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Desconstituição judicial de normas coletivas negociadas e o equívoco da jurisprudência do TST quanto à amplitude da legitimidade do Ministério Público do Trabalho

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20/09/2011 às 16:47
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O Ministério Público do Trabalho, ainda que figure como autor da ação anulatória, vem sendo impedido de postular em favor dos trabalhadores prejudicados pela norma coletiva desconstituída judicialmente.

SUMÁRIO. 1. Introdução / 2. A ação anulatória e a dissociação de competências / 3. A reparação/restituição nas Varas do Trabalho / 4. A restrição da legitimidade do Ministério Público do Trabalho para postular a reparação de danos / 5. Conclusões / Referências.


1. INTRODUÇÃO

O chamado "poder normativo" pressupõe a estipulação de novas normas e condições de trabalho no âmago do denominado dissídio coletivo de natureza econômica, ficando a Justiça do Trabalho responsável por decidir o conflito que o lastreia, "respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente" (art. 114 § 2º da Constituição). Essa decisão, proferida por Tribunal Regional do Trabalho ou Tribunal Superior do Trabalho, e conhecida como sentença normativa ou acórdão normativo, por visar à criação de normas jurídicas, não contém comando executivo, de modo que, sendo necessária a intervenção judicial para que as disposições da decisão normativa sejam observadas, será imprescindível o ajuizamento de nova demanda, perante a Vara do Trabalho, postulação esta conhecida como ação de cumprimento, prevista no art. 872 da CLT.

A decisão proferida nos autos do dissídio coletivo pode ser atacada tanto por meios recursais quanto pela ação rescisória (conforme art. 2º, I, "c" e art. 2º, II, "b", ambos da Lei n. 7.701/88). Há, assim, um razoável elenco de mecanismos destinados ao exercício da faculdade de impugnar as normas coletivas confeccionadas judicialmente.

Diferente situação ocorria com as normas coletivas negociadas – acordo coletivo de trabalho e convenção coletiva de trabalho. Não havia, até 1993, um mecanismo expressamente previsto em lei que se destinasse à impugnação dessas normas coletivas, até que a Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar n. 75, de 1993) conferiu ao Ministério Público do Trabalho a prerrogativa de "propor as ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores" (art. 83, IV). Com essa providência, a legislação complementou os mecanismos processuais disponíveis para a impugnação de normas coletivas: as normas coletivas advindas do poder normativo da Justiça do Trabalho, veiculadas pela denominada sentença normativa, poderiam ser atacadas, após o esgotamento dos meios recursais, pela ação rescisória. Já a impugnação de normas coletivas negociadas ficaria a cargo da chamada ação anulatória, com supedâneo no já mencionado art. 83, IV, da Lei Complementar n. 75/93.

Não há, contudo, ao contrário do que ocorre com o dissídio coletivo, qualquer restrição legislativa a respeito de seu "cumprimento" dissociado da demanda originária: em face disso, nada impediria que a efetivação da decisão (e os efeitos dela decorrentes), pudesse ser buscada nos próprios autos da ação anulatória. Não é esse, porém, o entendimento esposado pela jurisprudência formada no Tribunal Superior do Trabalho.

Além disso, o Ministério Público do Trabalho, ainda que figure como autor da ação anulatória, vem sendo impedido de postular em favor dos trabalhadores prejudicados pela norma coletiva desconstituída judicialmente, pois, para o Tribunal Superior do Trabalho, uma vez desconstituída a norma coletiva ilícita, no todo ou em parte, caberia aos trabalhadores a busca pela reparação individual, alijando-se o MPT da possibilidade de postular em favor desses obreiros.

O presente estudo objetiva, diante dessas circunstâncias, apresentar quais são os principais aspectos, na perspectiva do TST, acerca da efetivação da decisão judicial que reconhece a invalidade da norma coletiva negociada. E, para cada aspecto abordado, pretende-se apresentar as críticas devidas, chamando-se sempre a atenção para o fato de que o Tribunal Superior do Trabalho, infelizmente, ainda não alinhou a sua jurisprudência aos avanços verificados no estudo do direito processual e das relações coletivas de trabalho, como se passa a demonstrar.


