Ao contrário do que é noticiado rotineiramente na imprensa (sobretudo a sensacionalista) e do pensamento arraigado no inconsciente coletivo, a Lei n.º 8.069/90, o famoso e conhecido Estatuto da Criança e do Adolescente, prevê uma série de medidas socioeducativas que podem e devem ser aplicadas ao adolescente infrator.
Tais medidas, cujo caráter é essencialmente educativo, pedagógico e ressocializador, estão previstas no artigo 112 da Lei n.º 8.069/90, indo, desde a branda advertência, destinada a infrações de pequena gravidade, até a drástica e excepcional internação, medida privativa de liberdade que deve ser aplicada somente em casos graves, de violência ou grave ameaça à pessoa (homicídio e roubo, por exemplo), ou quando houver reiteração no cometimento de outras infrações (uma série de furtos, por exemplo, colocando em risco a ordem social numa pacata cidade do interior).
Afora as hipóteses acima mencionadas, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 122, inciso III, prevê que a medida de internação também pode ser aplicada "por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta". É a chamada internação-sanção, que tem lugar quando o adolescente não cumpre medida socioeducativa que lhe fora imposta anteriormente, após o devido processo legal.
E a ressalva não é por acaso, sendo necessário pontuar, nesse aspecto, que o procedimento judicial para aplicação de medida socioeducativa inicia-se com a representação do Ministério Público e obedece ao trâmite processual previsto nos artigos 184 e seguintes da Lei n.º 8.069/90 – recebimento da representação, notificação do adolescente e de seus pais, audiência de apresentação, defesa prévia, audiência de instrução e julgamento, alegações finais e sentença –, com estrita observância dos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Ocorre que, não raramente, a medida aplicada por ocasião da sentença não é cumprida pelo adolescente infrator, o que pode dar ensejo à conversão em medida de internação "por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta", conforme preconiza o artigo 122, inciso III, da Lei n.º 8.069/90, instituto que guarda similitude com a regressão de regime prisional.
A conversão, contudo, não é admitida se a medida socioeducativa for aplicada em sede de remissão. São duas as formas de remissão previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente: a) uma de iniciativa do Ministério Público, concedida antes de iniciar o procedimento para apuração de ato infracional (antes do oferecimento da representação): b) outra concedida pelo juiz, depois de iniciado o procedimento, como forma de suspensão ou extinção do processo. Nas duas hipóteses, eventual medida socioeducativa cumulada com a remissão, se descumprida pelo adolescente, não pode ser convertida em internação, sob pena de ofensa ao princípio do devido processo legal.
É que a remissão, a bem da verdade, se constitui num acordo entre o Ministério Público e o adolescente infrator, tendo laços de estreiteza com a transação penal dos Juizados Especiais Criminais. Para a concessão da remissão, não é necessária a comprovação da responsabilidade do autor da infração, ou seja, não é necessária a existência de provas suficientes da autoria e da materialidade do ato infracional. É dizer, sua concessão não depende de instrução probatória e não requer o devido processo legal.
O artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal dispõe que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". No mesmo sentido é a disposição do artigo 110 da Lei n.º 8.069/90, de acordo com o qual "nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal". Ora, admitir a conversão de medida socioeducativa aplicada com a remissão em internação é coadunar com a imposição de medida privativa de liberdade de caráter sancionatório sem o devido processo legal, num flagrante e inaceitável desrespeito à Constituição Federal. Seria o mesmo que permitir a prisão do autor do fato que descumpre uma transação penal, o que é inconcebível.
Enfrentando o tema, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao julgar um Habeas Corpus no final do ano passado, decidiu que "ainda que a adolescente tenha descumprido a medida socioeducativa aplicada com a remissão (Prestação de Serviço à Comunidade), descabe convertê-la para a internação. Violação à garantia do devido processo legal"1.
Em suma e já concluindo, não é possível aplicar medida de internação em caso de descumprimento de medida socioeducativa aplicada cumulativamente com a remissão, sem antes retomar o andamento do processo, possibilitando ao adolescente comprovar, inclusive, sua inocência, observado os princípios do contraditório e da ampla defesa. A internação "por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta" somente tem lugar se a medida socioeducativa não cumprida tiver sido imposta por ocasião da sentença de mérito, após o devido processo legal.
Referências bibliográficas
CABRERA, Carlos Cabral. Direitos da Criança, do Adolescente e do Idoso, Carlos Cabral Cabrera, Luiz Guilherme da Costa Wagner Junior, Roberto Mendes de Freitas Junior. Belo Horizonte, Editora Del Rey, 2006
DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara. Estatuto da Criança e do Adolescente, Série Leituras Jurídicas, Provas e Concursos, Eduardo Roberto Alcântara Del-Campo, Thales Cezar de Oliveira. São Paulo, Editora Atlas, 2009
ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente, Doutrina e Jurisprudência, Valter Kenji Ishida. São Paulo, Editora Atlas, 2006
LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, Wilson Donizeti Liberati. São Paulo, Editora Malheiros, 2010
VALENTE, José Jacob, Estatuto da Criança e do Adolescente, Apuração do Ato Infracional à Luz da Jurisprudência, José Jacob Valente. São Paulo, Editora Atlas, 2005
Notas
1 TJRS, 8ª Câmara Cível, Habeas Corpus n.º 70039596796, Comarca de Passo Fundo, Rel. Des. Rui Portanova, julgado em 25/10/2010, extraído do site www.tjrs.jus.br, pesquisa realizada no dia 04/02/2011