VI – PRINCÍPIO DO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM.
Antes de entrar, necessariamente, no estudo deste princípio é de bom alvitre tecer alguns comentários sobre o princípio da boa-fé objetiva que, outrossim, deve ser aplicado ao direito de família. Veja-se: A boa-fé objetiva impõe um padrão de conduta de modo que um ser humano deve agir com retidão, honestidade e lealdade nos padrões do homem médio.
Os pais que entregam ao relento seus próprios filhos agem com retidão, e como um homem mediano agiria? Não, pois há uma quebra de duas funções inerentes à boa-fé objetiva, são elas:
a - Função Criadora de Deveres Anexos: É o dever que os pais têm de agir com cuidado e com transparência em relação aos filhos.
b – Função Integrativa: Os pais abusam do direito que possuem no que tange à prole, vilipendiando a confiança e, como conseqüência, privando os filhos da sua companhia.
De plano, a boa-fé objetiva é aplicável nas relações contratuais, porém como o Código Civil, reformado em 2002, está preocupado com o ser e o fundamento jurídico da função social é a dignidade da pessoa humana, não vejo óbice à sua aplicação nas relações parentais.
Assim, como conseqüência deve ser utilizado o princípio da proibição do comportamento contraditório, em razão da quebra de confiança, nas relações de família. Explico: O pai ou a mãe geram uma expectativa nos filhos que vão cuidar, educar e conviver com eles, porém, sem respeitar o critério do homem médio, abandonam o infante, acarretando uma mudança de comportamento, diante da contradição.
Dessar’t, a indenização, igualmente, é viável em consonância com o art. 186 do CCB.
VII – CONTROVÉRSIA JURISPRUDENCIAL E A DOUTRINA.
O Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 514.350-SP [14], não aceitou à reparação civil de danos por abandono paternal, suscitando que o judiciário não pode obrigar alguém a amar ou a manter um relacionamento afetivo.
Mister se faz transcrever ementa do Acórdão acima mencionado, in verbis:
" RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE.
1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do artigo 159, do Código Civil de 1916, o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária.
2. Recurso Especial conhecido e provido". (4ª Turma, Resp. nº 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, unanimidade, DJU de 29.11.2005).
Os Tribunais de Justiça Brasileiros, em especial, o do Rio Grande do Sul estão abalizando que a omissão afetiva no âmbito do direito familiar é, sabidamente, de interpretação restritiva e não se configura pelo simples fato de os pais não terem reconhecido, de pronto, o filho, como também não há dano o mero distanciamento afetivo entre pais e filho, por circunstâncias de fato da vida. É preciso a análise do caso concreto e o preenchimento do determinado no artigo 186 do CCB.
A Professora Maria Celina Bodim de Morais [15], assinala que:
"O que é preciso distinguir é se o pai sabia ou não da existência do filho e se se negou ou não a reconhecê-lo. A responsabilidade, em todos esses casos, é subjetiva, e será preciso demonstrar a negligência do pai. Se este não tinha conhecimento da existência do filho, evidentemente não poderá ser responsabilizado pela falta de convivência; se fazia alguma vaga idéia, mas não se negou a reconhecê-lo, tampouco deverá ser responsabilizado pelo reconhecimento não espontâneo. Outra será a situação quando se prove (e a prova é imprescindível) que tinha conhecimento e se negou ao reconhecimento, quando então caberá a reparação por abandono afetivo." (Grifos Nossos).
O receio de parte da doutrina e jurisprudência acerca das indenizações nas relações parentais de abandono é que o genitor condenado, como represália, jamais tornará a se aproximar do rebento. Será?
O que precisa em situações deste jaez é o magistrado, apoiado por profissionais habilitados, compreender o verdadeiro sentido da ação reparatória e, a priori, buscar a composição entre pai e filho, objetivando auxiliar o resgate ou iniciar a possibilidade de entendimento entre eles.
De mais a mais, em determinados casos, malsinadamente, o restabelecimento do amor e do carinho é, praticamente, impossível, pois já fora desfeito pelo longo tempo transcorrido diante de total ausência de contato e de afeto paterno. De outro lado, o que impera é a própria personalidade e conceitos de vida da figura paterna, daí, a pena indenizatória precisa ser aplicada, em alguns casos, com o escopo de reparar o reversível prejuízo causado ao filho que sofreu pela ausência do pai.