2. A AÇÃO ANULATÓRIA E A DISSOCIAÇÃO DE COMPETÊNCIAS

O art. 83, IV, da Lei Complementar n. 75/93, apenas estipula ser de atribuição do Ministério Público do Trabalho o ajuizamento dessa demanda. Nada afirma quanto à competência da Justiça do Trabalho quanto aos critérios hierárquicos/funcionais.

Na ausência de determinação legal específica que desloque para um órgão judiciário colegiado o processamento dessa demanda, nada mais correto do que afirmar que seria das Varas do Trabalho a competência relativa à ação anulatória. É nesse sentido o posicionamento de boa parte da doutrina especializada. Veja-se, por exemplo, a manifestação de José Claudio Monteiro de Brito Filho:

No tocante à ação anulatória, pela total falta de previsão legal disciplinando que a competência originária seja dos tribunais trabalhistas, correto seria afirmar que a competência é das Juntas de Conciliação e Julgamento [hoje, Varas do Trabalho] [01].

Em sentido análogo é a manifestação de Sergio Pinto Martins:

Quando a Constituição ou a lei não dispuserem onde uma ação deve ser proposta, aplica-se a regra geral que deve ser ajuizada na primeira instância, isto é, no caso do processo do trabalho, nas Juntas de Conciliação e Julgamento. Quando a norma legal dispuser de forma contrária, por exceção, deve ser proposta a ação onde o preceito determinar. No caso, inexiste previsão, por exceção, de que a anulatória deve ser proposta nos tribunais. Logo, aplica-se a regra geral: a ação deve ser proposta no primeiro grau, nas Varas do Trabalho [02].

De fato, a dação de competência a qualquer órgão judiciário que não sejam "juízos de primeiro grau" ou "órgãos judiciários de piso" necessita de expressa menção normativa. Basta, para tanto, lembrar do art. 93 do vigente Código de Processo Civil, ao estipular que "regem a competência dos tribunais as normas da Constituição da República e de organização judiciária. A competência funcional dos juízes de primeiro grau é disciplinada neste Código". Há, pois, um critério residual na fixação de competência: a Constituição ou a lei definem determinadas competências; todas as demais não expressamente consignadas ficam a cargo do juízo de primeiro grau.

Esse entendimento, porém, reflete um pensamento hoje absolutamente minoritário. A jurisprudência do TST já se consolidou no sentido de que o regramento da competência para processar e julgar ação anulatória seria idêntico ao do dissídio coletivo: se a norma impugnada alcança até uma Regional, a competência será do TRT respectivo; se ultrapassar esse alcance, caberá ao TST julgar a ação anulatória pertinente.

O julgamento da ação anulatória de disposição normativa seria de competência do Tribunal por conta da sua "proximidade" com o poder normativo da Justiça do Trabalho, como se o instrumento referido no art. 83, IV, da LC n. 75/93 fosse "um dissídio coletivo às avessas", pois haveria o interesse do autor da demanda em desconstituir uma norma coletiva, ao passo que o dissídio coletivo de natureza econômica, tido como "espelho" da ação anulatória, teria por objetivo constituir uma norma coletiva.

A ideia do "dissídio coletivo invertido" ganhou corpo nos julgados do TST:

COMPETÊNCIA HIERÁRQUICA DO TRT. A reiterada jurisprudência deste Eg. Colegiado cristalizou a orientação de que a competência para decidir acerca da validade ou da nulidade de normas relativas às condições coletivas de trabalho estende-se, por força de disposição expressa da Lei 8.984/95, às disposições constantes de convenções e acordos coletivos de trabalho e constitui atribuição exclusiva dos Órgãos Jurisdicionais Trabalhistas de instâncias superiores, a saber, os Tribunais Superior e Regionais do Trabalho, aos quais competem a produção e interpretação de tais normas, como decorrência lógica do exercício do Poder Normativo [03].

[...] a matéria não mais comporta discussão, ante a jurisprudência pacífica no sentido de reconhecer a competência material da Justiça do Trabalho, bem como a competência funcional do TRT, para apreciar a ação anulatória de cláusula de convenção coletiva de trabalho. Com efeito, o tratamento dado à referida ação, para fins de competência, equivale àquele previsto no art. 114 da Constituição Federal e no art. 856 da CLT, ao dissídio coletivo, ante a similitude de conteúdo e de finalidade entre a sentença normativa e as normas coletivas autônomas [04].

