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A cooperação jurídica internacional na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça

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A despeito do progresso quanto ao número de julgamentos, o STJ continua sendo tímido, ineficiente e absurdamente lento na prestação da Justiça quando a matéria é cooperação jurídica internacional.

RESUMO: A inegável sobrecarga de competência e a imposição de padrões rígidos compromete a almejada celeridade dos processos de cooperação jurídica internacional no Brasil. A despeito dos recorrentes pronunciamentos jurisprudenciais do STF e STJ,

a cooperação jurídica internacional não tem se mostrado efetivamente célere e eficaz em nosso país. Procuramos neste artigo demonstrar a evolução e os equívocos das interpretações dadas ao objeto em análise.

Palavras-chave: Cooperação Jurídica Internacional. Competência. Jurisprudência.

ABSTRACT: The undeniable burden of responsibility and the imposition of strict standards compromises the desired speed of the processes of international legal cooperation in Brazil. Despite the recurring jurisprudential pronouncements of the STF and STJ international legal cooperation has proved effective in quickly and effectively our country. In this paper demonstrate the evolution and the misunderstandings of interpretations given to the object in question.

Keywords: International Legal Cooperation. Competence. Jurisprudence.

SUMÁRIO: I. Introdução. II. Aspectos Gerais da Cooperação Jurídica Internacional. III. Cooperação Jurídica Internacional e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. IV. A ineficiência brasileira e as novas perspectivas da Cooperação Jurídica Internacional no Direito Brasileiro. V. Conclusão. Referências bibliográficas.


I.INTRODUÇÃO

Este estudo apresenta como eixo central, uma reflexão acerca da importância da cooperação internacional no contexto jurídico contemporâneo, do ponto de vista teórico e prático, destacando-se a jurisprudência já edificada no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, sobretudo, em matéria civil.

O Brasil, desde a Constituição de 1934, optou por conferir ao Supremo Tribunal Federal a função, basicamente administrativa, de analisar estes pedidos formais de cooperação judicial internacional como forma de, dentre outros motivos não menos importantes, exercer sua função de zelar pelo respeito à ordem pública nacional, esculpida especialmente em nossa Constituição através dos direitos e garantias fundamentais e dos princípios gerais de direito.

A Emenda Constitucional n. 45, dentre as inúmeras inovações incorporadas junto ao ordenamento jurídico brasileiro, alterou a competência do Supremo Tribunal Federal para o Superior Tribunal de Justiça reconhecer e homologar sentenças estrangeiras (inclusive as proferidas por árbitros), bem como a concessão do exequatur às cartas rogatórias alienígenas.

Não obstante a transferência da competência constitucional, a sobrecarga de trabalhos que recai sobre o STJ é tão grande, quanto aquela que onera o STF e muita coisa ainda deverá ser feita em prol da reforma do Judiciário. Não se sabe ainda como a lei regulará esses processos. Todavia, considerando que jurisdição é expressão de soberania e obrigatoriamente deve estar vinculada à ordem pública interna e, mais ainda, quando se trata de recepção comiter de soberania estrangeira, não se deve olvidar que algumas decisões do STJ poderão desaguar no STF, em função de recursos constitucionais. Mesmo com o acréscimo do § 3° ao art. 102 da Magna Carta pela EC 45/2004, a hipótese é real. [01]

E, considerado que o jurista tem o dever de buscar soluções para que possam ser eliminados, ao menos em parte, os males acarretados pela demora do processo, sabido que, como dizia Carnelutti, "processo é vida" [02], procura-se impingir ao presente trabalho tal ousadia.


II. ASPECTOS GERAIS DA COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL

O mundo globalizado vivencia uma crescente circulação de pessoas, bens e serviços. Como consequência, os Estados passam a enfrentar situações nas quais necessitam de auxílio para o exercício da jurisdição. A cooperação entre os Estados no âmbito jurídico faz-se, assim, imprescindível e, por isso, constitui área de grande desenvolvimento nos dias atuais.

Isso se deve ao fato de as transformações ocorridas nas sociedades refletirem-se nos ordenamentos jurídicos, forçando-os a amoldarem-se às novas realidades.

