Pesquisando os arestos do Egrégio STJ, verifica-se que a jurisprudência daquele tribunal superior ainda é divergente no que se refere à legitimidade do Ministério Público para a defesa de interesses individuais homogêneos. Os acórdãos contrários à integração do MP ao pólo ativo das lides envolvendo tais interesses afirmam que os mesmos devem ser objeto de pleito pelos respectivos titulares, uma vez que são de natureza divisível e perfeitamente identificáveis. Por sua vez, outras Turmas norteiam-se segundo as disposições do Código de Proteção de Defesa do Consumidor, o que, ao nosso ver, é o mais correto, dentro das diretrizes e objetivos traçados pelo modelo de Estado Democrático de Direito, considerando que tais interesses são relevantes por si só, nos dizeres da eminente Ministra Nancy Andrighi.
A Constituição Federal de 1988, em seu Título II, Capítulo I, os quais tratam dos direitos e garantias fundamentais e dos direitos e deveres individuais e coletivos, respectivamente, prescreveu que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), consignando, posteriormente, no art. 48 do ADCT que "o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor".
Numa análise preliminar, vislumbra-se que a própria Carta Magna conferiu status constitucional aos direitos do consumidor, ao determinar a promoção de sua defesa, na forma da lei (grifei). Daí dizer-se que o CDC possui vocação constitucional.
Todavia, o cerne da questão que trazemos à colação diz respeito justamente à Constituição Federal, no entender de juristas tradicionais, não ter vindo a conferir legitimidade ao Ministério Público para a defesa dos direitos de que tratamos no presente artigo, pois os mesmos não foram expressamente elencados pelo legislador constituinte no art. 129, III, in verbis:
Art. 129 – São funções institucionais do Ministério Público:
(omissis)
III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
Já em 1985 o Brasil ganhava, através da edição da LACP - Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), um importante instrumento de defesa dos interesses sociais. Mas aquela lei também não havia incluído expressamente os direitos individuais homogêneos no rol do seu art. 1º, IV, o qual também só cuidou de interesses difusos e coletivos, embora seja de inegável importância para o MP no exercício de seu mister, estando o órgão ministerial incluído dentre os legitimados a propor ações dessa natureza, quer seja como parte, quer seja como fiscal da lei (art. 5º, § 1º).
Pensamos ser de bom alvitre, antes de prosseguir em nossa análise, fornecer um breve conceito do que são os interesses individuais homogêneos, o qual nos é indicado pelo art. 81, III, ultima parte, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, cuja dicção é a seguinte:
Art. 81 – A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vitimas poderá ser exercida em juízo individualmente ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
(omissis)
III - interesses individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum (grifei).
A origem comum desses interesses é determinada pela situação fática que liga determinados indivíduos entre si, como, por exemplo, um contrato. Essa é a principal característica a ser observada.
Extrai-se do dispositivo acima transcrito que o CDC, como "sobre-estrutura jurídica multidisciplinar, aplicável em toda área do direito onde ocorrer uma relação de consumo", nos dizeres de Sérgio Cavalieri Filho [01], acabou por incorporar normas de caráter processual em sua estrutura. Prosseguindo em nosso exame, recorde-se que a competência para legislar sobre matéria processual é privativa da União, nos termos do art. 22, I do respectivo diploma.
Com isso, queremos dizer que, embora a CF/88 não tenha tratado de forma expressa acerca da competência do MP para a defesa de direitos individuais homogêneos, ao determinar que o Congresso Nacional elaborasse um código de defesa do consumidor, acabou por conferir poderes ao legislador consumerista para disciplinar a matéria.
José Afonso da Silva [02] consigna que "a Constituição foi tímida no dispor sobre a proteção dos consumidores. Estabeleceu que o Estado proverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII)", realçando a importância de sua inserção dentre os direitos fundamentais, ou seja, ou seja, conferindo àqueles a titularidade de tais direitos, bem como adverte-nos para a regra do art. 170, V, da CF/88, que toma a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica, o que, nos dizeres de Gomes Canotilho e Vital Moreira, vem a "legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista" (grifei).
