidas no corpo social. Aponta a utilização das cláusulas gerais como meio eficaz de pacificação de conflitos, com fundamento em valores de ordem superior, possibilitando ao aplicador do Direito embasar-se em princípios constitucionais e condutas adequadas ao comportamento social vigente, especificando formas de aplicabilidade da cláusula geral da boa-fé objetiva. Conclui, apresentando os parâmetros de utilização das cláusulas gerais, sem, contudo, comprometer a estabilidade da ordem jurídica vigente.

PALAVRAS-CHAVE: Cláusula Geral. Boa-fé objetiva. Segurança jurídica.


1 INTRODUÇÃO:

Instrumento essencial para o convívio harmonioso dos indivíduos no meio social, disciplinando as relações havidas entre os particulares e entre estes e o Estado constituído, o Direito necessitava evoluir juntamente com as significativas transformações ocorridas na sociedade durante o último século, alterando os alicerces de uma tradicional dogmática presente no sistema jurídico de característica fechada.

As constantes e velozes transformações pelas quais atravessa a sociedade desde meados do século XX inviabilizaram o ultrapassado modelo de tipicidade de caráter casuístico, inflando sobremaneira o sistema normativo vigente e ocasionando insatisfação quanto à aplicabilidade do direito e disciplinamento das relações sociais.

Restava, portanto, ultrapassado o modelo positivista utilizado pelos legisladores nos tempos passados, como forma de previsão pormenorizada dos comportamentos sociais, na tentativa de adequar o fato ocorrido ao ordenamento jurídico vigente. A tipificação pontual do fato com relevância jurídica, como exata adequação à norma legal para aferição do direito cabível, estaria aquém dos intentos da sociedade atual no disciplinamento das novas relações que se erigiam, mostrando-se, portanto, necessário o desenvolvimento de novas possibilidades de regulação social.


2 DAS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS:

Sem dúvida, as modificações sociais decorrentes das inovações do século passado também acarretaram inevitável transformação do pensamento moderno, rompendo com dogmas e paradigmas tradicionais, os quais embasaram por grande período de tempo o comportamento humano, e, por conseguinte, a atividade legiferante.

Nos dizeres de Humberto Theodoro Junior (2006, pg. 92):

"o século XX, ao lado de ter proporcionado um ritmo de evolução tecnológica à convivência humana sem precedentes, promoveu também uma indiscutível subversão cultural, destruindo e abalando valores que até então sustentaram, ética e juridicamente, a civilização cristã ocidental."

O Direito necessitava evolver em ritmo igual, ou equivalente, às constantes transformações havidas no corpo social, buscando regular os conflitos decorrentes de relações jurídicas com formatações inovadoras, e ainda, possibilitar aos seus aplicadores uma forma de albergar e regular situações as quais o ordenamento jurídico não seria capaz de compreender, e que a lei, fria e extremamente casuística mostrava-se insuficiente.

Restou constatado, portanto, que o modelo até então utilizado deixava de satisfazer os apelos sociais, mostrando-se incapaz de regular e harmonizar o corpo social hodierno, servindo esse padrão como instrumento da perpetração de injustiças, quando forçosa a aplicação de norma simplesmente compatível com uma determinada situação, mas inadequada ao caso concreto.


3 DAS CLÁUSULAS GERAIS

Embalados pela insatisfação com o modelo positivista vigente, e motivados pelo pensamento principiológico constitucionalista que efervescia, a ciência jurídica e os órgãos legislativos desenvolveram técnica legislativa que permitiria a adequação do ordenamento jurídico à realidade social, possibilitando ao aplicador do Direito aplicar valores de ordem superior, verificando fundamentos que estariam além da exatidão e calculismo normativo, ampliando a atividade jurisdicional e autorizando o aplicador do direito a realizar efetiva justiça à situação que lhe fosse apresentada.

Essa técnica legislativa desenvolvida consistia basicamente na edição de conceitos propositalmente abertos e imprecisos, cláusulas gerais que graças à sua generalidade, tornava possível albergar um vasto grupo de situações a uma mesma conseqüência jurídica (FARIAS e ROSENVALD, 2009, pg. 235).

Dentre as funções desempenhadas pelas denominadas cláusulas gerais, cumpre apontar a possibilidade da criação de normas de alcance geral pelo juiz, especificando-se o sentido de alcance da norma genérico em virtude da reiteração dos julgados e reafirmação dos fundamentos da decisão judicial, não obstante mantenha-se intacto o sistema jurídico positivado e a separação dos poderes estatais. (MARTINS-COSTA, 2003, pg. 243)

Ainda, por apresentam significação imprecisa, vaga, aberta, as cláusulas gerais permitem a adequação de um determinado sistema jurídico a valores de ordem superior, referindo-se a tipificações e comportamentos carregados de uma carga axiológica de nível elevado, possibilitando ao aplicador do Direito basear sua decisão em princípios superiores, diretivos dos padrões de conduta social, econômica e política, e que melhor se adéquam às constantes transformações da sociedade.