Apesar de não constituir novidade na área jurídica, o estudo da cooperação jurídica internacional [03] adquire particular relevo na atualidade, diante da conjuntura internacional de um mundo multicultural, por possibilitar o dinamismo e a eficácia da prestação da tutela jurisdicional estatal. Isso se deve ao fato de as transformações ocorridas nas sociedades refletirem-se nos ordenamentos jurídicos, forçando-os a amoldarem-se às novas realidades [04].

A intensificação das relações internacionais no período seguinte à Segunda Guerra Mundial, segundo Eduardo Felipe P. Matias [05], deve-se, principalmente, a dois fatores fundamentais:

"O primeiro relaciona-se com a consciência dos Estados quanto ao fato de que não são auto-suficientes, de que o isolamento representa um retrocesso e de que o crescimento está vinculado à cooperação. O segundo fator é a coexistência de múltiplos Estados independentes."

O contexto atual fez com que os Estados deparassem com problemas que não conseguiriam resolver sozinhos, ou, pelo menos, resolveriam melhor por meio da cooperação [06] Nessa nova ordem global, é inevitável que haja uma série de políticas públicas que não podem ser implementadas sem a cooperação de outros países, enquanto várias funções tradicionais dos Estados não poderiam ser cumpridas sem se recorrer a formas internacionais de colaboração [07].

Cooperação pressupõe trabalho conjunto, colaboração. É nesse sentido que toda e qualquer forma de colaboração entre Estados, para a consecução de um objetivo comum, que tenha reflexos jurídicos, denomina-se cooperação jurídica internacional.

Cooperação jurídica internacional, que é a terminologia consagrada, [08] significa, em sentido amplo, o intercâmbio internacional para o cumprimento extraterritorial de medidas processuais do Poder Judiciário de outro Estado. Tradicionalmente também incluir-se-ia nessa matéria o problema da competência internacional. Além disso, hoje há novas possibilidades de uma atuação administrativa do Estado nessa matéria, em modalidades de contato direto entre os entes estatais.

Rodrigo Otávio já se referia à cooperação entre os Estados como algo baseado em mais do que o sentimento de cortesia internacional, também conhecida como comitas gentium [09]. Segundo ele, cortesia, convivência, condescendência eram sentimentos arbitrários, que o Estado pode fazer hoje e não mais amanhã. No seu entender, havia uma obrigação entre as nações, [10] e não mera faculdade. Esta era resultante de uma obrigação moral, mas cujo descumprimento impunha ao Estado uma perda de prestígio no convívio internacional de todo indesejável. Traduzia-se em uma limitação à soberania do Estado, pelo próprio Estado, com o fito de respeitar o direito internacional e melhorar o relacionamento no plano da comunidade internacional.

Carolina Yumi de Souza [11] refere-se a cooperação jurídica internacional como:

"[...] pode ser considerada como um intercâmbio entre estados soberanos, destinando-se à segurança e à estabilidade das relações transnacionais. Tem por premissas fundamentais o respeito à soberania dos Estados e a não-impunidade dos delitos. Em sentido lato, engloba todos os atos públicos (legislativos, administrativos e judiciais). [...] compreende os atos judiciais não decisórios, de mera comunicação processual (citação, notificação e intimação) e decisórios, além daqueles destinados à instrução probatória."

A cooperação jurídica internacional pode ser classificada nas modalidades ativa e passiva, de acordo com a posição de cada um dos Estados cooperantes. A cooperação será ativa quando um Estado (requerente) formular a outro (requerido) um pedido de assistência jurídica; a cooperação, por outro lado, será passiva quando um Estado (requerido) receber do outro (requerente) um pedido de cooperação.

A cooperação jurídica internacional também pode ser classificada em direta e indireta. Esta, para ser efetivada, depende de juízo de delibação, como é o caso da homologação de sentença estrangeira e das cartas rogatórias. A cooperação direta é aquela em que o juiz de primeiro grau tem pleno juízo de conhecimento. Trata-se da assistência direta.

Ainda no tocante à classificação, a cooperação jurídica internacional pode ocorrer em matéria penal ou em matéria civil, a depender da natureza do processo ou do procedimento em trâmite no Estado requerente.

