1- Introdução
O artigo 37, § 4º, da Constituição Federal preceitua que "os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível".
Regulamentando o dispositivo constitucional, foi promulgada a Lei n.º 8.429/92, que disciplina os atos de improbidade administrativa e dispões sobre as respectivas sanções aplicáveis. Como é consabido, a lei consagra três modalidades de atos de improbidade administrativa: a) atos que importam em enriquecimento ilícito; b) atos que causam dano ao erário; c) atos atentatórios aos princípios da Administração Pública. Dentre inúmeros outros, a lei, de forma meramente exemplificativa, descreve como atos de improbidade o uso (em proveito próprio) dos bens integrantes do patrimônio público, a fraude em processo de licitação e a negativa de publicidade a atos oficiais.
Além disso, a Lei de Improbidade também versa sobre os trâmites da persecução judicial, disciplinando o rito da ação civil pública e das medidas cautelares de seqüestro e indisponibilidade de bens.
O que será analisado com mais minúcias no presente estudo é, no entanto, a aplicação do princípio da proporcionalidade na fixação das sanções pela prática de ato de improbidade administrativa.
2- As divergências outrora existentes acerca das sanções aplicáveis em virtude da prática de um ato de improbidade
A Lei n.º 8.429/92 prevê a aplicação de diversas sanções ao responsável pela prática de um ato de improbidade administrativa: ressarcimento do dano causado ao erário, suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, multa civil, proibição de contratar com o poder público e outras. A mais importante e, talvez, a mais difícil de ser efetivada é o ressarcimento dos danos causados ao erário. A mais efetiva e certamente a que mais atormenta os agentes públicos ímprobos, sobretudo os agentes políticos, é a suspensão dos direitos políticos.
Antes da vigência da Lei n.º 12.120/09 (que modificou o artigo 12, caput, da Lei n.º 8.429/92) sempre se discutiu a possibilidade de aplicação isolada (não cumulativa) das penas previstas para o ato de improbidade. Reconhecida a prática de um ato de improbidade, poderia o magistrado aplicar somente a pena de multa civil ou deveria aplicar todas as sanções previstas no artigo 12 da Lei n.º 8.429/92? Seria justo igualar um ato de improbidade que atentou contra um princípio da Administração Pública àquele que causou imensurável dano patrimonial ao erário?
A doutrina e a jurisprudência amplamente dominantes, apegadas ao princípio da proporcionalidade, defendiam a possibilidade de aplicação isolada das penas, de forma que caberia ao juiz escolher quais sanções, dentre as previstas legalmente, deveriam ser impostas no caso concreto.
Comentando o assunto (antes da modificação legislativa), o mestre Fernando Rodrigues Martins [01] assim se posicionava:
Anote-se que o juiz, na fixação da pena, deverá levar em conta a extensão do dano causado ao patrimônio público, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente (parágrafo único do art. 12). Tal possibilidade, em nosso modesto entendimento, autoriza a sentença condenatória a aplicar alguns tópicos da sanção, e não a sanção em bloco. (grifo nosso)
No mesmo sentido era o entendimento do Promotor de Justiça no Estado de São Paulo Nilo Spinola Salgado Filho [02]:
As sanções previstas na Lei 8.429/92 são de extrema gravidade, devendo o juiz, ao aplicá-las, considerar a gravidade do ilícito para eleger as sanções que sejam compatíveis, a partir dos critérios da proporcionalidade e da razoabilidade.
É verdade, como se sabe, que há firme posicionamento doutrinário que indica que o rol de sanções pode ser compreendido como cumulativo e, em princípio, impossível a não-aplicação de qualquer das sanções.
É igualmente verdadeiro que o ilícito da improbidade sempre causa nefastos reflexos e não são poucos os que advogam a aplicação, em bloco, de todas as sanções indicadas no artigo 37, § 4º, da Constituição Federal, e no artigo 12 da Lei 8.429/92, como defende Wallace Paiva Martins Júnior.
No entanto, temos que, a despeito de cumulativo, o rol comporta interpretação conforme a Constituição, de acordo com a gravidade do ilícito, e a partir dos critérios da proporcionalidade e da razoabilidade, permitindo, para a justa solução, a exclusão da sanção que, à vista do caso concreto, mostre-se desarrazoada ou por demais gravosa.
(grifo nosso)
No campo jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça [03] também tinha posição consolidada sobre o tema:
ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE.
1. O recurso foi interposto nos autos de ação de improbidade administrativa, movida pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, contra o prefeito do Município de São José do Norte e contra dois funcionários da prefeitura deslocados para exercerem mandato classista recebendo os adicionais de insalubridade e horas extras anteriormente percebidos.
