RESUMO: O artigo investiga se é possível juridicamente a entrega direta de fatura de cobrança pelo ente responsável por serviço público prestado à sociedade sem a intervenção da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – EBCT.
Serviço postal.
O núcleo da investigação reside em saber se há viabilidade jurídica de entrega direta de fatura de cobrança pelo ente responsável por serviço público prestado à comunidade sem a intervenção da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – EBCT. Ou seja, a entrega direta de fatura viola o monopólio dos Correios, previsto no art. 21, X, da Constituição da República [01]?
Em princípio, seria possível imaginar que tal procedimento não contraria as regras e princípios atinentes à matéria e previstos no sistema jurídico pátrio.
Isso porque não há comprovação de que o encaminhamento de boletos de cobrança pelo prestador de serviço a seus consumidores esteja violando a aludida regra constitucional, já que a ordem jurídica assegura apenas a exclusividade de entrega, pela EBCT, de carta, não incluindo boletos bancários.
Vale dizer, a legislação de regência não inclui expressamente o boleto de cobrança no conceito de carta. Observe-se na Lei nº 6.538/78:
Art. 7º - Constitui serviço postal o recebimento, expedição, transporte e entrega de objetos de correspondência, valores e encomendas, conforme definido em regulamento.
§ 1º - São objetos de correspondência:
a) carta;
[...]
Art. 47º - Para os efeitos desta Lei, são adotadas as seguintes definições:
CARTA - objeto de correspondência, com ou sem envoltório, sob a forma de comunicação escrita, de natureza administrativa, social, comercial, ou qualquer outra, que contenha informação de interesse específico do destinatário. [grifado]
Assim, não há como concluir, primo ictu oculi, que o boleto de cobrança se subsume no conceito de carta mencionado na legislação.
Além disso, outro fator a ensejar tal conclusão é que o serviço de entrega dos boletos não é feito por terceiros, mas pela própria prestadora do serviço público, devendo ser considerado, ainda, que há a possibilidade de o documento representar uma relação jurídica protegida pela Lei das Duplicatas (Lei nº 5.474/68), o que afastaria, aparentemente, a violação ao regime vinculado à EBCT.
Neste sentido já decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
ECT. BOLETOS DE COBRANÇA ENTREGUES POR FUNCIONÁRIO PRÓPRIO. NÃO VIOLAÇÃO AO MONOPÓLIO ESTATAL.
1. Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT tem o monopólio postal de cartas, definidas estas como objeto de correspondência, com ou sem envoltório, sob a forma de comunicação escrita, de natureza administrativa, comercial ou qualquer outra, que contenha informação de interesse específico do destinatário.
2. Atividade própria, por meio de funcionário, para entrega de documentos internos não se enquadra no conceito de atividade econômica de entrega postal, através da qual se possa cogitar quebra de monopólio da União.
3. O documento de cobrança não se coaduna com a noção de carta em sentido de informação/comunicação escrita. É documento representativo de um direito, tal como a duplicata e a fatura, que nos termos da Lei nº 5.474/68 representam operação de venda de mercadorias e serviços, a primeira, inclusive, sendo documento para circulação com efeito comercial, negociável, objeto de transmissão de direitos, sujeita a endosso, aceite e protesto. Sob este ótica, boletos de cobrança não se enquadram na definição da Lei nº 6.538/78 e seu trânsito por outro ente que não a ECT não viola o monopólio estatal. [grifado]
(APELAÇÃO CIVEL, Processo 200570030017853/PR, 3ª TURMA, Relatora MARIA LÚCIA LUZ LEIRIA, j. 07/08/2007, D.E. 22/08/2007)
Ou seja, quando a atividade é desempenhada por pessoa jurídica de direito público, tal como ser verifica na prestação de serviço público de água e esgoto, há subordinação do ente ao regime jurídico de direito público, que não possui, nesse contexto, finalidade lucrativa comparável às sociedades empresárias.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 46, entendeu, contrariamente, que o boleto bancário e a fatura estão incluídos no conceito de carta, cujo serviço de entrega e distribuição é exclusivo dos Correios.