É curioso observar que essas noções são muito assemelhadas à ideia, de grande repercussão na Justiça do Trabalho até meados da década de 1990, segundo a qual a ação civil pública, por ser modalidade de ação coletiva, deveria ser regida pelos mesmos critérios aplicáveis ao processo coletivo do trabalho por excelência, o dissídio coletivo. Essa formulação, felizmente, foi soterrada pelo tempo, diante da constatação – hoje óbvia, mas, naquela época, bastante controversa – de que a ação civil pública não é dissídio coletivo, seja de natureza econômica, seja de natureza jurídica [05].

Esse "despertar" do TST para a competência das Varas do Trabalho para o julgamento das ações civis públicas não se estendeu, infelizmente, à ação anulatória, apesar das incongruências jurídicas patentes que se notam com a manutenção do entendimento segundo o qual essa competência seria dos Tribunais, concepção ilógica por diversas razões.

A primeira delas se verifica a partir da constatação de que não há demanda mais próxima do dissídio coletivo do que a ação de cumprimento, uma "ação coletiva" tanto quanto a anulatória, e que será julgada, todavia, conforme dispõe o art. 872, parágrafo único, da CLT, pela Vara do Trabalho, não pelo Tribunal. Isso porque, ao pretender dar cumprimento à norma coletiva, a ação de cumprimento busca a efetivação de direitos previstos no ordenamento jurídico (direitos acrescidos, por certo, pela norma coletiva que fundamenta a pretensão) [06]. No caso da ação anulatória, ocorre exatamente o inverso: também aqui há uma norma coletiva precedente; busca-se, no entanto, a sua inibição, com fulcro no que o ordenamento jurídico estipula em contrariedade a essas normas coletivas irregulares. Não há, pois, "desfazimento" puro e simples da norma coletiva, mas o reconhecimento jurídico de que certas disposições negociadas são incompatíveis com o ordenamento jurídico previamente existente. A invalidação também não inova na ordem jurídica: reconhecida a nulidade de cláusula, seus efeitos são retirados do mundo jurídico não – ao contrário do que ocorre no dissídio coletivo de natureza econômica – por causa de suposta "discricionariedade" do julgador [07] nem em razão do seu senso de justiça [08], mas sim pela sua normatização ilícita promovida pela convenção ou acordo coletivo invalidado [09].

Em segundo lugar, a ação anulatória é, na verdade, um dissídio individual (como o é a ação de cumprimento), e não um "dissídio coletivo com o sinal invertido", pois se pretende a anulação de cláusula convencional com base na legislação vigente, em nada se assemelhando à "criação de condições de trabalho", nem à "interpretação de norma coletiva". Não há, pois, nada que identifique a demanda prevista no art. 83, IV, da Lei Complementar n. 75/93 com qualquer das modalidades de dissídio coletivo [10].

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Por fim, não existe hipótese de fixação de competência por entendimento jurisprudencial, de modo que, à falta de norma expressa que a defina, deve-se considerar competente o órgão jurisdicional singular, a Vara do Trabalho, nos moldes do disposto no art. 93 do CPC.

Este último argumento – a fixação de competência com base em "entendimento jurisprudencial sedimentado" – destaca-se pela sua afronta aos mais basilares princípios do direito processual. Não por acaso, Rodolfo de Camargo Mancuso há muito tempo já havia identificado essa anomalia jurisprudencial, no que concerne à ação civil pública, tendo feito as correções devidas:

Como se vê, a exegese conducente a atrair a ação civil pública trabalhista para a competência originária dos Tribunais Laborais parece apresentar o risco de uma petição de princípio, na medida em que parte de uma premissa – a afirmada semelhança entre essa ação e o dissídio coletivo – que, sobre não restar suficientemente demonstrado, traz um inconveniente adicional, qual seja, o de permitir a "criação" de uma hipótese de competência hierárquica/funcional (portanto, absoluta), por meio de extensão analógica, quando parece certo que, tratando-se de questão processual de ordem pública, tal competência só poderia derivar de lei (processual ou, ao menos, de organização judiciária) [11].