2. O Tribunal a quo reformou a sentença que havia condenado os recorridos a ressarcir aos cofres públicos as importâncias recebidas devidamente corrigidas; aplicado multas; suspendido os direitos políticos dos demandados e os impedidos de contratar com a Administração Pública. Manteve, porém, "a condenação somente quanto ao ressarcimento integral do dano, de forma solidária, e o pagamento de multa civil, nos termos do art. 12 da Lei de Improbidade - nº 8.429/92".
4. É inequívoco que a conduta dos recorridos encerra uma ilicitude. No entanto, não se pode olvidar que a suspensão dos direitos políticos é a mais drástica das sanções estipuladas pela Lei nº 8.429/92 e que sua aplicação importa impedir - ainda que de forma justificada e temporária - o exercício de um dos direitos fundamentais de maior magnitude em nossa ordem constitucional.
6. A suspensão dos direitos políticos do administrador público e dos funcionários, além do impedimento de contratar com a Administração Pública, por danos de pequena monta causados ao erário – foram pagas 24 parcelas de R$78,00 a Kelly e outras 24 parcelas de R$63,60 a Ademir (funcionários demandados) em valores históricos conforme o recorrente à fl. 546 –, importa em sanções severas que não se coadunam com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, o que demonstra ter o Tribunal de origem agido de forma correta ao afastá-las, embora mantendo a condenação ao ressarcimento integral, de forma solidária, bem como o pagamento da multa civil prevista na LIA. Precedentes. (grifo nosso)
De se registrar, por outro lado, a existência de corrente doutrinária que, contrapondo-se à idéia de flexibilização, preconizava a idéia de aplicação cumulativa das sanções – principalmente para coibir com mais severidade os atos de improbidade–, valendo destacar as sempre valiosas lições de Wallace Paiva Martins Júnior [04]:
As sanções do art. 12 da Lei Federal n.º 8.429/92 são cumulativas, não cabendo cogitar de alternatividade, porquanto não se estabeleceu critério propício nesse sentido. Se pretendesse a lei a aplicação de sanções alternativas, espaço teria no parágrafo único do art. 12 para nortear o exercício jurisdicional.
...
As sanções são cumulativas justamente para censurar gravemente a improbidade administrativa, agindo nos mais diversos sentidos e direções de relacionamento do agente público com a Administração Pública e o particular que se aproveita do art. 3°.
O campo discricionário do juiz está limitado ao prazo e à base de calculo inerentes às sanções variáveis (pagamento de multa civil, suspensão dos direitos políticos e proibição de contratar com o Poder Público ou de receber incentivos e benefícios creditícios) previstas no art. 12, que tem dosimetria orientada pelos critérios da extensão do dano e do proveito patrimonial obtido, expressos no parágrafo único. (grifo nosso)
3- A modificação legislativa e o reconhecimento do princípio da proporcionalidade
A discussão doutrinária e jurisprudencial perdurou até o final do ano de 2009, quando foi promulgada a Lei n.º 12.120/09, que modificou o artigo 12, caput, da Lei n.º 8.429/92, de forma a permitir, expressamente, a aplicação não cumulativa das sanções, de acordo com a gravidade do fato.
Nos termos da novel legislação, "independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato".
Diante da infinidade de condutas que podem caracterizar um ato de improbidade administrativa, tem o julgador, agora amparado legalmente, a liberdade de aplicar as sanções consideradas adequadas, justas e corretas para o caso concreto, de acordo com a gravidade do fato e a partir de critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
Lembrado e estudado principalmente no âmbito do direito administrativo, o princípio da proporcionalidade é aplicável a todos os ramos do direito, estando intimamente ligado à idéia de razoabilidade, bom senso e ponderação. Sob essa ótica, o postulado da proporcionalidade, tamanha sua importância, deve ser seguido em todo e qualquer ato estatal, seja na aplicação de uma multa pelo agente de trânsito, seja na imposição de uma sanção disciplinar a um servidor público desidioso, seja na fixação da pena em virtude da prática de uma infração penal, seja na escolha e dosimetria das sanções pela prática de um ato de improbidade administrativa.
Sobre ele, os Professores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo [05] assim se reportam:
O postulado da proporcionalidade é importante, sobretudo, no controle dos atos sancionatórios, especialmente nos atos de polícia administrativa. Com efeito, a intensidade e a extensão do ato sancionatório deve corresponder, deve guardar relação de proporcionalidade com a lesividade e gravidade da conduta que se tenciona reprimir ou prevenir. A noção é intuitiva: uma infração leve deve receber uma sanção branda; a uma falta grave deve corresponder uma sanção severa. (grifo nosso)
Na mesma linha, Marino Pazzaglini Filho [06] ensina:
Pois bem, os princípios constitucionais interligados da razoabilidade e proporcionalidade, de natureza implícita, que esclarecem e instruem o princípio constitucional maior e primário da legalidade, são de observância obrigatória na aplicação das medidas punitivas em geral.