A decisão do STF está assim resumida:
EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. EMPRESA PÚBLICA DE CORREIOS E TELEGRÁFOS. PRIVILÉGIO DE ENTREGA DE CORRESPONDÊNCIAS. SERVIÇO POSTAL. CONTROVÉRSIA REFERENTE À LEI FEDERAL 6.538, DE 22 DE JUNHO DE 1978. ATO NORMATIVO QUE REGULA DIREITOS E OBRIGAÇÕES CONCERNENTES AO SERVIÇO POSTAL. PREVISÃO DE SANÇÕES NAS HIPÓTESES DE VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL. COMPATIBILIDADE COM O SISTEMA CONSTITUCIONAL VIGENTE. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 1º, INCISO IV; 5º, INCISO XIII, 170, CAPUT, INCISO IV E PARÁGRAFO ÚNICO, E 173 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LIVRE CONCORRÊNCIA E LIVRE INICIATIVA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. ARGUIÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO CONFERIDA AO ARTIGO 42 DA LEI N. 6.538, QUE ESTABELECE SANÇÃO, SE CONFIGURADA A VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL DA UNIÃO. APLICAÇÃO ÀS ATIVIDADES POSTAIS DESCRITAS NO ARTIGO 9º, DA LEI. 1. O serviço postal --- conjunto de atividades que torna possível o envio de correspondência, ou objeto postal, de um remetente para endereço final e determinado --- não consubstancia atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço público. 2. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A exclusividade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos entre si; não se os deve confundir no âmbito da linguagem jurídica, qual ocorre no vocabulário vulgar. 3. A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional [artigo 20, inciso X]. 4. O serviço postal é prestado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT, empresa pública, entidade da Administração Indireta da União, criada pelo decreto-lei n. 509, de 10 de março de 1.969. 5. É imprescindível distinguirmos o regime de privilégio, que diz com a prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado. 6. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de exclusividade na prestação dos serviços que lhe incumbem em situação de privilégio, o privilégio postal. 7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os serviços públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade. 8. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente por maioria. O Tribunal deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 42 da Lei n. 6.538 para restringir a sua aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º desse ato normativo. [grifado]
(ADPF 46/DF, Tribunal Pleno, Relator Min. MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão Min. EROS GRAU, julgado em 05/08/2009, DJe 25-02-2010)
Portanto, no julgamento, resultado da votação de seis votos a quatro, a Corte entendeu que a Lei 6.538/78, foi recepcionada e é compatível com o texto da Constituição da República, especialmente no que trata do privilégio dos Correios. Em consequência, cartas pessoais e comerciais, cartões-postais e correspondências agrupadas (malotes) poderão ser transportados e entregues apenas pela EBCT e não por outro ente, ainda que prestador de serviço público. Em interpretação conforme, o STF decidiu, ainda, que os agentes de transportadoras privadas não praticam crime ao entregar outros tipos de correspondências e encomendas.
Tem-se, assim, a adoção do conceito não reducionista de carta, que engloba toda e qualquer correspondência, seja administrativa, social ou comercial.
Em resumo, o STF, pela ilustrada maioria dos seus Ministros, entendeu que o conceito de carta não é reducionista, abarca boletos bancários, contas de água, telefone e luz.
O Superior Tribunal de Justiça também adotou o mesmo posicionamento, em decisão assim ementada:
"ADMINISTRATIVO. ECT. SESI. LICITAÇÃO. ENTREGA DE FATURAS. MONOPÓLIO ESTATAL.
1. Documentos bancários e títulos incluem-se no conceito de carta, cuja distribuição é explorada pela União (ECT) em regime de monopólio. Precedentes.
2. Recurso especial provido em parte."
(REsp 1014778/SC, SEGUNDA TURMA, RELATORA Ministra ELIANA CALMON, j. 19/11/2009, DJE 02/12/2009)
Neste contexto, não é juridicamente possível o particular ou ente prestador de serviço público entregar diretamente a fatura ou o boleto de cobrança sem a intervenção da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos.
Nota
01"Compete à União:[...]X - manter o serviço postal e o correio aéreo nacional;"