Idêntico raciocínio deve ser aplicado à ação anulatória, pois, nesse caso, não há qualquer criação de normas jurídicas, o que afasta a sua caracterização como dissídio coletivo de natureza econômica, não há fixação de interpretação por parte do Poder Judiciário, o que refuta a ideia de similitude com o dissídio coletivo de natureza jurídica, e a invalidação da cláusula normativa é reconhecida a partir de sua incompatibilidade com o ordenamento jurídico preexistente, amoldando-se, pois, aos mesmos pressupostos que classificam as demandas trabalhistas que não impliquem o exercício do poder normativo como sendo dissídios individuais.

Assinale-se, ainda, que a própria ação civil pública, tida, por certo tempo, também como "dissídio coletivo por equiparação", é de competência das Varas do Trabalho, ainda que seus efeitos exorbitem a esfera territorial de competência desse órgão judiciário, pois é típico das demandas coletivas o alcance transindividual de seus efeitos (erga omnes ou ultra partes, a depender do caso [12]). Não há porque não atribuir à ação anulatória as mesmas premissas.

Viu-se, contudo, que a jurisprudência firmou-se em sentido contrário. E crescem as vozes na doutrina que endossam esse posicionamento, sustentando que: a) se a declaração de nulidade alcançar cláusula de contrato de emprego ou de regulamento de empresa, a competência será das Varas do Trabalho; e b) se a declaração de nulidade atingir convenção ou acordo coletivo de trabalho, a competência será do TRT ou TST, a depender da abrangência das normas impugnadas [13].

Embora não seja a melhor solução, a definição da competência do Tribunal para o julgamento das ações anulatórias não traria, aparentemente, nenhum problema de cunho prático — bastaria, ao invés de postular perante a Vara do Trabalho, buscar o TRT ou o TST para tanto, ou mesmo aguardar a remessa dos autos para que o juízo competente proferisse a decisão cabível.

Como se verá adiante, no entanto, esse posicionamento provoca um relevante entrave quanto ao cumprimento das decisões da Justiça do Trabalho. E essa situação é, ainda, bastante agravada com a perspectiva, que se detecta a partir dos julgados do TST, segundo a qual o rol dos legitimados para buscar a reparação por danos deve ser compreendido de maneira restritíssima, diante das ponderações que se apresentam a seguir.


3. A REPARAÇÃO/RESTITUIÇÃO NAS VARAS DO TRABALHO

O Tribunal Superior do Trabalho firmou-se no sentido de que, reconhecida a nulidade da cláusula que acarreta algum dano ao trabalhador (descontos sindicais a trabalhadores não sindicalizados, viabilização de jornada extraordinária sem compensações nem respeito ao patamar mínimo de adicional, desrespeito ao piso profissional legal de determinados profissionais, etc.), a reparação dos danos correspondentes deverá ser viabilizada por outra demanda, ajuizada pelo trabalhador prejudicado. Trata-se de entendimento cristalizado há bastante tempo na jurisprudência consolidada do Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Orientação Jurisprudencial n. 17 da SDC:

CONTRIBUIÇÕES PARA ENTIDADES SINDICAIS. INCONSTITUCIONALIDADE DE SUA EXTENSÃO A NÃO ASSOCIADOS. As cláusulas coletivas que estabeleçam contribuição em favor de entidade sindical, a qualquer título, obrigando trabalhadores não sindicalizados, são ofensivas ao direito de livre associação e sindicalização, constitucionalmente assegurado, e, portanto, nulas, sendo passíveis de devolução, por via própria, os respectivos valores eventualmente descontados [14].

Essa restituição de valores deveria ser intentada pelos próprios trabalhadores prejudicados, pois, em demanda individual. Que seria ajuizada perante a Vara do Trabalho, pois, como visto no tópico anterior, não caberia à Vara do Trabalho julgar a invalidade da norma coletiva, por se tratar de um "dissídio coletivo às avessas".

