Alheias as questões afetas à saúde pública, bem como os valores religiosos acerca do tema, sob o ponto de vista prático-jurídico, falar sobre a descriminalização do aborto perdeu a relevância.
O crime de auto-aborto [01], previsto no artigo 124 do Código Penal, é de difícil apuração e comprovação e, ainda que se consiga angariar elementos suficientes para uma condenação, a sua pena é irrisória (variando entre 1 e 3 anos de detenção), ou seja, inferior, por exemplo, à pena de furto simples (reclusão, de 1 a 4 anos).
Em primeiro plano, a polícia toma conhecimento da ocorrência de um auto-aborto basicamente por dois meios. O primeiro deles, numa situação de flagrância, em que a mulher é denunciada por familiares ou vizinhos logo após o crime. O outro, quando se localiza o feto, geralmente nas estações de tratamento de esgoto da cidade.
Quanto à primeira hipótese, o trabalho investigativo é mais simples e célere, na medida em que se lavrará o auto de prisão em flagrante, tomando assim o depoimento de parentes e vizinhos, além de checar as guias de atendimento de emergência do hospital em que a mulher findar internada.
No entanto, quando o feto é encontrado no esgoto, a investigação se torna mais complexa e, por consequência, mais demorada.
Para se ter uma ideia, a polícia passa a procurar – junto aos hospitais da região – a lista de mulheres que fizeram pré-natal, com o intuito de se alcançar quem pudesse ter interrompido a gestação.
Não se pode perder de vista que, dada a pena prevista para o delito, o lapso prescricional [02] igualmente é pequeno, muitas vezes insuficiente para se encerrar uma investigação de modo exitoso.
A prova pericial também é complicada.
Via de regra, o perito que analisa a mãe não consegue definir se o aborto se deu de forma provocada ou espontânea. Diante disso, torna-se imperiosa a produção de outra prova para robustecer os elementos capazes de condenar a ré, o que nem sempre é possível.
Imaginando que haja elementos suficientes para uma denúncia, ou seja, um laudo constatando o aborto, testemunhas declarando que a indiciada não desejava a criança ou mesmo que a viram tomando remédios abortivos, a dificuldade de uma condenação não se encerra.
É que, uma vez denunciada, a ré ainda tem a possibilidade da aplicação do instituto da suspensão condicional do processo, previsto no artigo 89 da Lei dos Juizados Especiais [03].
Assim, a ré poderá se beneficiar do chamado sursis processual, pagando cestas básicas ou prestando serviços à comunidade. Mais ainda. Ao final do cumprimento das condições impostas, seu processo será extinto e não restará qualquer mácula em sua folha de antecedentes penais.
Aventando a possibilidade de a ré não cumprir adequadamente com as condições estabelecidas, ainda há quem proponha uma "audiência de admoestação", ou seja, uma segunda chance de adimplemento das condições, para que a ré não veja seu processo retomado, a caminho do julgamento no plenário.
Por fim, somente no caso de (a) existir elementos suficientes contra a acusada; (b) ela não ter cumprido as condições da suspensão condicional do processo, é que o processo então seguirá seu trâmite, para que a ré seja julgada numa sessão plenária, onde – finalmente – os discursos sobre o aborto poderão ter alguma valia.
Se, depois de tudo isso, a ré for condenada, dada a pena prevista no Código Penal, ela a cumprirá em regime aberto, ou seja, prisão domiciliar.
Desse modo, a discussão jurídica acerca do tema, assim como o é no porte de drogas, já se esvaziou há tempos, servindo hoje tão-somente como um exercício de argumentação romântica para estudantes apaixonados no direito pelo direito.
Notas
- Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque. Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
- Prescrição é a perda do direito do Estado de punir por conta do decurso do tempo.
- Embora a lei preveja algumas condições para a benesse, via de regra as acusadas cumprem os requisitos para tanto.