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Princípio da obrigatoriedade da ação penal pública

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05/09/2011 às 15:32
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Analisa-se o princípio da obrigatoriedade da ação penal como garantia fundamental aos jurisdicionados, em conjunto com os princípios da oportunidade e do devido processo legal.

RESUMO: Este artigo procura expor e analisar o alcance do princípio da obrigatoriedade da ação penal em uma perspectiva de garantia dos direitos fundamentais. Através de sua análise em conjunto com o princípio da oportunidade, bem como com o devido processo legal, concluímos que o princípio da obrigatoriedade apresenta-se como garantia fundamental aos jurisdicionados.

PALAVRAS-CHAVE: PRINCÍPIO; AÇÃO; OBRIGATORIEDADE; GARANTIA.

ABSTRACT: This article seeks to expose and examine the scope of mandatory prosecution from the perspective of safeguarding fundamental rights. Through its analysis together with the principle of oportunity as well as due process of law, we concluded that the principle of compulsory presents itself as a fundamental garantee to tribunals.

KEYWORDS: PRINCIPLE; ACTION; MANDATORY; WARRANTY.


1. Introdução

Com a evolução histórica que culminou no surgimento do Estado Democrático de Direito e seus reflexos no processo penal, que deixou de ser inquisitório para ser acusatório público, o princípio da obrigatoriedade da ação penal ganhou importância. Este princípio constitui reflexo de toda a estruturação do processo penal como instrumento garantidor da liberdade dos indivíduos.

O processo penal é classicamente visto como possibilitador da punição dos autores de crimes, sendo seu fim a efetividade coativa do Direito Penal, desde que comprovada a culpabilidade do agente. Mas, ao Estado Democrático de Direito, não basta condicionar a efetividade do ius puniendi à demonstração, em um processo, da culpabilidade do autor do fato típico. É necessário, também, dotar esse processo de garantias assecuratórias de direitos fundamentais do réu como pessoa humana e cidadão dotado de dignidade.

Desta forma, o processo penal representa mais uma forma de autolimitação do Estado do que um instrumento destinado à persecução criminal. Assim, a finalidade do processo penal não se resume na efetividade do Direito Penal. Vai além, pois tem o escopo de estabelecer garantias ao cidadão frente o arbítrio do Poder Público. Disso resulta o aspecto garantístico do princípio da obrigatoriedade. Para atingir estas finalidades, o processo penal dispõe de regras procedimentais, as quais se assentam, fundamentalmente, em alguns princípios.

O princípio da legalidade apresenta-se como sustentáculo para a concretização dos fins do Estado, seja fazendo com que este atue de forma positiva no sentido de promover condutas, garantindo a liberdade individual, seja de forma negativa não violando esta liberdade. Há, assim, de um lado o poder-dever do Estado de reclamar da jurisdição a punição e o correlato direito do praticante da ação típica ao processo. O fundamento do processo penal é o resguardo da liberdade do réu.

Desta forma, o princípio da obrigatoriedade da ação penal é uma conseqüência lógica do princípio da legalidade que marca a atuação do Estado Democrático de Direito.


2. Histórico do binômio obrigatoriedade-oportunidade [01]

2.1 Direito antigo

No Egito antigo, vigorava a obrigatoriedade da acusação para as testemunhas do ato a ser reprimido. Se não houvesse a denúncia, as testemunhas eram castigadas. Elas eram obrigadas a denunciar e tinham o dever cívico de responder pela instrução.

Já na Mesopotâmia, a acusação era facultada a qualquer cidadão, que deveria provar sua alegação, sob pena de suportar a reprimenda. A iniciativa da acusação era discricionária.

No povo hebreu da Antigüidade, prevalecia a obrigatoriedade da acusação, quer pelos juízes que apuravam as infrações que lhes eram noticiadas, quer pelo parente da vítima de homicídio, que devia seguir até decisão final.