Uma pessoa que nunca foi amada, como pode amar? Alguém que não conhece o poder do abraço, como pode abraçar? Outrem, que não conhece a beleza do sentimento do beijo, como pode beijar? Dessa maneira, o judiciário deve respeitar a liberdade das escolhas, fruto de uma sociedade plural, todavia não poderá compactuar com o abandono irresponsável de pais que se vêem, meramente, como procriadores.
Enfim, a reparação civil resta caracterizada com a conduta ilícita, com culpa, do pai em relação ao filho, o nexo de causalidade e o dano. Esta indenização deve ser a ultima ratio do julgador.
De outra banda, a liberdade parental está subdividida em dois aspectos:
a) Objetivo: são os direitos e deveres dos pais que inobservados, no aspecto material, geram ações de alimentos; e no aspecto extrapatrimonial, a perda do poder familiar (inciso II, art. 1.638, do Código Civil Brasileiro). Entendo que existe o direito indenizatório do filho, desde que haja ofensa aos preceitos constitucionais e infraconstitucionais (proteção, educação, convivência, o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio do ser em desenvolvimento, etc.), atendendo o disposto no artigo 186 da Legislação Substantiva Civil.
b) Subjetivo: a autonomia afetiva dos pais de conceder ou não afeto aos filhos. In casu, não gera nenhuma conseqüência sob pena de ferir o direito à liberdade paterna de escolher os próprios sentimentos.
IX- CONCLUSÃO.
O afeto é impagável, e não pode substituir a grandeza de um abraço e de um beijo entre pai e filho, entretanto, o descumprimento dos deveres paternais, em uma responsabilização subjetiva (art. 186, do CCB), deve ensejar uma ação indenizatória, como forma punitiva e dissuasória.
O sonho de todo filho e do próprio magistrado, em ações de investigação de paternidade é ver, quando de um julgamento procedente, o pai se vendo emocionalmente como pai. Na prática forense, e pela lei natural da vida não é assim que procede, posto que a construção afetiva é baseada no dia-a-dia, na convivência, o que corrobora a tese de que o liame biológico não é suficiente para uma pessoa ser pai na acepção da palavra.
Realmente a matéria é polêmica e instiga o estudo da responsabilidade civil, em especial, no que tange aos danos extrapatrimoniais. Para que uma pessoa tenha vida plena é preciso que haja dignidade, segundo o caput, do Art. 5º, da Constituição Federal, todavia um menor abandonado moralmente pelo pai não possui a oportunidade de ser cuidado, educado e ter a companhia dele, ocasionando a quebra dos princípios da dignidade da pessoa humana, da boa-fé objetiva e do Venire contra factum proprium nas relações familiares.
É justo que um pai omisso tenha como punição, somente, a perda do poder familiar? No meu modo de pensar, não, porquanto seria um prêmio para genitores descompromissados afetivamente com sua prole, eis que estariam "isentos" de qualquer "trabalho educativo e emocional" no crescimento moral da criança. E não venham dizer que a fixação de alimentos seria uma "punição" aos pais omissos, porque não o é, eis que os alimentos estão relacionados à dignidade humana do filho, aos direitos da personalidade e a solidariedade familiar.
É preciso mostrar à sociedade que condutas dessa natureza acarretam não só a ruptura do poder familiar, mas principalmente uma reparação pecuniária para que, ao menos, seja motivo de reflexão por parte de pais irredutíveis em suas condutas, servindo assim de desestímulos a todos aqueles que abdiquem do dever de cuidar dos seus filhos.
Uma coisa é aquele genitor (a) que, por circunstâncias adversas da vida, afasta-se do filho, porém, é pautado de sentimentos de amor e responsabilidade; e outra coisa é a figura paterna e/ou materna que, por intencionalidade, não conseguirão, durante uma vida, demonstrar nenhum sentimento positivo acerca da prole.
Como se vê, só o caso concreto poderá definir se será ou não cabível uma indenização por abandono afetivo parental, e a pecúnia aqui citada não é pelo fato da ausência de amor e sim por descumprimento dos deveres de pai e mãe.
