Desde a promulgação da Lei nº 12.015 de 7 de agosto de 2009, que, além de outras mudanças nos anteriormente chamados "Crimes contra os Costumes", hoje denominados de "Crimes contra a Dignidade Sexual", unificou os crimes de estupro e atentado violento ao pudor em um mesmo tipo penal (artigo 213 do Código Penal), manifestamos nossa consternação pelas consequências decorrentes da referida alteração legislativa.
Muito embora não tivesse sido um desejo objetivado pelo legislador conforme consignamos em artigo anterior, conforme entendemos a princípio, a modificação operada teria passado a dar tratamento benéfico aos agentes que cometeram as condutas delitivas sob a égide da norma anterior, na medida em que, unificados em um mesmo tipo, o estupro teria passado a ser um crime de conteúdo variado, ou tipo misto alternativo, sendo que aqueles que tivessem cometido ambas as condutas em um mesmo contexto fático só poderiam responder por um único crime [01].
Externaram opinião na mesma linha Guilherme de Souza Nucci [02], Rogério Greco [03], Fernando Capez [04], Rogério Sanches Cunha [05] e Damásio Evangelista de Jesus [06].
E num primeiro momento também foi esse o entendimento sufragado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, por sua Sexta Turma [07].
Passados pouco mais de dois anos da inovação normativa, diversas correntes se formaram a respeito do tema.
A Quinta Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em sentido diverso, posicionou-se pela manutenção da forma como a sanção era imposta segundo as disposições normativas anteriores, ou seja, fixou entendimento de que a prática de conjunção carnal e de demais atos libidinosos diversos mediante violência ou grave ameaça consubstancia crimes autônomos, ainda que previstos no mesmo artigo do Código Penal, motivo pelo qual deve ser aplicado o cúmulo material decorrente do concurso material de crimes em casos de prática de ambas as figuras no mesmo contexto fático [08].
O posicionamento adotado pela Quinta Turma baseou-se na inteligência de que o tipo penal do estupro seria um tipo cumulativo e não alternativo, como nós, ao lado dos autores já citados, entendemos num primeiro momento.
Por sua vez, o Egrégio Supremo Tribunal Federal já proferiu decisões no sentido de reconhecer como possível agora a continuidade delitiva entre a conjunção carnal e demais atos libidinosos mediante constrangimento, o que antes entendia ser impossível ao argumento de que o estupro e o atentado violento ao pudor eram crimes de espécies distintas.
Encontrando-se agora ambos tipificados como o mesmo crime, poderia ser reconhecida a continuidade [09]. No entanto, o Pretório Excelso não esclareceu se entende possível tal continuidade se os atos forem praticados no mesmo contexto fático contra a mesma vítima, ou apenas em contextos fáticos diferentes.
O que ficou claro é que a Suprema Corte considera ambos os atos (conjunção carnal e atos libidinosos diversos) como da mesma espécie, portanto, incriminados com a mesma objetividade jurídica.
Destarte, tendo proclamado a possibilidade de continuidade entre as situações diversas (conjunção carnal e outros atos libidinosos), ao argumento de as infrações serem da mesma espécie, é possível que o raciocínio leve aquele Egrégio Sodalício a considerar a continuidade quer em contextos fáticos distintos, quer no mesmo contexto.
Neste particular, coerente com a sua posição firmada no sentido de que o tipo penal ao prever o constrangimento à conjunção carnal goza de autonomia e independência em relação ao constrangimento a outros atos libidinosos, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu possível apenas a continuidade entre atos de conjunção carnal entre si, e atos libidinosos diversos entre si e não entre uns e outros. Neste diapasão, assentou que: "Se, durante o tempo em que a vítima esteve sob o poder do agente, ocorreu mais de uma conjunção carnal caracteriza-se o crime continuado entre as condutas, porquanto estar-se-á diante de uma repetição quantitativa do mesmo injusto. Todavia, se, além da conjunção carnal, houve outro ato libidinoso, como o coito anal, por exemplo, cada um desses caracteriza crime diferente e a pena será cumulativamente aplicada à reprimenda relativa à conjunção carnal" [10].