O povo grego foi o que mais demonstrou evolução na apuração das infrações, prevendo um sistema de coexistência entre a acusação privada e a oficial. Para a acusação privada, o ato acusatório e sua persecução eram facultativos, enquanto que para a acusação oficial, relativa a infrações de interesse geral, atuavam obrigatoriamente os magistrados. Nosso sistema tem esta mesma idéia, com a ressalva que a acusação oficial cabe ao Ministério Público e não ao próprio magistrado.

2.2 Direito romano

No período da realeza, havia o sistema inquisitorial primitivo, em que é possível identificar tendência para a atuação obrigatória na repressão dos atos reprováveis, pois a cognição do magistrado tinha caráter inquisitivo, inclinando-se em direção ao princípio da obrigatoriedade, posto que os magistrados com imperium não estavam somente autorizados, senão também obrigados a proceder nos assuntos de sua competência.

No período da República, em decorrência da atuação arbitrária dos magistrados, o poder de acusar e prender era eminentemente discricionário. O seu exercício dependia de uma valoração do magistrado, sobre a qual podiam influir tanto a natureza do delito, como a personalidade do acusado. No final da República, a prerrogativa de acusação passou a qualquer cidadão e, em casos especiais (adultério e plágio), necessariamente ao ofendido, os quais também agiam com discricionariedade; todavia, uma vez proposta a acusação, dela não podia mais dispor. Neste período, não existia o dever de propor uma querela, porém contra uma desistência injustificada desta havia a possibilidade de imposição de pena por tergiversação. Havia, portanto, discricionariedade, porém indisponibilidade da acusação.

Com o surgimento da jurisdição dos magistrados do Principis (cognitio extra ordinem), no final do século II, passou a vigorar a obrigatoriedade do procedimento penal. Os magistrados imperiais conheciam e puniam, auxiliados por funcionários responsáveis pela repressão penal.

2.3 Direito canônico

Num primeiro momento, a acusação era, em regra, privada e facultativa, dependendo de provocação do interessado, tendo, entretanto, os juízes o dever de apurar a noticia criminis. A denúncia privada era a delação do réu, feita por qualquer indivíduo ao juiz competente, com a exposição do crime, porém sem o pedido de pena e com a inscrição do nome do denunciado.

No fim do século XII, apareceu o processo oficioso, ordenado pelo juiz, que tomava conhecimento de uma infração, sendo usado pelo Santo Ofício na luta contra os hereges. Aqui, a investigação do crime era feita pelo próprio juiz.

2.4 Direito lusitano

Inicialmente, cabia aos ofendidos noticiar a infração, iniciando o procedimento acusatório de caráter obrigatório, através do oferecimento de querelas aos tabeliães. Ofertada a querela, igualmente era facultado aos querelantes prosseguir na acusação; havendo recusa, deveriam os juízes tomar feito e segui-lo ex officio, o que demonstra o caráter compulsório do procedimento.

Todavia, em casos de crimes menos graves, a acusação era discricionária, pois mesmo após tomadas as querelas, não deveriam os juízes proceder à prisão dos querelados ou soltá-los, bem como não deveriam seguir no feito ou apelar.

Entretanto, essa atuação oficiosa do juiz, com o tempo, passou a ser função dos procuradores da Coroa. Dessa atuação dos procuradores resultou, com as Ordenações Manuelinas, a figura do Prometor da Juftiçã. Depreende-se das disposições das Ordenações que a atuação criminal do promotor de justiça guardava caráter eminentemente obrigatório, quer iniciando a acusação aos criminosos, quer suprimindo a omissão aos acusadores particulares, dando continuidade nos feitos por eles iniciados.

Nas Ordenações Filipinas, permaneceu compulsória a atuação do promotor de justiça.

2.5 Direito brasileiro

Inicialmente, o que regia o processo criminal brasileiro era a legislação portuguesa. Nessa fase, vigoraram as Ordenações Manuelinas e Filipinas e as ações penais iniciavam-se pela querela nos crimes particulares e pela denúncia e devassa nos crimes públicos.