É necessário, ainda, distinguir a cooperação jurídica e a jurisdicional. Esta ocorreria quando um ato de natureza jurisdicional é reclamado do Estado cooperante, ao passo que naquela a cooperação demandada não envolveria necessariamente a intervenção do Poder Judiciário, requerendo somente atividade administrativa.

O conceito de que um Estado tem o direito e o dever de zelar pela justiça em sua jurisdição está diretamente relacionado com o próprio conceito de Estado e de soberania. Tradicionalmente, a cooperação jurídica é vista como o resguardo de interesses entre Estados: por um lado, o interesse de um Estado em solicitar auxílio ou cooperação e, por outro, a soberania do Estado requerido na hora de responder à solicitação de auxílio [12].

Com efeito, pode-se afirmar que a cooperação jurídica entre Estados não é um fenômeno moderno. Segundo Kimberly Prost [13], registros apontam que, por volta do ano 1280 a.C., Ramsés II teria celebrado um dos primeiros instrumentos de cooperação jurídica internacional conhecidos quando previu a possibilidade de retorno extradicional de criminosos em tratado de paz firmado com o povo hitita.

Hoje em dia, no entanto, já não se pode vincular os conceitos tradicionais de soberania à cooperação jurídica internacional. A cooperação jurídica entre Estados pode ser vista, de certa forma, como um meio de preservar a própria soberania.

Não existe uma definição absoluta de soberania. No entanto, no âmbito da cooperação jurídica internacional, a soberania pode ser vista como "o poder do Estado em relação às pessoas e coisas dentro de seu território" [14]. Dessa forma, cabe ao Estado soberano proteger-se de ingerências externas e, ao mesmo tempo, garantir o seguimento e a execução das regras estabelecidas em seu território.

Sob tal prisma, cada Estado tem seu próprio serviço jurisdicional e é capaz de julgar e fazer executar o julgado somente dentro de seu território. Quando certos atos processuais devam ser desenvolvidos no território de outro Estado, faz-se necessária a cooperação jurídica. Nesse contexto, a negativa à cooperação pode causar uma frustração do interesse legítimo das partes [15], limitando o direito e o dever do Estado requerente de resguardar o andamento da Justiça em seu território.

Induvidosa, pois, a necessidade da cooperação jurídica internacional considerando que as mudanças tecnológicas e políticas e o aumento no deslocamento de pessoas e bens entre fronteiras têm causado maior interesse por parte dos Estados no estabelecimento de regras e procedimentos específicos que possibilitem e facilitem o acesso à justiça para além das fronteiras.

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Portanto, a imprescindibilidade da cooperação internacional nos termos atuais é indiscutível, fazendo com que essa prática "deixe de ser um mero compromisso moral (comitas gentium), tornando-se obrigação jurídica [16].

O respeito à obrigação de promover a cooperação jurídica internacional é imposto pela própria comunidade internacional [17]. Qualquer resistência ou desconfiança com relação ao cumprimento de atos provenientes do estrangeiro deve ceder lugar ao princípio da boa-fé, que rege as relações internacionais de países soberanos tanto nos casos cíveis quanto nos penais. Afinal, o mundo está cada dia menor e mais próximo.

Pode-se asseverar que o objetivo da cooperação jurídica internacional é atender às reivindicações externas, garantindo a eficácia da prestação jurisdicional e o acesso à justiça, fortalecendo, por conseguinte, o estado democrático de Direito.

Com o objetivo de acompanhar este brusco aumento de questões jurídicas transnacionais, constatamos o avanço da cooperação jurídica internacional, estreitando as relações entre os países, através da intensificação da assinatura de tratados, convenções e protocolos, nos quais se celebra a reciprocidade, o auxílio mútuo.

Nota-se, e daí a importância desta abordagem, que o espírito de solidariedade internacional se faz cada vez mais necessário, emergindo com a modernidade, mostrando-se como tendência irremediável, e, concomitantemente, exigindo eficácia na assistência, respeito à soberania do país envolvido no processo de cooperação e garantia aos indivíduos, sem olvidar-se, obviamente, da salvaguarda intransponível dos direitos humanos [18].

A dificuldade de conciliar tais exigências é o que engrandece, por demais, o estudo do tema, configurando um desafio teórico e pragmático sem precedentes.