Debruçando sobre a complexidade da questão e sobre estas variadas teses veiculadas por consagrados doutrinadores e pelos Tribunais Superiores, considerando ainda a preocupação que desde o início manifestamos sobre o efeito benéfico (novatio legis in mellius) que a lei teria criado, revimos nosso posicionamento.
Como já havíamos dito naquela oportunidade, quando entendemos pela configuração de crime único com a alteração promovida pela Lei n.12.015/09, tal posicionamento, além de causar inconformismo, pois seria como uma "carta branca" para que o delinquente constrangesse a vítima a com ele praticar conjunção carnal e quaisquer outros atos libidinosos sem, contudo, ser punido mais gravemente por isso, também não foi objetivado pelo legislador [11].
Por tais razões, revendo o entendimento manifestado a princípio, concluímos que realmente o tipo penal do artigo 213 do Código Penal se trata de um tipo cumulativo, pois se não houver nexo causal entre os atos libidinosos diversos e a conjunção carnal, sendo aqueles meros atos preparatórios ou necessários ao próximo (praeludia coiti), deve ser afastado o entendimento de crime único.
A nossa proposta de adequação para a solução do entrave, contudo, não é nenhuma destas já suscitadas, embora o efeito prático seja equivalente ao da corrente adotada pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, isto é, o do cúmulo material entre as penas no caso da prática de mais de um ato no mesmo contexto fático.
Para a exata compreensão da nossa proposta, faz-se necessário uma breve incursão no instituto do concurso formal, bem como nos conceitos de ato e conduta.
O concurso formal previsto no artigo 70 do Código Penal ocorre quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não.
Como bem observam MIRABETE e FABBRINI, "para haver o concurso formal é necessário, portanto, a existência de uma só conduta, embora possa ela desdobrar-se em vários atos" [12].
Verifica-se, portanto, que uma mesma conduta pode ser fracionada em diversos atos. Entretanto, o que seriam atos e o que seria uma conduta?
A conduta, de acordo com a teoria finalista, mais adotada no Brasil na atualidade, seria a ação ou omissão, em regra consciente e voluntária, destinada a produção de um determinado resultado. Atos, por sua vez, seriam manifestações variadas que podem em conjunto compor uma conduta.
A conceituação, no entanto, em razão da tênue diferença que separa o mero ato da conduta, pode não ser bastante para distinguir em um caso concreto se estamos diante de uma pluralidade de atos ou de uma pluralidade de condutas para fins de caracterização de um concurso formal ou de um concurso material de crimes, respectivamente.
Para uma mais precisa identificação, são preciosos os ensinamentos de MIRABETE e FABBRINI. De acordo com os autores: "para fixar o conceito de unidade de ação, em sentido jurídico, apontam-se dois fatores: o fator final, que é a vontade regendo uma pluralidade de atos físicos isolados (no furto, p. ex., a vontade de subtrair coisa alheia móvel informa os distintos atos de procurar nos bolsos de um casaco); o fator normativo, que é estrutura do tipo penal em cada caso particular (no homicídio praticado com uma bomba em que morrem duas ou mais pessoas, há uma só ação com relevância típica distinta: vários homicídios). Quando com uma única ação se infringe várias vezes a mesma disposição ou várias disposições legais, ocorre o concurso formal" [13].
Considerando-se os fatores final e normativo citados pelos festejados autores, é possível com maior clareza identificar estar-se diante de pluralidade de atos ou de condutas. Além dos exemplos já expostos por eles, podemos fazer tal digressão com o caso de roubo em detrimento de vítimas diversas, com patrimônios distintos, num mesmo contexto fático. Nesses casos, os Tribunais vêm se posicionando de forma amplamente majoritária pela ocorrência de concurso formal de crimes, que efetivamente é a solução mais acertada. Afinal, veja-se: o fator final do agente é subtrair o patrimônio de outrem, ainda que várias vítimas; e o fator normativo, ou seja, a estrutura do tipo penal em casos tais, permite considerar que houve apenas uma ação com vários resultados. Em conclusão, a subtração dos bens de cada vítima seriam atos que, em conjunto, perfazem uma única conduta global, que é o roubo. Por terem sido lesados bens jurídicos diversos, consideram-se praticados diversos crimes, mas oriundos de uma única conduta. Por razões de política criminal a jurisprudência enquadra tal hipótese no concurso formal próprio, ainda que se possa argumentar que os resultados tenham surgido de desígnios autônomos.
