7. Obrigatoriedade e oportunidade nos principais ordenamentos estrangeiros
No cenário dos países ocidentais, destacamos alguns modelos presentes nos países de civil law que se mostram mais relevantes para o tema [17].
A França apresenta um modelo dissonante dos seus vizinhos do continente europeu, já que, ainda com fortes resquícios do inquisitorialismo, consagra o Juizado de Instrução, permitindo ao Ministério Público proceder ao arquivamento do caso por critérios de oportunidade e conveniência do parquet, que, todavia, vê-se obrigado a levar, até o seu natural desfecho, a ação penal proposta. A doutrina e a jurisprudência francesa acentuam a discricionariedade da ação penal, embora não se possa falar em disponibilidade. Desta forma, vigora na França o princípio da oportunidade da ação penal.
No sistema alemão adota-se a obrigatoriedade da ação penal como regra, permitindo-se, porém, ao representante do parquet o não exercício do ius puniendi nas hipóteses de criminalidade de bagatela. Além disso, permite-se a suspensão do processo, contra injunções e regras de conduta em crimes de média potencialidade ofensiva. As exceções ao princípio da obrigatoriedade começam com a idéia de não punir futilidades e se ampliam a situações outras que não encontram resposta na lei penal material em razão de sua exígua importância. Na legislação alemã nota-se a expressão interesse público, em consonância com o princípio da oportunidade. Porém, a obrigatoriedade da ação penal continua sendo a regra; pois, conforme acentua Afrânio Jardim ao fazer referência ao modelo alemão, "não foi abandonado o princípio da obrigatoriedade, que permanece como regra geral. Nada obstante, ainda que para casos específicos, o princípio da oportunidade está consagrado de modo indelével" [18].
Na Áustria, ao lado do princípio da obrigatoriedade da ação penal, prevê-se a permissão ao órgão de persecução penal oficial, para não desencadear o poder punitivo quando se tratar de infração sem "dignidade penal", em consonância com o princípio da oportunidade da ação penal.
Na Espanha prevê-se um procedimento abreviado, em que se elimina, diante da anuência das partes, a fase probatória, passando-se, de imediato à prolação da sentença. Porém, não há nenhum instituto que excepcione o princípio da obrigatoriedade, que, aliás, tem status constitucional.
Na Itália o princípio da obrigatoriedade também aparece em sua Lei Maior, não existindo até mesmo a ação penal de iniciativa privada, sendo que a querela italiana não tem simetria com a nossa queixa, pois se trata de uma condição de procedibilidade análoga à nossa representação, embora com ampla disponibilidade para o ofendido. Com o Código de Processo Penal de 1988, consagraram-se novos procedimentos, dentre eles, o pattegiamento, pelo qual se evita o processo penal clássico, mediante sujeição do imputado a uma pena de, no máximo, dois anos de prisão.
Em Portugal, seu novo Código de Processo Penal de 1987 permite ao Ministério Público arquivar, unilateralmente, procedimentos investigatórios relativos a crimes punidos com pena não superior a seis meses (desde que preenchidos os requisitos legais); além de prever a suspensão de processo para crimes punidos com pena de prisão de até três anos. O ordenamento jurídico português não parece adotar o princípio da oportunidade. Desta forma, no regime lusitano permanece íntegro o princípio da obrigatoriedade da ação penal.
Diante da resenha exposta, podemos concluir que, embora o princípio da oportunidade da ação penal seja uma tendência das mais modernas políticas criminais, não há um caminho rumo à adoção deste princípio. O que percebemos é uma renovação das discussões e debates acerca deste tema, postos diante de novos argumentos cunhados por estas novas tendências. Há, em nosso entender, a consagração da obrigatoriedade da ação penal, ampliando-se os casos de exceção que vem justamente confirmar a regra e permitir uma maior eficiência do aparato repressivo estatal.
8. Processualização do poder-dever de punir e o princípio da obrigatoriedade
Em nossa estrutura acusatória, o processo é o único meio hábil a permitir que se eleve o ius puniendi do Estado acima do ius libertatis do indivíduo. Assim sendo, não se justifica que o órgão acusador possa afastar a aplicação do Direito Penal ao seu juízo discricionário baseado em oportunidade e conveniência.
O sistema acusatório comporta lógica e funcionalmente o princípio da obrigatoriedade e da irrevogabilidade da ação penal por parte dos acusadores públicos. "No plano lógico, esse princípio é uma conseqüência da não derrogação do juízo postulada por nossas teses nullum crimen, nulla culpa sine iudicio e do mesmo princípio acusatório nullum iudicium sine accusatione. No plano funcional, ele é conseqüência das razões mesmas da publicidade da acusação, já conquistada em todos os ordenamentos evoluídos: a garantia da igualdade dos cidadãos perante a lei, a asseguração da certeza do direito penal e, sobretudo, a tutela das partes ofendidas mais fracas" [19].
