Capa da publicação Ação de reintegração de posse em "leasing" de carros: possibilidade de reconvenção
Capa: http://www.flickr.com/photos/nobmouse/4052848608/
Artigo Destaque dos editores

A reconvenção na ação de reintegração de posse

02/09/2011 às 16:33
Leia nesta página:

A reintegração de posse fundada no inadimplemento do contrato de "leasing" envolvendo a aquisição de veículos, o réu devedor pode não só se contrapor ao pedido do autor, mas, como reconvinte, exigir a nulidade de cláusulas abusivas.

A REINTEGRAÇÃO DE POSSE, prevista no Código de Processo Civil (Lei 5.869/73, arts. 926 e ss.), é uma modalidade de ação possessória com natureza jurídica dúplice - actio duplex, cujo objetivo é defender, manter ou reintegrar a posse de quem a propõe.

Distingue o caráter dúplice desta ação a hipótese de tanto o autor quanto o réu poderem fazer pedidos possessórios, ou seja, a dupla possibilidade de pedido possessório.

Assim, este instituto estabelece a viabilidade jurídica de também o réu defender a posse em conflito em razão da possibilidade de ser o autor a cometer a ilegalidade, podendo fazer o mesmo pedido que este, em contraposição.

Assim, diante das circunstâncias do caso concreto, reconhecida a proteção possessória a uma das partes fica, em princípio, excluído o direito do ex adverso; negada a posse do autor, ela se reconhece a favor do réu e o inverso também se aplica.

A RECONVENÇÃO (art. 297, CPC), por sua vez, é modalidade de resposta do réu mediante ação incidental (ou ação nova, segundo alguns autores, conexa à principal), pela qual ele demanda o autor no mesmo procedimento em que é demandado, para opor-lhe direito que lhe altere ou elimine a pretensão.

É instituto processual autônomo, embora não forme caderno apenso, manejado a par da contestação, simultaneamente e julgado conjuntamente com a ação principal. Extinta a principal, não haverá obrigatoriedade de extinção da reconvenção, podendo ela prosseguir até ulterior sentença.

Feitas estas considerações, passemos ao tema do artigo.

A REINTEGRAÇÃO DE POSSE de que se tratará aqui é matéria de direito bancário e se funda no inadimplemento do contrato de arrendamento mercantil na modalidade LEASING financeiro (Leis 6.099/74 e 11.649/08) envolvendo a aquisição de veículos.

Não se trata de financiamento, pois o mutuário não adquire a propriedade do bem objeto do contrato no ato da contratação; nem negócio de compra e venda devido à sua natureza locatícia. O leasing é um contrato com características próprias.

Por meio dele, nos termos da legislação atual, o contratante ‘arrenda’ o bem e, ao término do contrato, pode optar por renová-lo; devolver o bem à arrendadora; ou dela adquiri-lo pelo valor de mercado ou mediante pagamento de valor residual garantido (VRG) previamente definido. Considerando que este valor residual, geralmente diluído nas prestações do arrendamento, é pago antecipadamente, a única opção viável para o arrendatário, na prática, entre todas, é a compra do bem, e já será explicado o porquê.

Pondere-se que as opções de renovação ou devolução do bem são virtuais uma vez que o contratante só pode vislumbrá-las ao término do contrato, quando já terá pago parcelas que não são apenas de arrendamento, mas complemento do valor do bem, na hipótese da antecipação do valor residual garantido. Portanto, findo o contrato, o arrendatário terá pago a integralidade do valor do bem e do VRG, não havendo o que renovar. Se devolver o bem, a arrendadora poderá vendê-lo pelo valor que lhe aprouver e, só na hipótese de haver excesso no valor obtido, este será devolvido ao arrendatário.

Nesta modalidade de negócio, o arrendatário é mero possuidor direto e depositário do bem, com o domínio e a posse indireta, assumindo a responsabilidade e os encargos estabelecidos em lei.

No curso do contrato ocorre, por vezes, do adquirente, acometido por turbulências econômicas (gasta mais do que ganha) e financeiras (possui mais dívidas do que ganho líquido), ou ainda, devido ao alto custo do contrato - somente perceptível depois de firmado -, deixar de adimplir o leasing, incorrendo em mora. Nesta situação é quase certo que entrará na tortuosa lide da reintegração de posse pela qual, liminarmente e sem oitiva prévia, perderá a posse do bem que, ao final da demanda, restará consolidada em nome do arrendador. Além disso, poderá ser obrigado a adimplir todo o valor devido, até a data da reintegração, com encargos e reajustes pela taxa contratual, além de outros inúmeros ônus de inadimplência.