O mesmo raciocínio deve ser utilizado para o caso de estupro em que o agente mantém conjunção carnal e pratica atos diversos considerados autônomos àquele em face da vítima num mesmo contexto. O fator final, no caso, é a satisfação da lascívia por parte do agente, independente de quantos atos tenha que praticar; o fator normativo resta caracterizado pela única conduta de "constranger mediante violência ou grave ameaça", mas que possui relevância típica distinta, pois acaba culminando em violações sexuais de naturezas também distintas, ainda que previstas no mesmo tipo penal. Trata-se, portanto, de uma única conduta, integrada por atos autônomos e independentes, com dois resultados (violações sexuais diversas da mesma vítima), o que configura o concurso formal de crimes.
Nesse caso, todavia, vislumbrando-se também desígnios autônomos do agente que pratica tanto a conjunção carnal como atos diversos, o mais prudente e adequado, invocando também razões de política criminal, seria efetivamente aplicar o concurso formal impróprio previsto no artigo 70, parágrafo único, do Código Penal, com o cúmulo material das penas, a fim de dar um tratamento mais rigoroso e evitar o que poderia ser considerado verdadeiro estímulo para que o criminoso cometesse sevícias diversas em detrimento de sua vítima.
Por fim, com relação à continuidade delitiva, conforme as disposições do Código Penal, tal ficção jurídica ocorre quando ficarem caracterizadas circunstâncias de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes que façam as condutas subsequentes serem havidas como continuação da primeira.
Nota-se, pois, que o primeiro requisito é a existência de uma pluralidade de condutas. "Existindo apenas uma ação, ainda que desdobrada em vários atos, haverá concurso formal" [14].
Diante disso, deve ser afastada a possibilidade de crime continuado no caso de prática de ato de conjunção carnal e atos libidinosos diversos independentes no mesmo contexto fático contra a mesma vítima, uma vez que, conforme já exposto, tais atos compõem uma única conduta, a caracterizar o concurso formal, e não a continuidade.
De outro lado, se houver pluralidade de condutas (destaque-se: contextos fáticos diferentes) e presentes as circunstâncias objetivas do artigo 71 do Código Penal a configurar o crime continuado, entendemos ser possível a aplicação da ficção jurídica, com a exasperação de uma das penas, devendo ser prestigiada a continuidade inclusive entre a conjunção carnal e atos libidinosos diversos, mesmo contra vítimas diferentes (artigo 71, parágrafo único, CP), na exata medida em que, como bem observou o Supremo Tribunal Federal, tais crimes agora devem ser considerados como da mesma espécie.
Notas
- Nesse sentido, ver o nosso: "O concurso entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor e a "novatio legis in mellius" trazida pela Lei nº 12.015/2009", disponível em<http://jus.com.br/revista/texto/13630>.
- In. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009, p. 18-19 e 63.
- In. Curso de Direito Penal: Parte Especial, 5ª ed., Niterói-RJ: Impetus, 2008, vol. III, Adendo: Lei 12.015/2009, p. 40.
- In. Curso de Direito Penal: Parte Especial, 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 44.
- In. Lei 12.015/09, Luiz Flávio Gomes et al. Comentários à reforma criminal e à Convenção de Viena sobre o direito dos tratados. São Paulo: RT, 2009, p. 36.
- In. Breves notas sobre a lei n. 12.015, de 10 de agosto de 2009, disponível em <http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=4885 >
- "HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CRIME CONTINUADO x CONCURSO MATERIAL. INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 12.015/09. MODIFICAÇÃO NO PANORAMA. CONDUTAS QUE, A PARTIR DE AGORA, CASO SEJAM PRATICADAS CONTRA A MESMA VÍTIMA, NUM MESMO CONTEXTO, CONSTITUEM ÚNICO DELITO. NORMA PENAL MAIS BENÉFICA. APLICAÇÃO RETROATIVA. POSSIBILIDADE.