III.COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Como cediço, cabia ao Supremo Tribunal Federal (STF), como guardião da Constituição da República, desde a promulgação da Constituição de 1934, analisar as cartas rogatórias oriundas de Estados estrangeiros e, após a verificação de seus pressupostos, mormente a existência de atos atentatórios à ordem pública pátria, autorizar ou não o seu seguimento.

Antes disso, contudo, desde a época do Império há menções sobre cartas rogatórias em nossa legislação, como por exemplo, no Aviso Circular n. 01, datado de 1847, que permitia o recebimento da carta por via diplomática ou consular, mediante apresentação do interessado ou por remessa direta do juiz rogante ao magistrado rogado. A Lei n. 221, de 1894, por sua vez, apresenta-se como marco histórico na legislação brasileira, por instituir a figura do "exequatur" do poder público interno, através de um procedimento prévio de admissibilidade que cabia à época, ao Executivo.

O Brasil durante os últimos 80 (oitenta) anos optou por conferir ao Supremo Tribunal Federal a função, basicamente administrativa, de analisar estes pedidos formais de cooperação judicial internacional como forma de, dentre outros motivos não menos importantes, exercer sua função de zelar pelo respeito à ordem pública nacional, esculpida especialmente em nossa Constituição através dos direitos e garantias fundamentais e dos princípios gerais de direito.

A competência do Supremo Tribunal Federal para homologar as sentenças estrangeiras que não se revelem ofensivas à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes, também está presente em nosso ordenamento jurídico desde a Constituição de 1934, não obstante o Decreto n. 3.094, de 1898, já ter previsto a necessidade de homologação de sentenças estrangeiras para sua execução no Brasil.

Este ato formal de recepção, pelo direito positivo brasileiro, de decisão emanada de Estado estrangeiro, se apóia, dentro do sistema de controle limitado instituído pelo ordenamento jurídico nacional, em juízo meramente delibatório, que se traduz na verificação dos requisitos enumerados pela legislação ordinária (artigo 15 da Lei de Introdução ao Código Civil e artigo 483 do Código de Processo Civil) e pelo próprio regimento interno do Egrégio Supremo Tribunal.

Durante os sessenta anos em que cuidou da matéria, o STF desenvolveu larga jurisprudência sobre o cumprimento de cartas rogatórias. Os requisitos e o procedimento para sua tramitação eram os do Regimento Interno do STF (RISTF). Vários pontos controvertidos, como a questão das cartas rogatórias de caráter executório e a exceção de ordem pública, foram resolvidos ao longo dos anos.

O RISTF foi substituído, no STJ, pela Resolução n. 9. Essa resolução consolidou as regras e as práticas do STF, estabelecendo as regras da tramitação e seus prazos. Manteve a concessão do exequatur em cartas rogatórias como decisão monocrática do Presidente do Tribunal, bem como os requisitos anteriormente definidos no RISTF.

Na esteira da jurisprudência firmada pelo STF, várias posições foram questionadas pela doutrina. Assim, questão importante a ser discutida é a relativa ao posicionamento do Brasil quanto à dicotomia dualismo x monismo.

Apesar da doutrina majoritária no país adotar a teoria monista [19], o STF se pronunciou no acórdão tratado acima e na ADIn n. 1.480-DF [20], no sentido de que o Brasil adota na verdade a teoria dualista moderada.

A doutrina considera a posição do Brasil como monista por admitir o conflito entre norma de direito interno e norma de direito internacional, colocando-as em um mesmo plano. Seria, porém, de forma moderada porque há a equiparação do tratado internacional à lei ordinária pela jurisprudência do STF.

Já o STF manifestou estranho entendimento, de que o Brasil adota um posicionamento dualista moderado.