Posteriormente, o Código de Processo Criminal de 1832 estabeleceu a denúncia como meio do Ministério Público ou qualquer do povo para iniciar a ação pública e manteve o procedimento ex officio para todos os casos de denúncia. De uma forma ou de outra, pode-se afirmar que, no Código de Processo Criminal de 1832, a instauração do processo era obrigatória, salvo nos casos de crimes estritamente particulares. Em substituição as querelas foram criadas as queixas como meio de iniciativa da ação particular, privativa do ofendido, seus genitores, tutor, curador e cônjuge.

O Código Penal da República (Decreto nº. 847 de 11 de outubro de 1890) também manteve a obrigatoriedade como regra, porém estabeleceu duas exceções: a primeira com relação aos crimes contra a honra e de natureza sexual e a segunda atinente aos crimes de furto e dano, não tendo havido prisão em flagrante. Esta segunda exceção apresentou-se como inovação em nossa legislação, adotando discricionariedade na propositura da ação penal, em razão do interesse do particular, a quem era facultado propor a queixa.

Com a Constituição Federal de 1891, passou a haver pluralidade legislativa em matéria processual penal, assim cada Estado passou a ter sua própria legislação a respeito. De forma geral, podemos afirmar que se seguiram as idéias contidas no Código Penal de 1890, sendo que o princípio da obrigatoriedade da ação penal era reconhecido de forma expressa em alguns diplomas legais e tácita em outros.

Restabelecendo a homogeneidade do direito processual penal brasileiro, em 03 de outubro de 1941, foi promulgado o Código de Processo Penal. Este diploma legal seguiu a orientação pela obrigatoriedade para a apuração das infrações penais, salvo quanto à ação penal de iniciativa privada (artigo 24 do CPP). Resolveu o impasse no caso de recusa do Promotor em oferecer denúncia com a sistemática do artigo 28 do CPP. Além disso, criou uma segunda forma de controle ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, qual seja a ação penal privada subsidiária prevista no artigo 29 do CPP.

Nessa hipótese, o Ministério Público será obrigado a retomar a ação penal como parte principal se o querelante se tornar negligente. "O raciocínio é o seguinte: se a denúncia é oferecida caiu-se na regra geral do código; se o Ministério Público requer o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação, o juiz examina o acerto deste procedimento (analisando se a hipótese não seria de denúncia), podendo remeter os autos ao Procurador-Geral; entretanto, se o Ministério Público não faz uma coisa nem outra, surge para o ofendido uma legitimação extraordinária para instaurar o processo, tendo em vista a inércia da parte originariamente legitimada" [02].

Objetivando reformar o Código de Processo Penal aparecem alguns anteprojetos. Destacamos três. O de Hélio Tornaghi, que mantinha a obrigatoriedade da ação penal, desde que houvesse prova do fato que, em tese, constituísse crime, e prova que abonasse a suspeita de autoria.

Na mesma direção seguiu o projeto de Frederico Marques, inovando quanto à forma do controle deste princípio, substituindo a sistemática do artigo 28 do CPP ora comentada, por um controle interno, exercido pelo Conselho Superior do Ministério Público.

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Por fim, temos o projeto n.º. 1655/83 (chamado de novíssimo projeto), que manteve o princípio da obrigatoriedade, porém previa um procedimento especial (sumaríssimo) para o processamento das infrações de menor gravidade, com possibilidade de aquiescência da acusação, que correspondia ao pagamento de determinada quantia, em determinadas circunstâncias propiciando a extinção do processo sem julgamento do mérito.


3. Terminologia

Inicialmente, cabe ressaltar que a doutrina nacional costuma se referir a este princípio através dos termos obrigatoriedade e legalidade de forma indistinta.