Assim, o TST, partindo de uma premissa equivocada (o Tribunal seria o órgão judiciário competente para processar e julgar ação anulatória) consolida um sofisma: que os pleitos de invalidação da norma coletiva e reparação de danos seriam inacumuláveis, pois os órgãos judiciários competentes para julgá-los seriam distintos, circunstância vedada pela regra exposta no art. 292 § 1º, II, do CPC, que impede a cumulação de pedidos se não for "competente para conhecer deles o mesmo juízo" [15].

A conclusão bem diferente se chegaria caso o Tribunal adotasse o entendimento mais consentâneo com o ordenamento jurídico: o de que caberia às Varas do Trabalho o julgamento das ações que visam à declaração de nulidade de normas coletivas negociadas. Nesse cenário, sendo de competência das Varas tanto o julgamento do pleito declaratório [16] quanto o do pleito condenatório, nada obstaria a cumulação de pedidos nessa demanda.

A visão do Tribunal Superior do Trabalho ancora-se, entretanto, no entendimento segundo o qual as Varas do Trabalho seriam incompetentes funcionalmente para processar e julgar a ação anulatória, não tendo como executar a eventual condenação, pois o pleito condenatório seria de competência das Varas do Trabalho, a ser veiculado em demanda autônoma.

Essa dissociação de competências, como se uma demanda necessitasse de outra decisão judicial transitada em julgado – uma verdadeira condição judicial de procedibilidade – é uma técnica que não tem correlatos no sistema processual brasileiro. E essa ausência de outros exemplos explica-se pela circunstância de que não há fundamento jurídico algum para que isso se sustente. Tanto assim que essa solução proposta pelo TST tem restritíssima repercussão prática, sendo raras as demandas conhecidas na Justiça do Trabalho que, ancoradas numa invalidação prévia promovida pelo Tribunal, busquem, nas Varas, a reparação dos danos.

Outros lineamentos acerca dessas restrições indevidamente impostas pela jurisprudência serão estudados a seguir.


4. A RESTRIÇÃO DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO PARA POSTULAR A REPARAÇÃO DE DANOS

É indiscutível a legitimidade que detém o Ministério Público do Trabalho para ajuizar ação anulatória, conforme expressamente prevê o art. 83, IV, da Lei Complementar n. 75/93.

Curiosamente, porém, embora nunca houvesse pairado dúvidas a respeito da legitimidade do Ministério Público do Trabalho para promover a ação anulatória, o Tribunal Superior do Trabalho, ao construir seu entendimento de que o ressarcimento pelos danos deveria ser buscado em órgão judiciário distinto (Vara do Trabalho), inexplicavelmente vem excluindo a legitimidade do Ministério Público do Trabalho para buscar essa reparação, limitando-a apenas aos próprios trabalhadores prejudicados.

É o que se percebe após a leitura dos arestos abaixo transcritos:

ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PLEITEAR A DEVOLUÇÃO DOS DESCONTOS ASSISTENCIAIS. O interesse de agir do Ministério Público restringe-se ao pedido de declaração de nulidade de cláusula lesiva às liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores. A reparação do dano, in casu, é questão pertinente ao interesse individual daquele que se sentir prejudicado pela disposição normativa, devendo ser discutida em ação própria e em sede adequada. É que a pretensão de devolução dos valores recebidos com base em cláusula normativa anulada não se refere a direitos individuais indisponíveis. Pelo contrário, a pretensão em tela diz respeito a interesses individuais disponíveis, tendo em vista que se buscou garantir a irredutibilidade salarial, em detrimento de cláusula coletiva de contribuição assistencial, restringindo-se o pretenso direito ao não-desconto salarial à esfera individual de cada empregado alcançado pelo instrumento coletivo. Recurso de revista conhecido e provido [17].

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Contribuição para entidades sindicais. Extensão aos não sindicalizados. Ressarcimento de valores indevidamente cobrados. Direitos individuais homogêneos. Não configuração. Ilegitimidade ativa do Ministério Público do Trabalho. Não demonstrada violação de dispositivos legais ou constitucionais, nem divergência jurisprudencial. Agravo de instrumento a que se nega provimento [18].