Nas palavras de Judith Martins Costa (2000, pg. 204):

"As cláusulas gerais constituem o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das normas constitucionais e de diretivas econômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua sistematização no ordenamento positivo."

Cláusulas gerais, dessa forma, são expressões fluidas e imprecisas que materializam na ordem jurídica vigente valores superiores, e que possibilitam adentrar à legislação infraconstitucional condutas anteriormente verificadas de modo exclusivo em ordenamentos de hierarquia superior, de cunho eminentemente constitucional.

Como técnica legislativa inovadora, e apresentando funcionalidades aptas a regular de forma mais satisfatória as relações jurídicas atuais, permitindo ao aplicador do direito uma possibilidade maior de efetivar decisões com conteúdo mais justo e equânime ao caso concreto, as cláusulas gerais se alastraram por todo o ordenamento jurídico mais moderno, repercutindo inevitavelmente no sistema jurídico brasileiro. Dentre elas, pode-se citar os dispositivos constantes do Código de Defesa do Consumidor que buscam tutelar os direitos do cidadão de forma a equiparar sua condição de fragilidade perante os grandes grupos econômicos e demais fornecedores de bens e serviços.

Ainda, cite-se também as disposições constantes do novel Código Civil Brasileiro, referindo-se expressamente à expressões de conteúdo genérico e abstrato, tais como os princípios da Função Social do Contrato, Probidade Boa-fé objetiva, previstos precisamente no art. 421 e 422, respectivamente, do citado ordenamento, e apresentados como orientadores das relações contratuais.

Precisamente, no que se refere à cláusula geral constante da boa-fé objetiva, orientadora das relações contratuais nos termos do art. 187 e 422 do Código Civil Brasileiro, sua aplicação não se restringe ao período de vigência dos contratos, mas antes e depois do encerramento dos mesmos, de forma que na aplicação da referida cláusula o aplicador do direito toma como base um padrão de conduta atribuído ao homem médio, considerando os aspectos sociais envolvidos, traduzindo-se a boa-fé como uma regra de comportamento, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos. (VENOSA, 2010, pg. 387)

Frise-se que os parâmetros de conduta se estendem a credores e devedores, e não se restringem exclusivamente ao objeto da prestação, mas se desdobram a prestações secundárias, representadas por deveres laterais de conduta que podem repercutir em situações prévias ou posteriores à vigência do contrato, consoante os ensinamentos de Maria Judith Martins Costa (2003, pg. 259):

"Estão, antes, referidos ao exato processamento da relação obrigacional, isto é, à satisfação dos interesses globais envolvidos na relação obrigacional, em atenção a uma identidade finalística, constituindo o complexo conteúdo da relação que se unifica funcionalmente."

Nesse sentido, o atuar do magistrado não consiste em um sentimento interno ou mero capricho de sua racionalidade, mas sua convicção embasa-se em fatos objetivamente justificáveis, em conformidade com as exigências e valores presentes no ordenamento jurídico vigente, na Constituição e nos princípios jurídicos. (FARIAS e ROSENVALD, 2009, pg. 131)

Desse modo, a construção do sentido e amplitude das cláusulas gerais será definido pela constante atividade jurisdicional, possibilitando ao aplicador do direito, no mister de suas atribuições, concentrar o sentido que entender cabível ao caso concreto, ante à análise da realidade social vigente. E, nesse sentido, alguns julgadores já tem se utilizado desses parâmetros na prestação de sua atividade jurisdicional, senão vejamos:

DIREITO CIVIL. OFERTA DE IMÓVEL À VENDA. CORRETA INFORMAÇÃO E TRANSPARÊNCIA. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. RESCISÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DIANTE DO INADIMPLEMENTO DO DEVER DE INFORMAR. 1 – Trata-se de ação intitulada de "rescisão de escritura pública de compra e venda com pacto adjeto de hipoteca", ajuizada por comprador em face da vendedora (CEF) sob o fundamento de que houve violação à boa-fé contratual, considerando que o adquirente não foi informado a respeito da possibilidade concreta da presença de terceira pessoa no imóvel. 2 – A cláusula "no estado em que se encontra" somente poderia ser considerada no contexto do estado de conservação do imóvel, e não quanto à ocupação do imóvel. 3 – Há determinados deveres implícitos aos contratos de adesão (como no caso da venda de vários imóveis pela CEF), entre eles o de informar corretamente os interessados da situação jurídica do imóvel que, se descumpridos, ensejam a aplicação de medidas sancionatórias como a rescisão do contrato e o ressarcimento dos prejuízos sofridos no campo patrimonial. 4 – Apelação conhecida e improvida. (AC 9002142889, Desembargador Federal Guilherme Calmon Nogueira da Gama, TRF2 – 5.° Turma, 03/09/2003) (grifo nosso)

Contudo, em razão da referida cláusula geral somente restar expressa no ordenamento jurídico a partir da edição e vigência do Código Civil Brasileiro, a aplicabilidade do instituto ainda é pequena, representando parcela reduzida ante à infinita quantidade de litígios em trâmite no país.

