Um caso concreto envolvendo um jovem campeão regional de tiros na cidade de Cuiabá/MT deu ensejo a uma interessante e pretensiosa discussão: a atuação da autoridade policial durante o inquérito policial inquisitório e, especialmente, no ato de lavratura do flagrante de um fato típico, porém lícito ou não culpável.
Em suma, conforme foi noticiado pela mídia [01] em 11.03.2011 e ratificado pelo esportista, ele reagiu a um assalto em sua residência com nítido propósito de proteger sua família, sendo que os disparos efetuados causaram a morte imediata de um criminoso, deixando o outro gravemente ferido. O rapaz foi indiciado pela autoridade competente por homicídio consumado e tentativa de homicídio.
Criminalmente, é preciso vincar que as providências tomadas de imediato pelo Delegado estão conforme o art. 310, "caput", do Código de Processo Penal. É verdade que tal dispositivo refere-se unicamente ao juiz, e não dá, em tese, maior liberalidade à autoridade policial. Contudo, deve ser interpretado à luz da Constituição Federal pois, como se sabe, a nossa Lei Instrumental Penal foi editada sob atmosfera fascista possuindo índole nitidamente autoritarista em determinadas situações.
Por sua vez, o art.23 do Código Penal disciplina as excludentes de ilicitude e dispõe expressamente em seu inciso II que "não há crime quando o agente pratica o fato: em legítima defesa". Assim, em mera análise dos requisitos legais objetivos e subjetivos, percebe-se nitidamente que o jovem atuou, no mínimo, em legítima defesa de terceiro em perigo iminente. Isso parece ser inquestionável.
A grande questão, porém, é que a condição mais importante dessa excludente (ou justificante) é o elemento subjetivo, chamado "animus" de defesa. Em suma, quem efetua os disparos (ou pratica a agressão) deve ter perfeita noção de que está agindo dessa forma para se proteger, ou a terceiros. Se, nada obstante a situação, a intenção do autor dos disparos fosse pura e simplesmente "matar", responderia sim pelo homicídio.
Todavia, no caso em comento o esportista que também estuda direito ainda bem argumentou: "Você acha que eu gostaria de sacar uma arma e atirar contra duas pessoas? De matá-las? Alguém, em sã consciência, acha isso legal? É um bem que eu gostaria de angariar pra minha vida? Não, com certeza não".
Aliás, pelas próprias circunstâncias do fato e vida profissional poder-se-ia chegar a essa simples constatação e, ademais, excluir a tipificação pelo excesso doloso ou culposo previsto pelo parágrafo único, parte final, do aludido art. 23 do Código Penal.
Posto isto, de acordo com a tradicional teoria do delito (crime é fato típico e ilícito e, para alguns, culpável) é possível chegar a singelas conclusões.
Primeiro, os disparos efetuados pelo estudante configuraram fato típico de acordo com a letra fria da lei: homicídio doloso consumado em tipicidade imediata por força do caput do art. 121 do Código Penal ("Matar alguém") e a tentativa por força da norma de subordinação mediata constante do art. 14, inciso II do Código Penal; tipicidade por extensão.
Segundo, a conduta do autor dos disparos não é ilícita, pois o próprio art.23 do Código Penal assinala que "não há crime" quando o agente atua em qualquer daquelas hipóteses. Além do que, na oportunidade, o meio utilizado pelo acadêmico foi o necessário a repelir uma injusta provocação por parte dos assaltantes sendo utilizado, ainda, de modo moderado e no fito de proteger terceiros de um perigo atual!
Terceiro, o fato não é culpável, haja vista que no caso está presente a inexigibilidade de conduta diversa, uma excludente (dirimente) da culpabilidade. Em outras palavras, não seria razoável exigir, do autor dos disparos e naquela oportunidade, uma conduta distinta, uma vez que a lei não é feita para loucos ou heróis, mas para homens comuns, falíveis.
E, sob outro prisma, conforme a propalada teoria da imputação objetiva o fato nem ao menos seria típico, pois quem atua no sentido da proteção do bem jurídico em seu grau máximo (no caso a vida) não pode ser responsabilizado pelo resultado causado. Apesar de criticada, é bom destacar que essa teoria muitas vezes evita situações injustas, basta apenas ser aplicada corretamente pelo profissional.
Ora, sob a ótica do devido processo legal substantivo, quem tem de ser absolvido não deve sequer ser processado. É preciso acordar para a realidade, pois ninguém ignora o suplício que é um processo criminal sem justa causa, tanto é que nossos tribunais admitem a impetração de "habeas corpus" no fito de, por exemplo, trancar ação penal quando for caso de evidente atipicidade de conduta [02].
No caso analisado, em síntese, não seria lícito ao Delegado de Polícia conceder liberdade provisória ao indiciado uma vez que os crimes são punidos com reclusão. Todavia, ele poderia simplesmente interromper a prisão em flagrante após seu terceiro momento: a lavratura do auto.
Em outras palavras, haveria apenas a captura e condução coercitiva do acusado, evitando-se assim o seu recolhimento ao cárcere; solução que encontra respaldo no próprio art. 304, § 1º, primeira parte, da Lei Instrumental Penal.
Insta assinalar, ainda, que não há "usurpação da função jurisdicional", haja vista que a manifestação da autoridade policial se faz de forma precária, devendo apenas especificar porque há ou não o crime, porque existe ou não a excludente. Nada de exageros.
Ademais, se o Magistrado entender que não havia qualquer respaldo para soltar o indiciado, a prisão ainda será plenamente factível em face de seu caráter "rebus sic stantibus" – que autoriza sua decretação conforme o estado do processo.
Isso, sim, é devido processo penal.
Notas
- Disponível em:
- Em consonância com o entendimento do STF,o trancamento de ação penal constitui medida reservada a hipóteses excepcionais, como "a manifesta atipicidade da conduta, a presença de causa de extinção da punibilidade do paciente ou a ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitivas" (HC 91.603, Rel. Min. Ellen Gracie).
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