O primeiro equívoco que se nota nesse posicionamento diz respeito a uma pretensa exclusão mútua entre direito individual e direito coletivo. Os valores eventualmente devidos em caso de ressarcimento ingressam, indubitavelmente, na esfera de direito individual do trabalhador. Isso, porém, não impede que o Ministério Público empreenda postulação judicial a respeito desses direitos, pois esse direito individual não difere, na essência, dos direitos individuais homogêneos. Em outras palavras: os direitos individuais homogêneos são uma multiplicidade de direitos individuais, sendo tratados coletivamente por uma questão processual [19]. Não se confundem, pois, com direitos coletivos, embora ganhem uma aura de coletividade em razão da possibilidade jurídica de tutela jurisdicional coletiva desses direitos individuais.

Assim, os direitos individuais tidos por "homogêneos" não diferem, em essência, dos direitos individuais ditos "puros". Aquela nova denominação refere-se à circunstância de que, para fins de tutela jurisdicional coletiva, tais direitos individuais são tratados coletivamente no âmbito processual [20], devendo, para tanto, atender a dois pressupostos básicos: 1) que haja homogeneidade da multiplicidade de direitos individuais; e 2) que haja origem comum desses direitos (art. 81, Parágrafo Único, III, do CDC), por um ponto de fato ou de direito (art. 46, IV, do CPC).

Vê-se, portanto, que não se exige dos direitos individuais homogêneos a caracterização de "direitos indisponíveis". Até porque, como visto, o adjetivo "homogêneos" advém de uma técnica processual de concentração de pretensões numa única demanda, ao contrário do qualificativo "indisponíveis", que decorre de aspectos analisados apenas sob a ótica do direito material/substancial. Em face disso, mesmo – e talvez até principalmente – os direitos individuais "disponíveis a priori" são, também, caracterizáveis como direitos individuais homogêneos, desde que, para fins de tutela processual coletiva, amoldem-se aos pressupostos supramencionados (homogeneidade + origem comum).

A interação entre direitos individuais homogêneos e direitos indisponíveis, aliás, é um dos pontos em que se percebe maior confusão na doutrina processual trabalhista. A jurisprudência do TST, como visto, exige a caracterização prévia da indisponibilidade desses direitos para que o Ministério Público do Trabalho detenha legitimidade ativa para promover essa postulação. Nesse exato sentido é possível citar as formulações de Manoel Antonio Teixeira Filho:

[...] dispõe o art. 127 da Constituição Federal incumbir ao Ministério Público, como instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, "a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. O trecho posto em destaque deixa evidente, pois, que o constituinte brasileiro atribuiu ao Ministério Público a tarefa de promover a defesa, em matéria de interesses individuais, exclusivamente dos que sejam indisponíveis. Segue-se que, estando constitucionalmente restrita a atuação do Ministério Público, em foro de direitos individuais homogêneos, àqueles que sejam indisponíveis, estará em manifesto antagonismo com a Carta Magna qualquer norma infraconstitucional que venha a ampliar essa atuação, no terreno dos direitos individuais homogêneos [21].

A relação entre indisponibilidade e direitos individuais homogêneos, porém, dá-se em termos diametralmente opostos. Na verdade, a indisponibilidade não precede esses direitos: os direitos individuais homogêneos tornam-se indisponíveis na medida em que se coletivizam, e não o contrário (somente se coletivizam se forem previamente caracterizados como indisponíveis). Se é certo que a Constituição limita ao Ministério Público a tutela dos direitos individuais aos casos em que estes se mostrem indisponíveis, também é correto afirmar que, no conceito constitucional de "interesses sociais" ingressam, sem qualquer dúvida, os direitos individuais homogêneos – até porque o conceito de interesses individuais homogêneos é criação do Código de Defesa do Consumidor (1990), posterior à Constituição (1988), não havendo sentido em considerar "inconstitucional" a ampliação de legitimidade do Ministério Público na defesa da sociedade, pois a mesma Constituição, sem esse espírito restritivo, conferiu ao Ministério Público a defesa dos "interesses sociais" (art. 127, caput), de "outros direitos difusos e coletivos" (art. 129, III), além da prerrogativa de "exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade" (art. 129, IX).