Neste sentido, veja-se o seguinte julgado:

CR 8279 AgR/AT-Argentina

AgRg na CR

Relator(a): Min. Celso de Mello

Julgamento: 17/06/4998 Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Publicação: DJ Data-10-08-00 PP-00006 Ement Vol-01999-01 PP-00042

Mercosul - Carta rogatória passiva - Denegação de exequatur - Protocolo de medidas cautelares (Ouro Preto/MG) - Inaplicabilidade, por razões de ordem circunstancial - Ato internacional cujo ciclo de incorporação, ao direito interno do brasil, ainda não se achava concluído à data da decisão denegatória do exequatur, proferida pelo presidente do supremo tribunal federal - relações entre o direito internacional, o direito comunitário e o direito nacional do brasil - Princípios do efeito direto e da aplicabilidade imediata - Ausência de sua previsão no sistema constitucional brasileiro - Inexistência de cláusula geral de recepção plena e automática de atos internacionais, mesmo daqueles fundados em tratados de integração - Recurso de agravo improvido. A recepção dos tratados ou convenções internacionais em geral e dos acordos celebrados no âmbito do Mercosul está sujeita à disciplina fixada na Constituição da República"

Isso se dá porque há, em primeiro lugar, um procedimento especifico de internalização das regras de direito internacional ao ordenamento jurídico brasileiro, sendo que esse procedimento se faz necessário porque as regras estão em planos diversos e separados. Em segundo lugar, pode ocorrer de uma regra estabelecida em um tratado internacional incorporado ao direito brasileiro ser revogada por lei ordinária posterior no ordenamento jurídico interno e, mesmo assim, o Brasil continuar sendo parte desse tratado na seara internacional, respondendo por seus atos perante a comunidade internacional.

A afirmação de Nádia de Araújo e Inês da Matta Andreiuolo [21] sobre esse assunto se faz relevante:

A incorporação dos tratados ao sistema interno brasileiro, equiparando-o à lei interna, transforma-os em uma lei nacional e, por conseguinte, extingue o conflito próprio da teoria monista, pois a regra vigente de revogação de lei anterior pela lei posterior é princípio assente no nosso sistema jurídico e aplicável ao ordenamento como um todo. Com isso também fica claro que os dois sistemas – o interno e o internacional — são separados, pois ocorre, muitas vezes, do Brasil continuar obrigado internacionalmente por dispositivo de tratado (posto que seu "parceiro" não foi comunicado da modificação) enquanto a legislação interna já o modificou. [22]

O enquadramento do posicionamento brasileiro como dualista moderado ou como monista moderado não parece apresentar muita relevância na prática. Contudo, o que se mostra relevante é o posicionamento do STF, pois ele mostra à comunidade internacional qual é o entendimento no Brasil sobre o direito internacional. Além disso, suas decisões refletem diretamente à seara internacional, uma vez que no caso da Carta Rogatória 8279, por exemplo, houve denegação de exequatur e um dos argumentos utilizados foi precisamente a concepção dualista moderada do direito em relação ao direito internacional, adotada pelo Brasil. A validade da norma na ordem internacional não implica em validade da mesma na ordem interna.

Outro entendimento firmado pelo STF e corretamente questionado pela doutrina foi o pronunciamento no agravo regimental em Carta Rogatória 3.166-1/UR. Nesse caso houve uma eleição de foro para solução de controvérsias, sendo que o foro eleito foi o Brasil. A despeito dessa eleição foi instaurado processo no Uruguai e expedida carta rogatória de citação à parte brasileira. O STF deveria apreciar se a carta rogatória continha os requisitos necessários para a concessão do exequatur. Mais do que isso o STF entendeu que a cláusula que elegia o Brasil como foro competente era válida e assim, não deveria a parte ser citada por rogatória, pois a ação deveria ser aqui proposta.

O entendimento contrariou a tendência até então seguida pelo STF, pois impediu que a ação proposta no exterior tivesse seu curso normal com a citação por meio de rogatória do réu domiciliado no Brasil, acabando por impossibilitar que o réu se submetesse expressa ou tacitamente ao juízo estrangeiro, ultrapassando os limites do exequatur e adentrando no mérito da questão.

O relator rejeitou a interpretação de que as normas contidas no art. 12 da LICC e incisos I e II do art. 88, do CPC, tratam da competência internacional relativa, que pode ser derrogada pela vontade das partes de modo expresso ou tácito. Invocou-se o respeito à soberania nacional e ordem pública em caso versando sobre competência relativa, no qual as partes têm liberdade para deliberar de acordo com seus interesses.