Reportando-nos ao art. 127 da Constituição Federal, é possível verificarmos que, dentre as incumbências do MP, está a defesa dos interesses sociais. Proposto um diálogo entre a CF/88 e o CDC, pode-se estabelecer uma congruência entre a disposição constitucional e o art. 1º da lei consumerista, que consigna, já em seu preâmbulo, estabelecer normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social.
Sobre o tema, Nelson Nery Júnior baliza:
"(...) as normas do CDC são,"ex lege", de ordem pública e interesse social (art. 1º, CDC). Ao definir o perfil institucional do Ministério Público, o art. 127 da CF diz ser o parquet instituição que tem por finalidade a defesa da ordem jurídica, do regime democrático de direito e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, o ajuizamento, pelo Ministério Público, de ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos tratados coletivamente está em perfeita consonância com suas finalidades institucionais, sendo legítima a atribuição, ao Ministério Público, dessa legitimidade para agir, pelos arts. 81 e 82 do CDC, de conformidade com os arts. 127 e 129, IX, da CF".
Assim, se por um lado o legislador constituinte deixou de inserir expressamente os interesses individuais homogêneos dentre aqueles que são objeto da intervenção ministerial, a respectiva Carta nos permite interpretá-la de forma a considerar aqueles direitos como merecedores de tal tutela. E, como bem lembrado pelo festejado jurista supra, o já citado art. 129 da CF/88, em seu inciso IX, nos fornece outro elemento conclusivo no tocante à legitimidade ao MP nesse sentido, ao dispor que, dentre seu imperativo institucional, encontra-se o exercício deoutras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade.
No âmbito das normas programáticas do CDC, destaque-se que o art. 5º, II agasalhou a instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, na esfera do MP, como instrumento à consecução da Política Nacional das Relações de Consumo, objetivando garantir efetividade na defesa dos direitos do consumidor.
Não obstante a tradicional caracterização do Poder Judiciário como ente competente para a composição de conflitos de interesse, devido ao atual contexto social instalado pela globalização, pensamos ser um dever da magistratura sub-rogar-se no desempenho de funções estranhas à de sua competência estrita, com o fim de realizar efetivamente a justiça social, de forma a atingir os fins traçados pelo Estado Democrático de Direito, em resposta ao individualismo que outrora dominava a sociedade. Mais do que nunca, a função do juiz, como "administrador" das tensões sociais, emerge de forma destacada, sendo imperioso registrar o disposto no art. 5º da LICC, o qual determina:
Art. 5º - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
Na seara consumerista, esse poderoso dispositivo há de ser veementemente observado pelos magistrados, uma vez que o paradigma sócio-econômico reclama uma tutela enérgica por parte dos juizes, chegando a ser, ousamos dizer, até mesmo uma irresponsabilidade por parte do Judiciário o não reconhecimento do MP como instituição legitimada à defesa dos interesses aqui tratados.
Ademais, impende salientar que a permissão da intervenção ministerial é medida salutar a evitar decisões contraditórias sobre o mesmo fato, bem como a prestigiar a economia e celeridade processuais, e ainda a evitar o desgaste da máquina judiciária. Pensamos não ser sensato que seja dispensado tratamento individual a situações geradas por uma sociedade de consumo de massas. Da mesma forma, as questões levadas à apreciação do Judiciário devem receber tratamento massivo diante da permissão do ordenamento jurídico pátrio, em homenagem à dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, não havendo maior respeito à democracia do que tratar o mesmo fato de maneira uniforme.
Por derradeiro, recorremos-nos ao que afirmou Kazuo Watanabe, em seus comentários ao CDC, de forma categórica, e com rara felicidade, ao discorrer acerca das principais medidas protetivas do consumidor nele previstas: "De nada adiantará tudo isso sem que se forme nos operadores do direito uma nova mentalidade capaz de fazê-los compreender, aceitar e efetivamente por em prática os princípios estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor". Em outras palavras, tão importante quanto nosso avanço legal, é o correspondente avanço daquele que tem o dever de garantir a eficácia da lei perante a realidade social a que ela se destina tutelar. Dessa forma, a lei se engrandece. Caso contrário, tornar-se pequena e ineficaz.
Notas
- Citado por Werson Rego, in O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, a nova concepção contratual e os negócios jurídicos imobiliários: aspectos doutrinários e jurisprudenciais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pág. 09.
- In Curso de direito constitucional positivo, 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, págs. 254 e 255.