Nesse sentido cabe transcrever as afirmações de Humberto Dalla Bernardina de Pinho:

A partir dessa origem comum surge a extensão social do direito, pois se diversas pessoas se encontram na mesma situação jurídica, automaticamente aquela situação passa a produzir efeitos numa coletividade, obrigando o ordenamento jurídico a tutelar o direito como coletivo lato sensu. Sendo um direito coletivamente tutelado, passa a ser indisponível em razão dessa mesma extensão social. Em outras palavras, aquele direito que se fosse concebido individualmente seria disponível, é alçado a uma condição superior, pois há todo um grupamento social interessado no deslinde daquela controvérsia. Nessa linha de raciocínio, chega-se à conclusão de que em sede de direitos individuais homogêneos existe uma questão coletiva comum a todos os membros da classe e que se sobrepõe a eventuais questões individuais. Eis aí a pedra de toque, ou seja, a dita homogeneidade advém desta questão comum prevalente, que se torna então uma questão social, e, por conseguinte, indisponível [22].

Existe, pois, tanto na visão do TST como de parte da doutrina, uma inversão de conceitos que inibe a amplitude desejada pela Constituição e pela lei no que tange à tutela dos direitos da coletividade.

Nas situações em que tradicionalmente uma decisão judicial em ação anulatória atrela-se à ocorrência de um prejuízo (descontos sindicais indevidos, salários abaixo do piso profissional, compensação de jornada em parâmetros irregulares, o que implica o pagamento de adicional de horas extras, dentre outras), esse prejuízo afigura-se, sem dúvida, como tendo uma origem comum (a norma coletiva que estipula essa prática danosa) e homogênea (todos os trabalhadores da categoria, ou parte daqueles que se encontrem numa mesma situação jurídica, caso a categoria seja eclética). Assim, embora a postulação direcionada à invalidação da norma coletiva (ação anulatória) tenha feição coletiva, por afetar todos os envolvidos ligados às partes por meio de uma relação jurídica base [23], seja de integrante da categoria profissional, seja de empregado de empresa integrante da categoria econômica, as reparações dela decorrentes ostentarão a natureza de direitos individuais homogêneos, sendo, para tanto, legitimado o Ministério Público do Trabalho também para promover a postulação em favor dos trabalhadores prejudicados.

Mostra-se, ainda, inusitada a pretensa dissociação de situações: a legitimidade ativa do Ministério Público do Trabalho para o ajuizamento de ação anulatória é inquestionável, mas, quando se transportam os fatos para a reparação efetiva do dano provocado a partir da norma coletiva ilicitamente editada, estranhamente se entende que o Ministério Público do Trabalho perde, subitamente, qualquer legitimação para atuar nesse sentido, como se a relevância social da questão restringisse-se apenas ao aspecto formal (invalidação judicial da norma impugnada) e não ao efetivo ressarcimento pelos prejuízos provocados. É o processo voltando à época em que era um fim em si mesmo, e não um meio de efetivamente solucionar um problema...

Acresça-se, ainda, que, como bem salienta o TST, os trabalhadores podem postular a reparação na Justiça, individualmente. Também poderão postular em grupo, organizados em litisconsórcio ativo, circunstância que, na praxe trabalhista, é conhecida como reclamação plúrima ou dissídio individual plúrimo, prevista no art. 842 da CLT. Essa possibilidade de postulação individual, porém, não afasta a caracterização desses direitos como sendo direitos individuais homogêneos se houver a postulação do Ministério Público do Trabalho nesse sentido, a ser veiculada em ação civil coletiva (arts. 91 e 92 do CDC [24]).

A diferença, nesse caso, é que a postulação individual ou plúrima somente afetará a esfera jurídica dos demandantes, ao passo que a postulação empreendida pelo MPT pode beneficiar a todos os envolvidos, tenham eles adotado a iniciativa de procurarem o Judiciário ou não. No caso do dissídio individual plúrimo, a sentença indicará em que medida uns e outros demandantes serão beneficiados, já que esse litisconsórcio forma-se por afinidade (art. 46, IV, do CPC). Já a postulação do Ministério Público do Trabalho pressuporia uma sentença genérica (art. 95 do CDC: "em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados"), que se limitaria a afirmar o dever de ressarcimento por parte dos demandados. A partir daí, cada prejudicado pode promover a execução, que também poderá ser levada adiante pelo próprio Ministério Público do Trabalho.