Diz a ementa do acórdão:

1. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, art. 12. Código de Processo Civil, art. 88, I e II. É competente a Justiça brasileira para conhecer de ação judicial em que o réu se acha domiciliado no Brasil ou aqui houver de cumprir a obrigação. Caso em que o demandante tem domicílio no Uruguai e o réu é brasileiro domiciliado no Brasil, onde se deverá cumprir a obrigação questionada na demanda proposta no Uruguai. 2. Eleição de foro. Se as partes, uma domiciliada no Uruguai, outra domiciliada no Brasil, contratam que suas divergências pertinentes ao contrato a que se vincularam seriam solvidas no foro da comarca de São Paulo, Brasil, esse é o foro competente, e não o do Uruguai. 3. Carta rogatória de citação do contratante brasileiro para

responder, no Uruguai, à demanda que lhe foi acolá proposta pelo contratante uruguaio. 4. Exequatur inicialmente concedido e posteriormente revogado. 5. Agravo regimental a que o STF nega provimento.

Em trecho da decisão argumenta-se:

(...) se o contrato a que se reporta a Agravante continha a cláusula de eleição de foro, deve concluir-se que o foro eleito é o competente para discutir e julgar, a demanda que a ela propôs a outra parte. O princípio que domina o assunto é de que a autonomia dos contratantes é extensível à matéria de competência jurisdicional, notadamente no caso em que se tenha de solver competência pertinente à execução de alterar ou derrogar a jurisdição, exceto, é óbvio, no tocante ao assunto envolvido pela ordem pública, pois neste ponto não se admite prevaleça o princípio da autonomia da vontade, visto que as regras de ordem pública não podem ser descumpridas mediante escolha de foro. [23]

Referida decisão do STF além de contradizer todo o seu entendimento sobre autonomia da vontade nos contratos internacionais faz uma análise da carta rogatória extrapolando todos os seus limites fixados em lei, adentrando em matéria que deveria ser discutida e alegada pelo réu brasileiro e não pelo tribunal.

No âmbito do Mercosul, o sistema avançou, mas ainda é marcado pela utilização do sistema clássico de exequatur, cuja admissibilidade se dava no STF e passou ao STJ.

A tramitação de sentenças estrangeiras no Mercosul possui regras próprias, sendo um pouco mais simplificada, pois podem ser encaminhadas via carta rogatória. Tal posição foi adotada no AgRg na Carta Rogatória 7.613, proveniente da Argentina, em que o STF aplicou o Protocolo de Lãs Leñas, revertendo sua posição anterior quanto à denegação de exequatur de cartas rogatórias requerendo medidas de caráter executório. Note-se, entretanto, que assim o fez porque considerou que a homologação daquela carta rogatória equivalia à homologação de uma verdadeira sentença estrangeira, agora diretamente enviada ao STF, por força do disposto no art. 1961 do Protocolo, que prevê a possibilidade do trâmite de pedidos homologatórios por via rogatória. [24]

Referido entendimento fora assim ementado:

CR 7613 AgRg/AT-Argentina

AG.REG.NA Carta Rogatória

Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence

Julgamento: 03.04.1997 Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Publicação: DJ DATA 09.05.97 PP-18154 EMENT VOL-01868-02 PP-00223

"Sentença estrangeira: Protocolo de Las Leñas: homologação mediante carta rogatória. O Protocolo de Las Leñas ("Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista, Administrativa" entre os países do Mercosul) não afetou a exigência de que qualquer sentença estrangeira - à qual é de equiparar-se a decisão interlocutória concessiva de medida cautelar – para tornar-se exeqüível no Brasil, há de ser previamente submetida à homologação do Supremo Tribunal Federal, o que obsta à admissão de seu reconhecimento incidente, no foro brasileiro, pelo juízo a que se requeira a execução; inovou, entretanto, a convenção internacional referida, ao prescrever, no art. 19, que a homologação (dito reconhecimento) de sentença provinda dos Estados partes se faça mediante rogatória, o que importa admitir a iniciativa da autoridade judiciária competente do foro de origem e que o exequatur se defira independentemente da citação do requerido, sem prejuízo da posterior manifestação do requerido, por meio de agravo à decisão concessiva ou de embargos ao seu cumprimento".

Nesta senda, o STF se pronunciou no sentido de ser imprescindível a homologação formal das sentenças estrangeiras, mesmo que ela esteja seguindo os trâmites contidos no Protocolo de Las Leñas.