O princípio da obrigatoriedade mostra-se como uma conseqüência de ter o Estado assumido o monopólio do ius puninedi. A processualização do poder punitivo do Estado, consagrado na expressão nulla poena sine iudicio, confere à ação penal um caráter de função necessária e obrigatória para os órgãos públicos.
Diante do poder-dever que orienta as ações dos agentes públicos, seria contraditório que o acusador público, no exercício de sua função, não estivesse sujeito aos estritos termos legais, podendo escolher arbitrariamente quais violações penais são merecedoras de perseguição ou, ainda, de predeterminar a medida da pena pactuando com o imputado.
Com a tipificação penal da conduta, denota-se que o legislador elevou tal comportamento a causador de danos a bens jurídicos relevantes para a sociedade à qual este mesmo legislador representa. Por consequência, não pode o membro do Ministério Público afirmar que a ação delituosa não tem relevância, que o interesse punitivo ficaria atendido diante de sua inércia, deixando de manifestar em juízo a pretensão punitiva, sob pena de afronta à separação de funções.
"Os interesses tutelados pelas normas penais são, sempre, eminentemente públicos, sociais, motivo pelo qual a sua atuação é imposta ao Estado não como simples faculdade, mas como obrigação funcional de realizar um dos fins essenciais de sua própria constituição, qual seja, a manutenção e reintegração da ordem jurídica" [20].
9. Alcance do princípio da obrigatoriedade
O dever de exercitar a ação penal pública somente aparece diante de determinada situação fática, ou seja, diante da presença de determinadas condições previstas pelo próprio legislador. Desta forma, o exercício da ação penal está condicionado pelo ordenamento jurídico.
O Ministério Público, portanto, está obrigado a promover a ação penal sempre que estiverem presentes os seus pressupostos, fáticos e jurídicos, substanciais e materiais; sem qualquer dose de discricionariedade.
Somente preenchidos os pressupostos legais; ou seja, as condições para o regular exercício da ação, é que o princípio da obrigatoriedade da ação penal atua. Assim sendo, quando o pedido for juridicamente possível, houver interesse de agir e as partes estejam legitimadas, o princípio da obrigatoriedade da ação penal incide. Na análise dessas condições existe naturalmente uma dose de discricionariedade, porém "não recai sobre o exercício ou não da ação penal, segundo critérios de oportunidade ou conveniência, mas recai apenas sobre a presença ou não do dever legal de propor a ação condenatória. São situações diferentes" [21].
São dois momentos cronologicamente distintos, primeiramente, o membro do Ministério Público analisa se há no caso concreto o dever legal de atuar, o que o faz na análise da presença ou não das condições da ação penal. Ausentes estas, trata-se de hipótese de arquivamento. Presente estas condições, num segundo momento, tem o membro do parquet o dever legal de promover a ação penal em razão da incidência do princípio da obrigatoriedade da ação penal.
Não se compreende que o Ministério Público, reconhecendo a existência de violação da lei, não seja obrigado a agir, dado o caráter vinculado de sua atuação. Entretanto, quando o órgão ministerial deixa de propor a ação pública por entender estar ausente qualquer violação à lei, não se vê de sua parte quebra do aludido princípio da obrigatoriedade. Nesse caso o Ministério Público deve requerer o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação.
Portanto, parece-nos imprecisa a assertiva de que o princípio da obrigatoriedade torna o órgão do Ministério Público um mero burocrata da lei, retirando-lhe qualquer juízo de valoração sobre os fatos e o direito a ser aplicado. Tal juízo valorativo aparece, porém em um momento anterior ao da incidência do princípio da obrigatoriedade da ação penal, qual seja na análise da presença ou não das condições para o regular exercício do direito de ação penal. "O princípio da legalidade não subtrai do Ministério Público o poder de apreciar os pressupostos técnicos do exercício da ação penal, o que é evidente. Dever de denunciar não significa mais que, perdoe-se o truísmo, dever de denunciar quando for o caso de denúncia" [22].
Se o Ministério Público não tem discricionariedade para agir ou deixar de agir quando identifica determinada hipótese em que estão presentes as condições para o regular exercício do direito de ação penal, ao contrário, tem e precisa ter mesmo a necessária liberdade para apreciar se ocorre hipótese em que sua atuação é obrigatória. Nesse sentido, se manifesta Hugo Mazzilli: "o MP também tem ampla liberdade de apreciar os elementos de convicção do inquérito policial, quando identifica ou não a existência de crime a denunciar; mas, reconhecida a presença de tal pressuposto e se proclama que a seu ver houve crime, a partir desse momento não pode recusar-se a agir" [23].
"Se falta uma condição para o regular exercício da ação ou se a lei cria outro obstáculo intransponível, não há obrigatoriedade no sentido de o Ministério Público manifestar a pretensão punitiva, muito pelo contrário, deve requerer o arquivamento. Não surgindo o dever de agir, não se coloca a questão do princípio da obrigatoriedade da ação penal" [24].
10. Aspecto de garantia do princípio da obrigatoriedade
A processualização do poder-dever de punir do Estado possui nítido cunho garantístico. O princípio da submissão à jurisdição é expressão de garantia do indivíduo que se reflete na consagração da presunção de inocência e do status de liberdade.
O princípio da submissão à jurisdição permite uma análise equilibrada do alcance do princípio da obrigatoriedade. "O princípio da não derrogação da jurisdição, mesmo acompanhado, como em nosso ordenamento, do princípio da obrigatoriedade da ação penal, não significa, no entanto, que nenhum crime deva ficar sem julgamento e pena. A idéia de perfeição e completude da intervenção judicial é antes a primeira ilusão a ser afastada" [25]. Esta ilusão tem como pressuposto a idéia insensata de que o direito penal tem que extirpar os crimes. Tal concepção panjudicialista nos leva ao fenômeno da expansão do direito penal com conseqüente inflação do processo penal. Neste contexto, como conseqüência do fenômeno, há "um papel de suplência geral da função judicial em relação a todas as outras funções do Estado – das funções política e de governo às administrativas e disciplinares – e um aumento completamente anormal da quantidade de assuntos penais" [26].
Em seu aspecto garantístico, o princípio da obrigatoriedade apresenta-se como corolário de outras características estruturais do sistema de garantia (SG) exposto pelo doutrinador italiano Luigi Ferrajoli: "primeiramente, da legalidade ou sujeição somente à lei de toda a função judiciária, o que exclui o impulso com base em critérios puramente arbitrários e potestativos; em segundo lugar, da indisponibilidade das situações penais que previne o valor dirimente da confissão do imputado ou o poder absolutório dos órgãos de acusação, em geral impedindo também a importância das transações, aceitações ou renúncias entre as partes em causa; em terceiro lugar, do princípio da igualdade penal, que impede qualquer disparidade de tratamento dos crimes propiciada por ações potestativas sobre a oportunidade do processo, ou, pior, por avaliações acerca do comportamento processual do imputado e particularmente sobre sua disponibilidade para negociar com a acusação" [27].
11. Conclusões
O Estado Democrático de Direito tem como ponto central a defesa da liberdade individual frente ao poder estatal. Consequentemente, impõe-se ao Estado uma atuação negativa no sentido de não violar a liberdade individual e um papel positivo de garantir esta mesma liberdade. Referido modelo estatal tem como característica a submissão do poder público à ordem jurídica constituída. Desta forma, o princípio da legalidade é o instrumento para a consecução dos fins do Estado.
O princípio da legalidade apresenta um duplo aspecto: delimita o campo de atuação de Poder Público e exige sua atuação em nome do interesse público. Há, assim, de um lado o poder-dever do Estado reclamar da jurisdição a punição e; de outro, o correlato direito do praticante da ação típica ao processo.
A processualização do poder-dever de punir do Estado tem cunho garantístico, na medida em que perfaz o processo penal como meio necessário para que o ius puniendi estatal se sobreponha ao ius libertatis do indivíduo, consagrando a máxima nulla poena sine iudicio. Esquematicamente, podemos afirmar que vivemos em um estado de prevalência do ius libertatis dos indivíduos, consoante constituirmos um Estado Democrático de Direito; de forma que, para que ocorra essa elevação do ius puniendi torna-se imperioso que haja processo, de forma que a jurisdição atue.
Os princípios do processo penal são postulados fundamentais que expressam a política criminal adotada. Eles devem afinar-se com as finalidades colimadas no processo penal, quais sejam a realização do bem comum com conseqüente pacificação social e asseguração da liberdade jurídica do ente humano.
O princípio da obrigatoriedade mostra-se como uma conseqüência de ter o Estado assumido o monopólio do ius puniendi. A processualização do poder punitivo do Estado consagrado na expressão nulla poena sine iudicio, confere à ação penal um caráter de função necessária e obrigatória para os órgãos públicos. Desta forma, a obrigatoriedade no exercício da ação penal pública expressa todas as garantias que decorrem do sistema acusatório, possuindo feição nitidamente democrática.