...
Deduz-se desses princípios que a imposição das sanções elencadas para os atos de improbidade administrativa deve ser razoável, isto é, adequada, sensata, coerente em relação ao ato ímprobo cometido pelo agente público e suas circunstâncias, e proporcional, ou seja, compatível, apropriada, pertinente com a gravidade e a extensão do dano (material e moral) causado por ele.
(grifo nosso)
Nesse contexto, para um agente público que pratica um ato de improbidade administrativa sem grande relevância (uma conduta de pouca gravidade, de cunho formal, ainda que lesiva ao princípio da legalidade), não seria justo aplicar todas as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa. Já para aquele que causou grande dano ao erário e, ainda, se enriqueceu de forma ilícita, justo, necessário e imprescindível a aplicação de todas as sanções previstas na legislação. Igualar as duas condutas seria dar tratamento igual a casos distintos, numa clara violação aos princípios da isonomia e da proporcionalidade.
4- conclusão
A alteração legislativa, que veio em boa hora, garantiu mais segurança jurídica aos operadores do direito e atendeu aos anseios da doutrina e da jurisprudência dominantes, merecendo destaque nesse sentido os ensinamentos do Professor Hugo Nigro Mazzili [07]:
Mesmo antes do advento dessa alteração legislativa, já não nos parecia a melhor a aplicação sempre cumulativa das sanções, porque desarrazoado seria punir da mesma maneira o agente político que cometesse um dano culposo de pequena monta que proveito algum tivesse trazido a ele ou a terceiros, e aquele que de maneira dolosa se enriqueceu ilicitamente à custa do patrimônio público
O artigo 12, caput, da Lei n.º 8.429/92, a bem da verdade, deixou expresso a obrigatoriedade de aplicação do princípio da proporcionalidade na fixação das sanções pela prática de um ato de improbidade administrativa, como restou bem pontuado em recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais [08]:
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - LEI Nº 8429/1992 - PREFEITO-MUNICIPAL - REPASSE DE VERBAS PARA EXECUÇÃO DE OBRAS DE SANEAMENTO BÁSICO - EXECUÇÃO PARCIAL - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA DESTINAÇÃO DE PARCELA DOS RECURSOS FINANCEIROS - ATO ÍMPROBO CARACTERIZADO - FIXAÇÃO DA PENA - PROPORCIONALIDADE. Caracteriza ato ímprobo a atuação desidiosa do Prefeito-Municipal, que, ao gerir recurso destinado à Municipalidade para consecução de obras de saneamento básico, não logra êxito em comprovar a destinação de parcela da quantia repassada. De acordo com art. 12 da Lei nº 8429/1992, a pena imputada ao réu-ímprobo deve ter como mensuração o princípio da proporcionalidade. (grifo nosso)
Assim, o que era uma construção doutrinária e jurisprudencial acabou se tornando lei, sendo certa e induvidosa atualmente a possibilidade de aplicação não cumulativa das sanções previstas na Lei n.º 8.429/92.
Ainda que para muitos a alteração não fosse necessária (e não era mesmo), já que o princípio da proporcionalidade deve orientar todo e qualquer ato estatal – de forma que a dosimetria das sanções não advêm da lei e sim do princípio –, merece aplausos o legislador.
É que a modificação extirpou as dúvidas então existentes a respeito do tema, conferiu segurança jurídica aos operadores do direito, principalmente aos magistrados, e, em última análise, robusteceu e deu mais credibilidade à utilização e aforamento da ação civil pública por ato de improbidade administrativa por parte do Ministério Público.
Notas
- MARTINS, Fernando Rodrigues. Controle do Patrimônio Público, Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, 2006, pág. 149
- NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Manual de Direitos Difusos, Vidal Serrano Nunes Júnior, Coordenador, Probidade Administrativa, Nilo Spinola Salgado Filho, Editora Verbatin, 2009, pág. 644
- STJ, Recurso Especial 1097757/RS, Rel. Min. Castro Meira, 2ª Turma, julgado em 01/09/09, publicado DJU em 18/09/09, extraído do site www.stj.jus.br
- MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa, Editora Saraiva, 2ª edição, 2002, pág. 304/305
- ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, Editora Impetus, 15ª edição, 2008, pág. 155
- PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada, Editora Atlas, 1ª edição, 2002, pág. 123/124
- MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, Editora Saraiva, 24ª edição, 2011, pág. 209
- TJMG, Processo n.º 1.0686.06.174528-3/001, Rel. Des. Manuel Saramago, julgado em 10/02/2011, publicado em 28/02/2011, extraído do site www.tjmg.jus.br