Pode-se dizer, assim, que existem dois tipos de homologação: um para os países do Mercosul, cujas autoridades judiciais podem remeter a sentença pelo mecanismo do Protocolo, para obtenção do exequatur na própria carta rogatória; e outro, tradicional, para os demais países.

Outra hipótese delicada que, como visto, suscitou negativas de homologação de sentença estrangeira é o das citações internacionais por via postal, comuns no sistema da common law. Em diversos pedidos de homologação de sentenças estrangeiras, negou-lhes deferimento o STF porque a citação para o processo não havia sido feita mediante carta rogatória. E houve casos em que a citação se perfizera pelo correio, outras por affidavit (citação efetuada em caráter privado, por um procurador da parte interessada, que afirma esse fato, sob juramento, perante um oficial consular do país de origem) ou mesmo através de funcionário consular do país requerente. [25]

A Reforma do Processo Civil transformou a citação pelo correio de exceção em regra (Lei n. 8.710, de 24.09.1993), [26] dispensando, quando o autor não a exigir, a citação pessoal por Oficial de Justiça. No entanto, após a entrada em vigor da citada lei, o STF continuou na mesma linha de entendimento com relação às cartas rogatórias, não havendo motivo para pensar que possa prescindir da citação por carta rogatória. Uma vez concedido o exequatur, nada impede, porém, que o juiz federal que for dar cumprimento à carta rogatória determine que se proceda à citação por via postal.

Veja-se que o CPC dispõe, no caput do art. 222, com a nova redação, que "a citação será feita pelo correio, para qualquer comarca do País..." (grifo nosso). Assim, não se podendo citar pelo correio réu domiciliado no exterior, para responder a uma ação proposta no Brasil, parece ao menos lógico não se poder admitir, por uma questão de isonomia, que a justiça estrangeira possa citar pelo correio réu domiciliado no Brasil.

O que se poderia questionar, em tese, é se a efetivação de um ato citatório no território nacional por meio outro que não a rogatória ensejaria invalidade do ato em razão das garantias processuais de nosso sistema jurídico, única hipótese que justifica invocar a ordem pública e a soberania nacional para denegar o cumprimento da medida. O STF fez uma análise caso a caso, porque a garantia da citação por rogatória é para assegurar a ciência do réu aqui domiciliado. Se este compareceu espontaneamente ao processo no exterior e lá procedeu à sua defesa, a homologação não deverá ser indeferida apenas por vício de citação, que terá sido sanado.

Firmou entendimento ainda o STF, de que as sentenças estrangeiras não fundamentadas não são passíveis de homologação no Brasil, por contrariar o Princípio Constitucional da Fundamentação das Decisões Judiciais, princípio jurídico esse inserto no artigo 93, inciso DC, da Lex Legum vigente. [27]

A tradição do STF continua definindo todas as questões relativas às cartas rogatórias. A denegação de pedido de exequatur pelo STF era de dois tipos: de caráter formal e de caráter material. No primeiro, por falta de algum requisito essencial sobre a autenticidade — v.g., ausência de chancela consular, de tradução etc. No segundo, se a Carta Rogatória não fosse contrária à ordem pública, à soberania nacional e aos bons costumes. De 2005 a 2010, o STJ deu exequatur em inúmeras cartas rogatórias e mostrou que pode dar celeridade ao tema, em consonância com a jurisprudência construída pelo STF.

A jurisprudência sobre a ocorrência de violação à ordem pública e à soberania nacional, em tema de cartas rogatórias, gira em torno de poucas hipóteses. A da soberania nacional só foi utilizada uma vez, para um pedido de oitiva de testemunha, em audiência que seria realizada na Embaixada da Argentina, por magistrado daquele país. O STF entendeu que a soberania nacional seria ferida, porque o depoimento só poderia ser prestado perante a Justiça Federal. [28] Nas inúmeras cartas rogatórias pesquisadas no STJ, este argumento não se repetiu.

Ocorre que a Reforma do Judiciário, culpada por emendar pela 45ª vez nossa Constituição da República, transferiu tais competências ao Superior Tribunal de Justiça, ao argumento fundamental de permitir que a Corte Suprema brasileira se liberasse de interesses menores, esquivando-se de milhares de cartas rogatórias e processos de homologação de sentenças estrangeiras com o intuito de julgar apenas as grandes causas que afetam, de forma mais detectável, a nação.