Em nossa exposição preferimos o termo obrigatoriedade, pois acreditamos que a legalidade está imanente na própria função exercida pelo servidor público, no caso, pelo órgão acusador. Aliás, a legalidade aparece expressa como o primeiro princípio da administração pública, nos termos do artigo 37, caput, da Constituição Federal.

Desta forma, o princípio da obrigatoriedade decorreria do princípio da legalidade, que orienta toda a ação do Estado. O princípio da legalidade seria, portanto, de caráter mais geral, apto a orientar toda a ação estatal e, em particular, todo o desenvolvimento da ação penal. Já o princípio da obrigatoriedade tem contornos mais estreitos, referindo-se ao momento de propositura da ação penal pública.

Nesta esteira, afirma o professor Afrânio Jardim: "Preferimos usar a expressão princípio da obrigatoriedade, a fim de tornar mais claro que o dever legal de o Ministério Público exercitar a ação penal é, na verdade, uma decorrência do próprio princípio da legalidade, que, numa perspectiva mais ampla, informa a atuação dos órgãos públicos no chamado Estado de Direito" [03]. Acreditamos que o termo obrigatoriedade reflita melhor o conteúdo deste princípio, pois, conforme apresentaremos em seguida, tanto o princípio da obrigatoriedade quanto o princípio da oportunidade da ação penal sujeitam-se à legalidade.


4. Conceito

Segundo o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, o Ministério Público está obrigado a oferecer a ação penal tão só tenha ele notícia do crime e não existam obstáculos que o impeça de atuar. Impõe-se, portanto, ao Ministério Público o dever de promover a ação penal. Este princípio funda-se na idéia latina nec delicta maneant impunita, ou seja, nenhum crime deve ficar impune.

O princípio da obrigatoriedade, conforme acentua Tourinho Filho, é o que "melhor atende aos interesses do Estado, dispondo o Ministério Público dos elementos mínimos para a propositura da ação penal, deve promovê-la, sem inspirar-se em critério políticos ou de utilidade social" [04]. Ele satisfaz melhor as exigências de defesa social, tendo feição democrática, na medida em que submete a atuação dos órgãos públicos ao direito constituído. Dessa forma, a atuação impõe-se ao Estado não como uma simples faculdade, mas como "obrigação funcional de realizar um dos fins essenciais de sua própria constituição, que é a manutenção e reintegração da ordem jurídica" [05].


5. Regras de aplicação

O professor Canuto, reportando-se aos ensinamentos de Manzini, afirma que o princípio da obrigatoriedade exprime-se em duas regras de aplicação [06]: a regra da oficialidade e a regra da legalidade.

5.1 Oficialidade

A regra da oficialidade enuncia que "desde que a função penal é, por índole, eminentemente estatal, a pretensão punitiva do Estado derivante do crime deve fazer-se valer por um órgão público, e este deve agir por iniciativa própria, sem necessidade de qualquer estímulo exterior para o adimplemento de seu dever funcional". É esta regra que fundamenta o princípio da oficialidade da ação penal pública.

Dessa regra emergem três sub-regras, a regra da autoritariedade, a regra do procedimento de ofício e a regra da inevitabilidade do procedimento.

Pela sub-regra da autoritariedade, o órgão de ação, isto é, o órgão encarregado de provocar a atividade jurisdicional, deve ser sempre um funcionário do Estado encarregado desse ministério público, podendo ser exclusiva ou inclusiva.

O procedimento de ofício é uma regra de espontaneidade inerente ao exercício de uma função administrativa penal.

A terceira sub-regra, inevitabilidade do procedimento, é aquela que recusa à vontade dos particulares ofendidos e à vontade dos funcionários públicos qualquer poder dispositivo sobre a promoção da ação penal. Àqueles não pertence; e aos funcionários aos quais ela compete têm-na não como um direito, mas como um dever de ofício.