Por sua natureza dúplice, como já explicitado, a reintegração de posse é uma ação de difícil defesa quando o inadimplemento torna-se inconteste se precedido de notificação de mora. Ora, a questão é de direito. Ou o arrendatário está em dia com suas prestações e o bom direito lhe pertence ou está inadimplente e a razão cabe ao credor arrendador.

Não obstante, o arrendamento mercantil na modalidade leasing é um contrato preponderantemente de compra e venda, embora possua natureza atípica devido às notas de contrato locatício. Assim, como em qualquer negócio, está sujeito à norma jurídica e se lhe impõe o brocardo ‘tudo se pode contratar desde que nos limites da lei’. Embora estes não sejam geralmente observados nos contratos bancários que, por vezes, se revelam dissimuladores de abusos tão graves que dão margem à defesa levantar questões relevantes modificadoras do direito do credor.

Estas relevantes questões, porém, nem sempre dizem respeito diretamente ao pagamento ou não das prestações - pedra angular da referida lide. Por vezes, elementos satelitais da relação contratual mostram-se fortes o bastante para, mediante argumentação reconvinte, provar o bom direito do suposto devedor.

Certo é que há na doutrina e na jurisprudência quem não reconheça a possibilidade de reconvir num processo de reintegração de posse.

Ementa: Agravo de Instrumento. Arrendamento Mercantil. Reintegração De Posse. Natureza Dúplice. Reconvenção. Impossibilidade. Dada a natureza dúplice das ações possessórias, mostra-se incabível o pedido de reconvenção, por falta de interesse processual, pois a pretensão deve ser formulada em contestação. Não cabe reconvenção quando a matéria possa ser alegada com idêntico efeito prático em contestação. Agravo n° 1.0105.06.210668-4/001 – MG. Relator: Exmo. Sr. Des. José Flávio de Almeida.

Observa-se que o relator alega não haver cabimento para a reconvenção quando na hipótese de apresentar a mesma matéria na contestação, com idêntico efeito prático.

Unânimes são os críticos contrários a reconvir em ação de reintegração de posse quando o objeto é idêntico (ações conexas) e possível o pedido contraposto na própria contestação.

Correto e pacífico o entendimento. Porém, não é o que acontece na reconvenção.

Há os que a admitem [a reconvenção] e reconhecem sua utilidade quando os pedidos exorbitem a pretensão possessória, conforme o julgado abaixo:

Ementa. Apelação. Reconvenção – Possibilidade - Usualmente as ações possessórias dispensam o ajuizamento de reconvenção, até porque, como ações dúplices, permitem a veiculação de pedido contraposto no âmbito da contestação. Entendemos que a natureza dúplice não é ampla, porque abrangida somente pela pretensão (contraposta) ligada à tutela possessória e às perdas e danos (art. 922 do CPC). No mais, haveria campo para a reconvenção. (Apelação n° 1.142 358-4, SP – Rel. Alexandre David Malfatti).

Ora, o perspicaz intérprete da lei percebe que, embora haja pedidos conexos aos do autor, pode haver outros que àqueles extrapolem e é para obter uma resposta jurisdicional a estes pedidos que o réu ingressa no processo na qualidade de reconvinte.

Ademais, nos contratos de arrendamento mercantil envolvendo venda de veículos, há sutilezas que descaracterizam esta total identidade de objeto e pedido, cabendo outras tantas pretensões do réu, o que dá azo à reconvenção, como restará demonstrado.

O contrato que concretiza o negócio jurídico de arrendamento mercantil é formalizado por meio de instrumento padronizado: contrato de adesão lavrado exclusivamente pelo arrendador onde está descrito o bem arrendado e os termos gerais do acordo.

Nele é generalizada a prática de condições abusivas, como a não devolução/compensação do Valor Residual Garantido (VRG) do bem pago antecipadamente, em caso de rescisão do contrato (a cobrança antecipada não é considerada prática abusiva nem descaracterizadora do arrendamento mercantil); a cobrança de taxas e tarifas extras acrescidas ao valor real financiado; entre outros, que acabam por tornar o contrato extremamente oneroso e de difícil adimplemento para o arrendatário. Isto invariavelmente o leva à mora e consequente retomada do bem pela arrendante.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Por vezes, visando dificultar ao máximo a possibilidade de conferência dos cálculos das contraprestações e do VRG antecipado, sequer constam, expressamente nestes instrumentos, a taxa de juros praticada ou o indexador, o que representa violação à legislação vigente.