A argumentação de contrariedade à ordem pública aparece muito nas impugnações dos que são intimados, pois muitos entendem que seria incompetente a justiça estrangeira, quando o réu fosse domiciliado no país. O STF, e agora o STJ têm reiteradamente indeferido esses pedidos, quando se trata de competência concorrente, descrita na legislação no art. 88 do CPC. [29]

No que diz respeito às questões formais, verifica-se que o STJ, na esteira do que decidia o STF, é bastante cuidadoso com a verificação de todos os elementos necessários para a concessão do exequatur. É comum algumas cartas rogatórias serem indeferidas, sem prejuízo de nova remessa, por falta de documentos ou elementos formais.

Neste sentido, em recente decisão o STJ manteve precedente outrora firmado pelo STF, no sentido de que "para homologação de sentença estrangeira de divórcio proferida em processo que tramitou contra pessoa residente no Brasil, indispensável que a citação tenha sido regular, assim considerada a que fora efetivada mediante carta rogatória" (SEC 4.611/FR, CE, Min. João Otávio de Noronha, DJe de 22/04/2010). [30]

De outra banda, alguns equívocos cometidos pelo STF não voltaram a ser empregados pelo STJ.

Sob tal prisma, a discussão acerca do comparecimento espontâneo do interessado e da necessidade de citação pessoal, encontra-se, por ora, superada. Veja-se:

AgRg na CR 2842 / FR

Agravo Regimental na Carta Rogatória 2007/0236389-0

Relator(a) Ministro CESAR ASFOR ROCHA - Corte Especial

DJe 05/08/2010

Ementa. AGRAVO REGIMENTAL. CARTA ROGATÓRIA. COMPARECIMENTO ESPONTÂNEO DA INTERESSADA. APLICAÇÃO AO CASO DO ART. 214, § 1°, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CITAÇÃO. REMESSA DOS AUTOS À JUSTIÇA FEDERAL. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE. – Nos termos do art. 214, § 1º, do Código de Processo Civil, o comparecimento espontâneo do réu supre a falta de citação. Desnecessária, assim, a remessa dos autos à Justiça Federal para cumprimento do exequatur. – Ausente qualquer prejuízo à interessada, que, de forma induvidosa, tomou conhecimento do pedido de citação formulado na carta rogatória, a ponto de impugná-la. Agravo regimental improvido. [31]

Nota-se, também, a utilização cada vez maior das convenções internacionais, sejam de caráter multilateral ou bilateral, como fundamento à concessão ou negativa da ordem. Na CR 44, STJ, [32] proveniente de Portugal, país com o qual existe um tratado específico de cooperação penal, o pedido foi prontamente atendido. Já na CR 998, STJ, o pedido, também de caráter penal, foi formulado de acordo com o tratado bilateral com a Itália e o exequatur concedido. [33]

Outro inquestionável avanço consolidado pela atual jurisprudência do STJ se refere à aplicabilidade do procedimento de auxílio direto ou assistência direta como ferramenta constitucional de cooperação jurídica internacional. Estudaremos tal perspectiva em capítulo próprio.

Com a transferência de competência para o STJ, pouco se modificou a sistemática anterior, ou seja, um único tribunal, e no caso um que se encontra no chamado terceiro nível hierárquico, continua a deter toda a competência para cuidar da matéria. Apesar de algumas evoluções ao longo destes mais de 06 anos, mostra que a prática do STF continua a servir de base para o STJ.

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Sobre o autor
Márcio Mateus Barbosa Júnior

Mestre em Direito Internacional Econômico e Tributário pela Universidade Católica de Brasília (UCB) com ênfase em Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Civil, Especialista em Direito Empresarial e Contratos pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e Bacharel em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Atualmente é advogado, sócio fundador do escritório Barbosa, Lobo & Meireles Advogados (BL&M, Advogados, Brasil) e professor universitário na cadeira de Direito Processual Civil. Tem experiência e atua nas áreas do Direito Civil, Societário e Empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA JÚNIOR, Márcio Mateus. A cooperação jurídica internacional na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3014, 2 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20109. Acesso em: 22 dez. 2024.

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