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4 DA SEGURANÇA JURÍDICA

Diante dessa flexibilização de conceitos e variadas possibilidades de aplicação normativa, um inevitável questionamento se levanta: Seria capaz o Direito de evoluir de forma paralela às transformações do corpo social, estabelecendo ordenamentos jurídicos dotados de relativa elasticidade, implantando no sistema jurídico expressões vagas e imprecisas como as cláusulas gerais, sem, contudo, comprometer a segurança jurídica advinda da observância do princípio da legalidade e base fundamental do Estado Democrático de Direito?

A resposta para tal indagação remete à efetiva atividade jurisdicional, que, prestada pelos aplicadores do direito requerem moderação e limites no desempenho de suas atribuições. Assim, a aplicação das cláusulas gerais em flagrante excesso tende a representar arbítrio, e, por conseguinte, traz injustiça às partes envolvidas. Atuar nesse sentido importa em consagrar inevitavelmente a insegurança jurídica, impedindo que o fato trazido para análise e decisão receba tratamento adequado aos princípios e circunstâncias que o entendimento genérico recomendaria ao caso, conforme possibilita as cláusulas de conteúdo semântico abstrato.

Assim, a aplicação da cláusula geral pelo magistrado afastar-se-á do arbítrio do e deixará de representar insegurança ao sistema jurídico vigente quando as razões de convencimento e os fundamentos decisórios do juiz forem plenamente explicitados na sentença, apontando todos os aspectos que o levaram a decidir naquele sentido, os quais indubitavelmente representarão o significado real albergado pela conduta mediana, representada pela respectiva expressão genérica.

E, a utilização do referido instituto como fundamento da prestação jurisdicional e efetivação da justiça social, somente alcançará tal objetivo e assegurará a segurança ao sistema jurídico, se o aplicador do direito atuar nos moldes acima explicitados, zelando pela discriminação plena dos fundamentos e razões decisórias, consoante os padrões de aplicabilidade havidos e exigíveis no corpo social, e ainda, respeitando a confiança recíproca depositada pelas partes na concretização do negócio jurídico.

Repita-se, no que se refere à boa-fé objetiva, a atuação e aplicação dessa espécie de cláusula geral dentro dos valores consagrados e compreendidos pela expressão e nos moldes de exame e subsunção pelo magistrado do caso concreto aos aspectos genéricos, abstratos e orientadores do corpo social, bem como os intentos extrínsecos que permeavam o negócio jurídico, não permitem concluir pela efetivação de qualquer insegurança ao sistema jurídico vigente, vez que a decisão delimitará precisamente as razões decisórias do julgador, as quais certamente corresponderão às necessidades das partes, equilibrando a relação jurídica apresentada.


5 CONCLUSÃO

As cláusulas gerais, dentre elas a da boa-fé objetiva, em razão de seu conteúdo semântico impreciso, aberto, vago, pode transparecer em sua essência como uma fonte de perpetração da insegurança ao sistema jurídico. Contudo, a aplicação do referido instituto em consonância aos princípios de ordem constitucional, limitando-se a atuação jurisdicional aos valores contidos em uma ordem superior vigente, bem como a criteriosa discriminação das razões decisórias pelo magistrado impede que as cláusulas gerais sejam instrumento para a concretização do arbítrio e insegurança jurídica temidos pela sociedade, resguardando ao Direito o atributo de harmonizador da "paz social".

A atuação judicial, portanto, encontra seus limites nos valores contidos em normas e princípios constitucionais, vinculando-se a legitimidade da decisão judicial baseada em cláusulas gerais a todo um sistema jurídico integrado, onde as normas de hierarquia inferior correspondem e interrelacionam-se aos preceitos contidos em disposições de nível superior, de forma que a somente a objetiva extrapolação desses parâmetros tende a consagrar o arbítrio e a insegurança jurídica.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL, Tribunal Regional Federal da 2° Região – AC n.° 9002142889. Desembargador Federal Guilherme Calmon Nogueira da Gama – 5.° Turma, Julgado em 03/09/2003. Disponível em http://www.trf2.jus.br> Acesso em 08/06/2011.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2009.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um "sistema em construção" e as cláusulas gerais no projeto do Código Civil Brasileiro. In: FERREIRA, Aparecido Hernani (Coord.). Onovo códigocivildiscutidoporjuristasbrasileiros. Campinas, SP: Bookseller, 2003. cap. 4. p. 227-264.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica. Revista da Escola Nacional da Magistratura, Brasília, v. 1, n.1, p. 92-120, abr. 2006.

VENOSA, Silvio de Sálvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 10 ed. – São Paulo : Atlas, 2010.

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Sobre o autor
Diogo Fantinatti de Campos

Advogado na cidade de Joinville/SC. Graduado em Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro - Fundinop - UENP. Pós-graduando em Direito Civil e Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Diogo Fantinatti. A cláusula geral da boa-fé objetiva e a segurança jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2966, 15 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19763. Acesso em: 19 mar. 2024.

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