5.2 Legalidade

A segunda regra proposta por Manzini é apresentada pelo professor Canuto nos seguintes termos: "É no cumprimento de absoluto e inderrogável dever funcional que, verificadas concretamente as condições da lei, o órgão público competente deve fazer valer a pretensão punitiva do Estado derivante do crime." [07] Esta regra é desdobrada em outras duas sub-regras, a da necessidade e da irretratabilidade.

Em razão da sub-regra da necessidade, o Ministério Público fica, no desempenho de suas funções, diretamente subordinado à lei, compelido a agir contra todos aqueles que infrinjam seus preceitos.

A sub-regra da irretratabilidade exprime uma extensão da necessidade a todos os atos do procedimento penal. Estando o Ministério Público sujeito a lei para dar início à ação penal, subordinado é também à lei no desenvolvimento de sua atividade processual.

Em arguta conclusão, Canuto afirma que a ação penal não se subordina a regra da discricionariedade, pois "é uma necessidade sempre que ocorram, em concreto, certas condições de fato previstas em lei; os funcionários do ministério penal agem, não porque, em cada caso concluem qual seja o interesse público singular de imposição da pena, mas porque a lei os manda agir. É o princípio da legalidade no promoverem (necessidade) e no moverem (irretratabilidade) o processo penal." [08]


6. Princípio da oportunidade da ação penal

6.1 Conceito

Ao princípio da obrigatoriedade contrapõe-se o princípio da oportunidade da ação penal, acentuando que o Ministério Público tem a faculdade, e não o dever ou a obrigação jurídica, de propor a ação penal quando cometido o fato delituoso. Essa faculdade é exercida com base no interesse público, que deve ser atendido com a persecução penal. Existe aqui, conforme acentua a doutrina francesa, um "discreto direito de perdão". Funda-se este princípio na máxima latina minima non curat praetor.

Com o escopo de melhor compreendermos a discricionariedade na ação penal que vigora com o princípio da oportunidade, valemo-nos das considerações amplamente debatidas sobre o tema no Direito Administrativo, notadamente porque a atividade de promoção da ação penal constitui um dever funcional de natureza administrativa para o membro do Ministério Público.

A discricionariedade, segundo Hely Lopes Meirelles, é "o direito concedido à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo" [09].

No processo penal, a discricionariedade ou oportunidade na atuação do representante do Ministério Público, quando deduz sua opinio delicti, consiste no poder de eleger a conveniência ou não do ajuizamento da ação penal.

6.2 Análise crítica

Argumenta-se que a aplicação desta idéia levaria a uma invasão de competência do Poder Legislativo, nesse sentido afirma Tourinho Filho; "se o Estado, através do Legislativo, guindou determinadas condutas à condição de infração penal, não faz sentido possa o Ministério Público ignorá-las, sob a alegação de inexpressividade. Se assim fosse estaria invadindo competência de outro Poder" [10]. Nesta mesma linha, afirma Frederico Marques: "a oportunidade levaria a opinião do legislador ser substituída pela do Ministério Público" [11]. Afrânio Jardim também salienta que "o princípio da oportunidade expõe o Ministério Público a pressões indesejáveis ou pelo menos, a suspeitas sobre a lisura de seu comportamento ativo ou omissivo" [12].

Os que defendem a substituição do princípio da obrigatoriedade pelo da oportunidade da ação penal aduzem que o primeiro contraria a razão de ser do processo penal e, em particular, desconsidera a real função da instituição do Ministério Público, que em qualquer circunstância atua sempre como fiscal da lei, exercendo uma atividade marcante, que não pode ser esquecida, já que, ao acusar o faz visando à distribuição da justiça e não à condenação a qualquer preço. A grande quantidade de processos por fatos de escassa periculosidade social também é citado como argumento de reforço pelos defensores do princípio da oportunidade.

A busca que se faz com tal princípio é evitar os efeitos criminógenos das penas privativas de liberdade de pequena duração e obter reinserção social do delinqüente, mediante sua submissão voluntária a um procedimento de readaptação.