- "PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PROVAS PARA A CONDENAÇÃO. EXPERIÊNCIA DAS VÍTIMAS. CRIME HEDIONDO. LEI Nº 12.015/2009. ARTS. 213 E 217-A DO CP. TIPO MISTO ACUMULADO. CONJUNÇÃO CARNAL. DEMAIS ATOS DE PENETRAÇÃO. DISTINÇÃO.
- Cf. HC 94.636/SP, HC 99.544/RS, entre outros.
- HC 78.667/SP.
- Conforme se verifica na exposição de motivos do PL 6744/2006, que após Emenda Aglutinativa redundou no PL 4850/2005 que culminou na Lei 12.015/2009, após esclarecer que a união dos dois crimes em um único tipo penal decorria de ambos possuírem a mesma pena, serem considerados hediondos, e tendo praticamente o mesmo objeto, o Deputado Robson Tuma esclarece que: "Nos casos práticos, para perfeita qualificação e aplicação da pena, compete ao magistrado efetuar análise precisa a respeito da existência de concurso entre os dois crimes, com a possível majoração da pena, o que efetivamente vem ocorrendo".
- In. Manual de Direito Penal, vol. I, 25ª ed., p.303.
- Ibidem, p. 303.
- Mirabete e Fabbrini, ob. cit., p. 305.
A Lei nº 12.015/09 alterou o Código Penal, chamando os antigos Crimes contra os Costumes de Crimes contra a Dignidade Sexual.
Essas inovações, partidas da denominada "CPI da Pedofilia", provocaram um recrudescimento de reprimendas, criação de novos delitos e também unificaram as condutas de estupro e atentado violento ao pudor em um único tipo penal. Nesse ponto, a norma penal é mais benéfica.
Por força da aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais favorável, as modificações tidas como favoráveis hão de alcançar os delitos cometidos antes da Lei nº 12.015/09.
No caso, o paciente foi condenado pela prática de estupro e atentado violento ao pudor, por ter praticado, respectivamente, conjunção carnal e coito anal dentro do mesmo contexto, com a mesma vítima.
Aplicando-se retroativamente a lei mais favorável, o apensamento referente ao atentado violento ao pudor não há de subsistir.
Ordem concedida, a fim de, reconhecendo a prática de estupro e atentado violento ao pudor como crime único, anular a sentença no que tange à dosimetria da pena, determinando que nova reprimenda seja fixada pelo Juiz das execuções.
(HC 144.870/DF, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 09/02/2010, DJe 24/05/2010)". No mesmo sentido, HC 167517/SP.
CRIMES AUTÔNOMOS. SITUAÇÃO DIVERSA DOS ATOS DENOMINADOS DE PRAELUDIA COITI. CRIME CONTINUADO. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE.
I - O exame do v. acórdão vergastado evidencia a existência de provas suficientes para amparar o juízo condenatório alcançado em primeiro grau. Ademais, não se admite, na via eleita, que se proceda a nova dilação probatória.
II - O consentimento da vítima ou sua experiência em relação ao sexo, no caso, não têm relevância jurídico-penal.
III - Na linha da jurisprudência desta Corte e do Pretório Excelso constituem-se os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor (na antiga redação), ainda que perpetrados em sua forma simples em crimes hediondos, submetendo-se os condenados por tais delitos ao disposto na Lei nº 8.072/90.
IV - A reforma introduzida pela Lei nº 12.015/2009 unificou, em um só tipo penal, as figuras delitivas antes previstas nos tipos autônomos de estupro e atentado violento ao pudor. Contudo, o novel tipo de injusto é misto acumulado e não misto alternativo.
V - Desse modo, a realização de diversos atos de penetração distintos da conjunção carnal implica o reconhecimento de diversas condutas delitivas, não havendo que se falar na existência de crime único, haja vista que cada ato - seja conjunção carnal ou outra forma de penetração - esgota, de per se, a forma mais reprovável da incriminação.
VI - Sem embargo, remanesce o entendimento de que os atos classificados como praeludia coiti são absorvidos pelas condutas mais graves alcançadas no tipo.
VII - Em razão da impossibilidade de homogeneidade na forma de execução entre a prática de conjunção carnal e atos diversos de penetração, não há como reconhecer a continuidade delitiva entre referidas figuras.
Ordem denegada.
(HC 104724/MS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, Rel. p/ Acórdão Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 02/08/2010)"