Não se pode negar, em casos onde há a efetiva comprovação de negativa de amparo afetivo, moral e psicológico a um filho há violação, clarividente, dos direitos da personalidade (honra, dignidade, reputação social...) e, portanto, passível de reparação civil (Art. 5º, inciso X, da Constituição Brasileira).
Na dificultosa problemática, a melhor saída é a triagem dessas ações, quando interpostas judicialmente, antes do despacho positivo, por profissionais da área de saúde vinculados ao Poder Judiciário, visando dirimir, em sua base, a premissa principal do problema, qual seja: a reaproximação entre pais e filhos, sendo a lide o último procedimento.
Por fim, sintetizando o que fora, aqui, instigado, cito os dizeres, com uma pertinência ímpar, do Professor Luiz Edson Fachin [16]: "mais que fotos na parede, quadros de sentido, a família há de ser, possibilidades de convivência".
X - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
DIAS, Maria Berenice Dias. Manual de Direito das Famílias. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família:Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008.
JR. Dirley da Cunha. NOVELINO, Marcelo. Constituição Federal. Constituição Federal para Concursos. Volume 1. Salvador: Jus Podivm, 2010.
JR, Marcos Ehrhardt. Direito Civil. LICC e Parte Geral. Volume I. Salvador: Jus Podivm, 2009.
JÚNIOR, Nelson Nery. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
MORAES. Maria Celina Bondin de. Família: do Autoritarismo ao Afeto – Como e a quem indenizar a omissão do afeto? Artigo publicado na Revista Brasileira de Direito de Família, IBDFAM, nº 32, p. 20/39MADALENO, Rolf. Repensando o Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, Ed. 2007.
SANTOS, Brasil. Indenização por abandono afetivo. Adv: seleções jurídicos: São Paulo, 2005.
STJ. Recurso Especial nº 514.350-SP. Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior.
TJ-RS. Apelação Cível nº 70021427695, 8ª Câmara Cível, Rel. Des. Claudir Fidélis Faccenda.
TJ-RS. Apelação Cível nº 70029285277, 7ª Câmara Cível, Rel. José Conrado de Souza Júnior.
TJ-RS. Apelação Cível nº 70022661649, 7ª Câmara Cível, Rel. André Luiz Planella Villarinho.
TJ-RS. Apelação Cível nº 70026680868, 7º Câmara Cível, Rel. Sérgio Fernandes de Vasconcelos.
TJ-RS. Apelação Cível nº 70034280040, 7º Câmara Cível, Rel. José Conrado de Souza Júnior.
VADE MECUM. 12ª ed. São Paulo: Rideel, 2011.
Notas
- BRASIL. Constituição Federal. Salvador. Jus Podivm, 2010.
- BRASILEIRO. Código Civil. 8ª ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2011.
- VADE MECUM. 12ª ed. São Paulo. Rideel. 2011.
- BRASIL SANTOS, Indenização por abandono afetivo. Adv: seleções jurídicos. São Paulo, p. 25-26, 2005.
- Idem 01.
- Idem 03.
- Idem 02.
- JR. Marcos Ehrhardt. Direito Civil. Volume I. Salvador. Jus Podvim, 2009, p. 187.
- Idem 02.
- MADALENO, Rolf. O Dano Moral na Investigação de Paternidade. Revista da Ajuris, nº 71, p. 275.
- STJ, Ac 3ªT., REsp.37.051//SP, rel Min. Nilson Naves, j.17.4.01, in Revista Forense, p. 363:240.
- DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6ª ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2010.
- 4ª T., REsp. 788.459/BA, rel Min. Fernando Gonçalves, j.8.11.05, DJU 13.3.06, p. 334.
- 4ª Turma, Resp. nº 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, unanimidade, DJU de 29.11.2005.
- MORAES. Maria Celina Bondin de. Família: do Autoritarismo ao Afeto – Como e a quem indenizar a omissão do afeto? Artigo publicado na Revista Brasileira de Direito de Família, IBDFAM, nº 32, p. 20/39.
- FACHIN, Luiz Edson, cf, Elementos Críticos de Direito de Família, cit. p. 14.