No entanto, a tipificação de condutas é resultado daquilo que uma determinada sociedade entende, em certo momento histórico, como um atentado, uma afronta a seus interesses gerais, ou seja, aos bens jurídicos que devem ser protegidos. Dentro desta perspectiva, o princípio da oportunidade significa o reconhecimento da incapacidade do legislador penal adequar as condutas típicas às reais necessidades da coletividade. Na lição de Jorge Figueiredo Dias, "o princípio da oportunidade não deixou de ser olhado com alguma simpatia, até o momento em que certas experiências totalitárias revelaram o enorme perigo que nele se continha (quando elevado à categoria de princípio geral de processo penal) para as garantias fundamentais do cidadão" [13].

É de se destacar que o princípio da oportunidade, tal como o princípio da obrigatoriedade, submete-se aos ditames da legalidade [14].

A legalidade é imanente e estrutural ao Estado Democrático de Direito. Embora a legalidade esteja, sob certo aspecto, presente no princípio da oportunidade; o exercício da atividade persecutória é um dever funcional do agente público, não se coadunando com a ação discricionária, em que o agente tem liberdade na escolha da conveniência, oportunidade e conteúdo do ato.

No entanto, existe uma dose de discricionariedade presente nesta atuação do Ministério Público, porém, esta recai na presença ou não do dever legal de propor a ação e não sobre critérios de conveniência ou oportunidade no exercício ou não da ação penal.

Salienta-se que o princípio da oportunidade da ação penal tem o mesmo âmbito de aplicação do que o princípio da obrigatoriedade, quais sejam as faculdades ou limites dos Poderes Públicos. Por isso, não se pode considerar como manifestação do princípio da oportunidade a opção que o ordenamento jurídico oferece, em determinados delitos, às vítimas, para a persecução.

Tanto o princípio da oportunidade da ação penal, quanto o contraposto princípio da obrigatoriedade têm como objeto os órgãos públicos de acusação, não abrangendo as vítimas ou seus representantes legais. Se não entendermos desta forma, desapareceria o ponto comum que permite a comparação e a contraposição entre os dois princípios. Nesse sentido, "a publicidade e a obrigatoriedade da ação penal não são contraditadas pelo fato de que em alguns casos o exercício do poder de acusação seja subordinado a algumas manifestações de vontade configuradas pela lei como condições de proceder: como a apresentação da queixa ou representação pelo sujeito ofendido, ou do pedido ou autorização pelos órgãos do Poder Executivo" [15].

O que leva o Estado, em determinados delitos, a condicionar o exercício da ação penal à representação do ofendido, ou deixar a atividade persecutória à própria vítima, ou a seus representantes, são considerações de outra ordem.

De fato, às vezes há uma colisão de interesses entre a exigência de repressão ao crime e o interesse da própria vítima, de tal forma que o Estado, atendendo ao fato de que a conduta atinge mais diretamente a esfera íntima da vítima, prefere deixar a esta o exercício da persecução penal. Nesse sentido, manifesta-se Damásio de Jesus: "em certos casos, a conduta típica atinge tão seriamente o plano íntimo e secreto do sujeito passivo que a norma entende conveniente, não obstante a lesividade, seja considerada a sua vontade de não ver o agente processado, evitando que o bem jurídico sofra outra vez a lesão por meio do strepitus fori" [16].

A discricionariedade não é, em tais casos, do Ministério Público e tampouco do juiz, mas só da parte lesada ou da autoridade pública, à qual o ordenamento reserva o poder de decidir acerca da oportunidade de uma tutela penal do bem ofendido pelo crime.

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Sobre o autor
Carlos Eduardo Felício

Procurador da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo - USP. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho - UGF. Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera - UNIDERP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELÍCIO, Carlos Eduardo. Princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2987, 5 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19923. Acesso em: 20 abr. 2024.

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