6- A monetarização do amor e da moral
Desenvolve-se no Brasil, como diz Décio Antônio ERPEN (1998), um instituto quasimodesco que instabiliza a aplicação do Direito nos tribunais: a indústria do dano moral.
Sem uma definição científica do que seja, realmente, o dano moral, sem uma norma estabelecendo as áreas de abrangência e, sem parâmetros legais para a sua quantificação, permite-se o perigoso e imprevisível subjetivismo do pleito, colocando o juiz numa posição pouco confortável. Ele que deve ser o executivo da norma, passa a personalizá-la, criando novos atos ilícitos e indiretamente impondo padrões morais aos indivíduos e à sociedade.
A prevalecer o instituto sem critérios legais definidos, corre-se o risco de gerar insegurança jurídica e uma sociedade intolerante, na qual se promoverá o ódio, a rivalidade, a busca de vantagens sobre outrem ou até a exaltação do narcisismo. A promissora indústria do dano moral levará a esse triste quadro.
Não é exagero vislumbrar no futuro, indenizações fundamentadas em casos em que um indivíduo pede indenização porque alguém o olhou "feio" na rua e se dirá abalado, ou ainda porque, em determinado dia, seu chefe deixou de cumprimentá-lo no início do expediente (CONSUL, 2002).
O amor deve ser a mais estimada de todas as coisas existentes. E assim como os outros valores, é uma coisa, mas não algo concreto, palpável. Por sua própria natureza é inexaurível, jamais se esgota, sempre podemos amar mais e melhor (ALMEIDA, 2011). Por esse caráter sublime e excelso, o amor não pode ser dimensionado ou quantificado em valores monetários.
No caso de abandono afetivo parental parece claro que não se pode recompensar amor, carinho e afeto com dinheiro, pois são sentimentos que devem surgir normalmente e espontaneamente entre os pais e os filhos. Como decidiu o TJSC [13], "os sentimentos compreendem a esfera mais íntima do ser humano e, para existirem, dependem de uma série de circunstâncias subjetivas. Portanto, o filho não pode obrigar o pai a nutrir amor e carinho por ele, e por este mesmo motivo, não há fundamento para reparação pecuniária por abandono afetivo".
7- Conclusão
Por que não é possível reconhecer o abandono afetivo como passível de indenização? Porque o Estado, através de qualquer de suas formas de expressão de poder (executiva, legislativa ou judicial), não pode e nem está autorizado (pelo pacto social), direta ou indiretamente (no caso da indenização), a obrigar o indivíduo a adotar determinado padrão moral. Não é função do Estado determinar que as pessoas amem ou odeiem, que sejam religiosas ou irreligiosas, crentes ou descrentes. A moral evolui por um lento processo de baixo para cima, num ritmo próprio e espontâneo.
A ideia subjacente a essa conclusão preliminar promana de um princípio básico que perpassa a teoria do Estado: de que o poder estatal de intervenção e a autonomia da esfera privada humana devem ser levados a um equilíbrio, apto a garantir ao indivíduo tanta proteção do Estado quanto seja necessária, bem como tanta liberdade individual quanto seja possível.
Por outro lado, o dano moral afetivo não é um ato ilícito indenizável, mas caducificante, ou seja, que gera a perda de direitos ou pretensões. O pai que abandona moralmente seu filho perde o poder familiar (ECA, art. 24; CC, art. 1.638, II), antes garantido, sem ter o dever de indenizar o abandonado. Além disso, é obrigado a prestar alimentos.
Ainda não há no ordenamento jurídico brasileiro obrigação legal de amar ou de dedicar amor [14] (e, se tivesse, sua constitucionalidade seria contestável). A ausência do sentimento de amor e carinho não caracteriza ato ilícito que enseje reparação pecuniária. Escapa, portanto, ao arbítrio do Estado(-juiz) obrigar um indivíduo a amar ou a manter um relacionamento afetivo, mesmo que indiretamente, ao condenar alguém a indenizar outrem por não adotar determinada postura moral. Além disso, se houvesse tal possibilidade, a decisão judicial não atenderia à finalidade de afeto parental, pois constituiria mais um obstáculo na renovação dos laços familiares [15].
O abandono afetivo parental restringe-se à esfera da moral e não gera, portanto, sanções de ordem pública, aplicadas por autoridades legalmente constituídas. Os valores morais encontram-se dentro da consciência de cada indivíduo, cabendo a este julgar o que considera certo ou errado, tolerável ou intolerável. E as sanções no campo moral (arrependimento, vergonha, censura pessoal ou social), como se sabe, também não possuem a força coerciva do Direito [16]. Não se admite, na esfera moral, imposições externas, direta ou indiretamente.
Bibliografia:
ALMEIDA, Guilherme Assis de. O valor do amor. Disponível em: <http:// www.mundodosfilosofos.com.br/ guilherme23.htm>. Acesso em: 24 abr. 2011.
AZAMBUJA, Darcy. Decadência e grandeza da democracia. Porto Alegre:Globo, 2ª. ed., 1945.
BOBBIO, Norberto. Direito e poder. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo:UNESP, 2008.
CONSUL, Ana Cristina Gularte. "A Indústria do Dano Moral - Banalização". Informativo. a. 14, n. 136, dez. 2002. Disponível em: http://www.obinoadvogados.com.br/info1202.htm. Acesso em: 23 de abril de 2011.
COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Tradução de Gilda Maciel Correa Meyer Russomano. Rio de Janeiro:Forense, 2001.
ERPEN, Décio Antônio. "A Indústria do Dano Moral". Jornal Zero Hora, 10.10.1998.
LÉVY-BRUHL, Henri. Sociologie du Droit. Paris:Presses Universitaires de France, 1964.
MANNHEIM, Karl. Libertad, poder y planificación democrática. Tradução de Manuel Durán Gili. México:Fondo de Cultura Económica, 1960.
MERRIAM, Charles E. Que é democracia? Tradução de Moacyr N. Vasconcelos. São Paulo:Assunção Limitada, s/d.
ORTIGÃO, Ramalho. As farpas, tomo 2 (As epístolas). Lisboa:David Corazzi Editor, 1887.
ORTIGÃO, Ramalho. As farpas, tomo 6 (A sociedade). Lisboa:David Corazzi Editor, 1888.
PADOVER, Saul K.Forjadores de una nación. Tradução de Alfredo G. Glade. Buenos Aires:Victor Leru, 1962.
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2ª. ed., 2009.
RUSSELL, Bertrand. O Poder - uma nova análise social. Tradução de Brenno Silveira.São Paulo:Companhia Editora Nacional, 1957.
RUSSELL, Bertrand. Ideiais políticos. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2001.
SCHMITT, Carl. O conceito de político/Teoria do Partisan. Tradução de Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte:Del Rey, 2009.
SICHES, Recásens Luís. Wiese. México:Fondo de cultura económica, 1943.
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. São Paulo:Malheiros, 1ª. ed., 3ª. tir., 2003.
SOUZA, Daniel Coelho de. Interpretação e democracia. São Paulo:RT, 2ª. ed., 1979.
VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica. Tradução de Susana Elena Dalle Mura. São Paulo:RT, 2ª. ed., 2010.
WALZER, Michael. Esferas da justiça. Uma defesa do pluralismo e da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo:Martins Fontes, 2003.
YANNUZZI, Maria de los Ángeles. Democracia y sociedad de masas. La transformación del pensamiento político moderno. Rosário(Argentina):Homo Sapiens Ediciones, 1ª. ed., 2007.
Notas
- Carl SCHMITT (2009, p. 24) define o Estado total como a identidade entre Estado e sociedade, Estado que não se desinteressa por nenhuma área e que abrange, potencialmente, qualquer área. Para o totalitarismo, o Estado constitui o começo e o fim de toda vida social.
- A palavra moral tem origem no latim morus, significando os usos e costumes.
- Tanto que, no direito penal, a cogitação, a intenção, o simples pensamento de praticar um crime é impunível - cogitationis poenam nemo patitur (Lévy-Bruhl, 1964, p. 36). Mentalmente, todo delito pode ser idealizado e o Direito Penal (é dizer, o Estado) não se interessa por isso.
- O Estado pode, por exemplo, fixar sanções premiais para estimular o indivíduo a ser genoroso ou altruísta, mas sempre dentro de um modelo aceito socialmente (pela moralidade positiva). Pode, por exemplo, oferecer incentivos fiscais para quem contribuir com a cultura, com a causa menorista etc. A função do Direito não é mais só protetora-repressiva, mas também, e sempre com maior frequência, promocional. É a passagem do Direito como forma de controle social para a concepção do Direito como forma de controle e de direção social (Bobbio, 2008, p. 119).
- TJMG, Apelação Cível n° 1.0499.07.006379-1/002, Rel. Des. Luciano Pinto, j. 27/11/2008, publ. 09.01.2009 (http://www.tjmg.jus.br/juridico...).
- A moral e o direito estão tão próximos um do outro, que não podem deixar de admitir uma zona intermediária (Lévy-Bruhl, 1964, p. 38), como as obrigações incompletas ou naturais. TJSP, Apel. Cív. 467.531-4/4.
- TJRS - 7ª Câm. Cível; ACi nº 70021592407-São Leopoldo-RS; Rel. Des. Ricardo Raupp Ruschel; j. 14/5/2008. TJRJ, Apel. Cív. 2007.001.45918 - Julg. em 22-11-2007.
- "A compensação por danos morais em razão de abandono afetivo é possível, em que pese exista considerável resistência da jurisprudência pátria, mas é hipótese excepcional" (TJDF, Apel. Cível 780843120098070001-DF, Relator J.J. COSTA CARVALHO, Julgamento: 13/04/2011, Órgão Julgador: 2ª Turma Cível, Publicação: 27/04/2011, DJ-e Pág. 75).
- STJ, REsp 757.411-MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005, DJ 27/3/2006. No mesmo sentido: STJ, REsp 514.350-SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 28/4/2009, in: Informativo 392, STJ.
- WEB, http://www.ibdfam.org.br/_img/artigos/PLS%20700_2007%20voto%20relator.pdf. Acesso em: 26.05.2011.
- Terceira Câmara de Direito Civil, Apelação Cível: AC 292381 SC 2010.029238-1, Rel. Marcus Tulio Sartorato, j. 30/06/2010, in: http://www.jusbrasil.com.br.
- "A omissão do pai quanto à assistência afetiva pretendida pelo filho não se reveste de ato ilícito por absoluta falta de previsão legal, porquanto ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor" (TJMG, Rel. Nilo Lacerda, j. 29/10/2009, publ. 09/12/2009).
- "A reparação pecuniária além de não acalentar o sofrimento do filho ou suprir a falta de amor paterno poderá provocar um abismo entre pai e filho, na medida que o genitor, após a determinação judicial de reparar o filho por não lhe ter prestado auxílio afetivo, talvez não mais encontre ambiente para reconstruir o relacionamento" (TJ - SC - Ap. Civ. 2008.057288-0 - Julg. em 8-1-2009).
- A norma moral tem estrutura semelhante à norma jurídica, dado A deve ser B; e se não o for deve ser C (coerção). Este novo elemento C (coerção), já não é próprio da norma moral, que tem sanções, mas não tem formas materiais de realização coativa (Couture, 2001, p. 155).