A vantagem para os trabalhadores, nesse caso, é evidente: com uma só sentença genérica, que fixa a responsabilidade pelos danos, todos os prejudicados serão beneficiados, bastando que o trabalhador ingresse no processo apenas para quantificar e executar o valor devido. A vantagem para o Judiciário também é visível: com uma só decisão, mesmo aqueles que não postularam ainda serão beneficiados, evitando a replicação de demandas idênticas na Justiça do Trabalho. E mesmo no caso de insucesso a postulação acerca dos direitos individuais homogêneos mostra-se vantajosa para os trabalhadores, pois seu regime de coisa julgada apenas afeta as relações jurídicas se houver procedência do pedido na demanda coletiva (art. 103, III, do CDC). Não havendo procedência, as postulações individuais ou plúrimas poderão prosseguir, caso já iniciadas, ou serem deflagradas, se o Judiciário ainda não tiver sido provocado, pois, em ambos os casos, não haverá o óbice da coisa julgada a impedir o prosseguimento dessas demandas individuais.

Além de revelar a ausência de adequada compreensão acerca dos direitos individuais homogêneos, e de ignorar as vantagens que a postulação empreendida pelo MPT traria aos trabalhadores nesses casos, o TST parece não ter em conta outra situação faticamente muito relevante: o provável desinteresse do prejudicado, em face da diminuta expressão econômica do prejuízo.

É uma preocupação existente há algum tempo na doutrina, no sentido abordado por Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr.:

Vale recordar, mais uma vez, que os direitos individuais decorrentes de lesões homogêneas nem sempre serão suficientemente atrativos para a sua realização individual, por exemplo, quando ocorre uma lesão no mercado de ações e os acionistas são prejudicados em apenas alguns poucos centavos, ninguém duvida que esta lesão não será reparada frente as condutas individuais, [pois] não existe motivação econômica para ajuizar uma ação visando à recuperação de pequenos ou ínfimos valores [25].

No campo justrabalhista, imagine-se a situação mais comum de invalidação da norma coletiva, qual seja, a imposição de descontos sindicais a trabalhadores não sindicalizados. Caso haja a imposição de um desconto mensal de, hipoteticamente, 1% (um por cento) do salário, e considerando que esse trabalhador aufira R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais, esse empregado amargaria um prejuízo de R$ 6,00 (seis reais) mensais. Multiplicando-se esse valor por doze meses, o montante anual de descontos irregulares alcançaria o importe de R$ 72,00 (setenta e dois reais). Considerando-se que esse trabalhador venha a buscar um advogado particular (até porque o advogado do sindicato, entidade que figurava como ré na ação anulatória e na demanda reparatória ajuizada na Vara do Trabalho, provavelmente não patrocinará a causa, por motivos óbvios), é de se duvidar da viabilidade de ingressar na Justiça do Trabalho para buscar R$ 72,00 (setenta e dois reais) por esses doze meses de descontos irregulares, mesmo que o trabalhador receba apenas um salário mínimo mensal, especialmente se se levar em consideração o custo de um advogado e o dispêndio de tempo e de energias num processo judicial para buscar tão ínfimo valor.

A postura adotada pelo TST, portanto, além de restringir a eficácia da decisão, colabora, como facilmente se percebe, com a perpetuação da irregularidade, tornando extremamente vantajosa a inserção de normas coletivas lesivas aos trabalhadores por parte dos envolvidos na negociação coletiva, ao menos enquanto perdurar os atuais entendimentos na jurisprudência a respeito do assunto.

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Sobre o autor
Cláudio Dias Lima Filho

Procurador do Trabalho com lotação na PRT 5ª Região. Mestre em Direito Público pela UFBA. Professor universitário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Cláudio Dias. Desconstituição judicial de normas coletivas negociadas e o equívoco da jurisprudência do TST quanto à amplitude da legitimidade do Ministério Público do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3002, 20 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20035. Acesso em: 2 nov. 2024.

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