Como dito, a operação firmada exige uma parcela financeira como entrada, que é registrada como antecipação de parte do VRG, e outras parcelas que não são de arrendamento, mas de complemento do preço do bem - caso o arrendatário venha a optar, ao final do contrato, pela compra -, embora representem também antecipação mensal do VRG. Quer o arrendante que estes valores não retornem ao arrendatário na hipótese de rescisão do contrato.

O fato é que qualquer antecipação de valor residual, quando não tem a função de retornar para o arrendatário, se transforma em recurso destinado a quitar parte de pagamento do bem e, na hipótese de rescisão contratual, deve retornar ao arrendatário ou compensar-lhe o valor devido ("A jurisprudência desta Eg. Corte firmou-se no sentido de que "os valores pagos antecipadamente, a título de VRG, devem ser devolvidos à arrendatária, sob pena de enriquecimento ilícito da instituição financeira arrendante." AgRg no Ag. 1230887/PR, Rel. Min. Sidnei Beneti).

Por conclusão, a resolução do contrato e a reintegração do bem na posse da arrendadora acarretam, necessariamente, a devolução ao arrendatário dos valores pagos a título de VRG, até porque, estes representam quase metade do valor do bem.

No caso concreto, inúmeras ilegalidades podem ser observadas nos diversos contratos existentes no universo do nosso sistema financeiro. Nestes, algumas cláusulas podem ser observadas visando unicamente à ilícita majoração do preço do negócio contratado que, oneroso acima dos haveres do arrendatário, vai lhe gerar inadimplência.

Exemplo extraordinariamente lesivo ao consumidor cometido nestes contratos é a imposição de antecipação das prestações vincendas, em caso de rescisão, a título de indenização. Esta obriga o arrendatário a pagar o valor total do bem sem direito a integrá-lo ao seu patrimônio. Cláusula reconhecidamente leonina cuja exclusão é prática invariável nos nossos tribunais.

Assim também a imputação ao arrendatário dos ônus decorrentes do valor do arrendamento, somados ainda os encargos incorridos. Exemplificado: cobranças abusivas que são comuns a quase todos, entre elas as comissões; as taxas; os seguros e as tarifas; que, ilegais, passam a onerar, sobremaneira, as parcelas mensais a serem adimplidas e que jamais foram advertidas ao arrendatário, surpreendendo-o no carnê de pagamento. Tal prática contraria a natureza locatícia do contrato, antecipando valores não devidos.

Outrossim, estas cobranças visam a acobertar despesas administrativas cujo custo não pode ser remanejado à parte hipossuficiente do contrato, evidenciando vantagem exagerada à instituição financeira, o que também representa prática ilegal (CDC, arts. 4º, III e 6º, II). Assim, dos cálculos do suposto débito deve ser afastada a cobrança destes ônus que, repetimos, são considerados despesas operacionais, ônus da instituição financeira, não podendo ser ao consumidor repassado, sob pena de amparar-se o enriquecimento sem causa.

Verificando o caso concreto é fácil concluir que a inadimplência foi gerada por abusividade no contrato de arrendamento mercantil, podendo o réu devedor não apenas contrapor-se ao pedido do autor, mas, na qualidade de reconvinte, exigir a nulidade daquelas cláusulas abusivas, com fulcro nas disposições protetivas do CDC.

A decretação da nulidade das referidas cláusulas extirpará do contrato a cobrança em excesso, descaracterizará a mora e consequentemente a multa moratória. O valor pago indevidamente será restituído ao arrendatário, a título de indébito, ou compensado.

Da análise apurada do contrato, no caso concreto, muitos outros desmandos sanáveis podem ser percebidos e sua correção requerida em juízo mediante ação de reconvenção.

0205591-41.2009.8.26.0002. Apelação com revisão. Comarca de São Paulo. No caso em exame teve a Curadoria Especial que atua em favor do réu revel citado por hora certa o cuidado de ajuizar reconvenção, que foi bem processada e acolhida.

Conclusão óbvia é que a reconvenção na ação de reintegração de posse é meio idôneo, apto e eficaz para pleitear direito próprio que modifique ou extinga a pretensão alheia.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Elisabete Porto

Advogada, especialista em direito bancário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTO, Elisabete. A reconvenção na ação de reintegração de posse. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2984, 2 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19912. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos