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Breve comentário sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal

01/04/2001 às 00:00
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"LRF ou LRFmi?"


Algumas leis são fruto da cultura de um povo; têm aderência ao que Savigny denominava volksgeist. A lei é retrato dos valores morais, da sensação de certo e errado que uma coletividade tem na sua ubicação espaço-temporal. Por vezes, leis com tal característica não envelhecem e, sim, modificam-se com o ambiente cultural que as originou.

Todavia, o Direito não é produto da vox populi. A longa maturação institucional da humanidade a fez produzir tratados de âmbito mundial contra a tortura. Qual é a vox populi diante de um bandido violento que esteja capturado? Essa incongruência entre a evolução institucional e a estagnação dos indivíduos é o mote da célebre pergunta de Kant: existe progresso moral? Não só esse questionamento, mas também a velha discussão sobre o governo de homens ou de leis aparece quando se lançam os olhos a manifestações da voz popular. Mas não é esta discussão que se enceta, até porque, sem fim. O que quero afirmar é a existência de leis que não são produto da cultura existente numa comunidade num dado momento; são, tais leis, produto da escolha feita pelas elites dirigentes. Vox caesar, não vox populi.

A Lei de Responsabilidade Fiscal é vox caesar. Não tem a mínima aderência a cultura política brasileira existente no momento do início de sua vigência. Nasceu por uma decisão das elites, não por uma reclamo do povo. Não retrata algo existente, mas sim estabelece um horizonte a ser perseguido. O meio ambiente é de irresponsabilidade fiscal; é a cultura existente; a LRF, com seus ditames cercados de sanções, tange as pessoas para uma cultura diferente, para a criação de um meio ambiente de responsabilidade fiscal.

Pergunta-se amiúde se a Lei "pega"; quer dizer, se ela há de se tornar eficaz, já que lhe falta o predicado de aderência a uma cultura existente. Para que ela se torne eficaz não bastam as suas severas sanções, que espalham terror entre os ordenadores de despesa pública; muitas e muitas leis severas caíram por dessuetude; sucumbiram diante de silenciosa e cotidiana desobediência civil.

Alega-se, para desvalorar a lei, que ela foi feita pelo Fundo Monetário Internacional. Ora, acaciana tal constatação. O FMI a impôs como condição para os empréstimos que tiraram o Brasil da dificuldades pós maxi-desvalorização do real em janeiro de 1999. A origem da lei, por si só, dá estofo moral para desobedecê-la? Será que um ordenador de despesa pública, a caminho do cárcere por ter desobedecido a LRF, será aclamado pelo povo como um herói? A resposta ainda está no ar.

A globalização vislumbrada por Marx produziu efeito não imaginado: o capital é que uniu o mundo. Kant, ao falar sobre a paz perpétua, e Ihering, na obra Evolução do Direito, perceberam que o dinheiro não tem fronteiras e que a guerra é um estorvo para a geração e acumulação de riquezas. Assim, fenômenos econômicos remotos produzem efeito sobre a situação de todos os indivíduos do mundo. A intensidade é muito maior se as mutações econômicos ocorrem no centro do império.

A crise de 1929 provocou a mais amarga recessão que os norte-americanos já viram. O remédio foi a intensa intervenção estatal na economia, tanto no fomento quanto na atividade direta. Tal opção gerou déficit que veio se acumulando perigosamente, provocando inflação e juros altos, já que o Tesouro tornou-se um voraz consumidor de dinheiro tomado em empréstimo. A inicial aceitação da posição keynesiana do déficit como um pequeno mal necessário para fazer girar a roda da economia com a energia cinética dada por dinheiro público, passou a encontrar resistência, até porque os juros pagos pelo Tesouro se tornaram inibidores da atividade privada, incapaz de pagar juros tão altos, ficando sem financiamento. A virada deu-se com a reaganomics, momento em que os déficit público passou a ser tratado como um câncer maligno, uma chaga repugnante. Dois governos de Ronald Reagan e um de George Bush, 12 anos, se passaram até que a economia americana, que havia estagnado no final dos anos 70, iniciasse o seu período mais longo de crescimento contínuo. Bill Clinton teve a felicidade de surfar nessa onda.

Números são fatos; é tolice pugilar contra fatos. O centro do império demonstrou que a sua escolha tinha produzido resultados positivos e ficou em posição política confortável para defender seu modelo perante o resto do mundo. Isso aliado ao óbito da União Soviética, à rápida expansão dos computadores, fez a pax americana se tornar a marca dos anos 90.

Por nossas plagas a posição adotada pelo primeiro Roosevelt foi copiada e festejada, pois é delicioso banquetear-se sem pagar a conta com dinheiro do próprio trabalho. Entre gastos defensáveis e gastanças carnavalescas, o déficit público brasileiro chegou a travar a economia, produzindo tolices como a moratória da dívida externa em 1987. Ao invés da elite se orientar por Adam Smith, Ricardo, Marx, a bússula passou a ser a pueril análise de Venas Abiertas de América Latina.

A ampliação da escala da economia fez as fronteiras estatais tornarem-se incômodas; diferentes tributos, moedas, políticas de proteção de mercados, são entraves à produção em escala planetária. A burguesia criou o estado moderno para vencer a pulverização dos feudos e, com isso, ganhar segurança e mercado mais amplo. Quinhentos anos depois os Estados tornaram-se pequenos demais para a atividade econômica. Repúblicas de Banana não são estáveis e nem têm mercado para os produtos mundiais. Estabilizar essas economias e transformar as pessoas em consumidores é necessidade das empresas globais.

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O Brasil é um dos maiores mercados potenciais do mundo. É fácil perceber quão importante é a estabilização de sua economia para o aumento da escala das empresas mundiais.

A monocausalidade até aqui articulada é marxista demais, é verdade. Diga-se, então, que a infra-estrutura não foi a única determinante da gênese da LRF. Havia, há, fadiga com a atividade política baseada na Lei de Gérson. O desperdício do dinheiro público tem sido tão acintoso, que a cansaço com a situação chegou ao ponto de ruptura, com a busca de um novo ambiente para o funcionamento da Administração Pública.

Aspecto extremamente positivo da LRF será a criação de ambiente de lealdade na disputa eleitoral. Até hoje as pessoas que se dedicaram a atividade política estiveram expostas a meio ambiente pernicioso, em que vale a lei do cão. É fácil perceber que o político que não cobra impostos como IPTU e ISS, não cobra pelo asfalto, distribui benesses individuais, tem mais chances de se conservar na vida pública por via eleitoral. O político que vem para pagar contas, arrumar a casa, economizar o dinheiro público, cobrar tributos, não tem vida política longa. Com eleitores de carne e osso, não cidadãos ideais, isto é a democracia em qualquer lugar do mundo. Os eleitores são humanos, demasiadamente humanos.

A responsabilidade eleitoral, por si só, não é suficiente para modificar a cultura da Administração Pública. O crivo eleitoral atribui legitimidade para dirigir a res publicae, o que não significa equilíbrio, ponderação, bom manejo do erário.

Partindo da premissa hobbesiana do mau selvagem, o governo de leis é mais prudente que o de homens. Instituições fortes para estabelecer limites a indivíduos naturalmente fracos. Assim, não adianta esperar que alguém de boa índole assuma mandato público para que as coisas melhorem; a res publicae não precisa de messias, mas sim de dirigente, que tenha as suas humanas debilidades frenadas pelo temor das sanções legais.

Nisso tudo há o instinto de sobrevivência política, tão forte quanto o de sobrevivência biológica. Ao participar da atividade política as pessoas tendem a querer sucesso e a se manterem em ascenção. Isso não é maldade, é cromossômico. Em ambiente deletério, todos se igualam por baixo.

A LRF auspicia saudável ambiente para o exercício da atividade política. Quiçá, premidos por seus imperativos, anjos e demônios vejam-se compelidos a condutas similares como ordenadores de despesa pública. Todos terão de cobrar tributos, limitar gastos, demitir funcionários, poupar dinheiro público, chegar ao superávit.

A disputa eleitoral, em ambiente transparente, dar-se-á em torno da capacidade de cada candidato em maximizar os resultados positivos com o uso do dinheiro do povo.

A futurologia acerca da LRF é isso mesmo, prognóstico, mas carrega uma desejo, a de que a lei seja parte de nossa cultura, a ponto de não percebermos a sua existência, pois integrada a rotina da Administração Pública.

LRFmi. Exógena, mas imprescindível.

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Sobre o autor
Friedmann Anderson Wendpap

juiz federal no Paraná, professor de Direito Internacional Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WENDPAP, Friedmann Anderson. Breve comentário sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1998. Acesso em: 28 dez. 2024.

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