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História do Direito: o Renascimento do século XII e as repercussões no ressurgimento do Direito Romano

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09/10/2011 às 11:37
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2) O surgimento das cidades e o papel do mercador

Já no fim do feudalismo, a população sofreu um grande aumento em seu número. Consequentemente, os feudos e as relações de vassalagem já não eram mais suficientes para abarcar o grande contingente populacional e esse já não conseguia consumir tudo o que era produzido nas grandes propriedades, as quais foram amplamente cultivadas com o desenvolvimento de técnicas novas de plantação - como a do pousio [14] - e com as inovações tecnológicas – como a charrua e a nova atrelagem dos animais. Aliás, essas novidades não só multiplicaram a colheita como também melhoraram a qualidade dos produtos.

O aumento de mão-de-obra e a superprodução possibilitaram a existência de um excedente agrícola, o qual foi fundamental para o revigoramento do comércio. Durante o período feudal, a atividade mercantil teve ínfima significância devido às próprias estruturas do feudalismo, que estavam alicerçadas na produção de subsistência. A configuração do território também não favorecia o comércio porque, como cada senhor feudal tinha autonomia para tributar da maneira que lhe aprouvesse – poder de ban: julgar, punir e tributar -, o mercador não tinha estabilidade e facilidade para desenvolver sua atividade. Porém, com a centralização do poder real, o mercador se beneficiava: os senhores feudais não possuíam mais o poder de antes e com isso o rei tinha condições de uniformizar a moeda e o sistema de medidas, circunstâncias que possibilitaram o grande "boom" do comércio e o apoio dos mercadores ao fortalecimento das monarquias.

Com o movimento dos mercadores, abrem-se as rotas comerciais, ocasionando também o desenvolvimento de cidades já existentes e o aparecimento de novas. Essas cidades localizavam-se, geralmente, próximas a rios ou estradas, facilitando, assim, o comércio. Todavia, essas cidades precisavam produzir algo que fosse passível de troca para que seus habitantes obtivessem os alimentos vindos do campo. Dessa maneira, uma gama de artesãos foi aparecendo, incrementando ainda mais a atividade mercantil e desenvolvendo o que foi chamado por Jean Gimpel [15] de Revolução Industrial medieval. Essas incipientes indústrias baseavam sua produção especialmente na construção e no ramo têxtil. Tais produções industriais desencadearam a formação de corporações de ofícios, sobre as quais Hilário Franco Júnior versa com clareza:

"Suas origens são controvertidas, mas as razões para o agrupamento são claras: religiosa, daí muitas vezes ter derivado de confrarias, isto é, de associações que desde o século X existiam para cultuar o santo patrono de determinada categoria profissional e para praticar caridade recíproca entre seus membros; econômica, procurando garantir para eles o monopólio de determinada atividade; político-social, com a plebe de artesãos tentando se organizar diante do patriciado mercador que detinha o poder na cidade." [16]

As rotas comerciais medievais tinham dois grandes eixos básicos: o mediterrâneo (dominado pelos italianos) e o nórdico (dominado pelos alemães). Hilário Franco Júnior enfatiza que Gênova e Veneza – pertencentes ao primeiro eixo- tinham poucas possibilidades agrícolas, o que as levou a ser umas das mais prestigiosas cidades comerciais da Europa. O professor da USP também salienta que as feiras medievais, especialmente as de Champagne, exerciam um papel preponderante na vida mercantil medieval.

Dessa forma, o Renascimento do século XII contemplou o surgimento de numerosas cidades que transformaram profundamente a face territorial europeia.


3) Os intelectuais e o nascimento das universidades

Paralelamente à emergência das cidades, aparece na cena medieval uma figura até então pouco destacada: o intelectual. Le Goff ressalta a importância das cidades para esse contexto afirmando que o intelectual nasce juntamente com as cidades [17]. Aliás, somente com as cidades os clérigos perderam a exclusividade de ser considerados intelectuais. Nas cidades, a disponibilidade de livros e escolas e os próprios questionamentos florescidos nas cidades e relação à religião abrem espaço para a intelectualização de uma parte da população leiga. Diz-se uma parte porque é sabido que o ensino era muito dispendioso e, assim, durante a Idade Média, tem como característica o elitismo.

Desde os princípios da Idade Média, era a Igreja que detinha o monopólio do ensino e das letras. É sabido que durante o feudalismo, por exemplo, somente os clérigos sabiam ler e escrever e somente eles tinham acesso aos livros. Entretanto, com o aburguesamento e a urbanização da sociedade esse quadro foi lentamente cambiando. O Terceiro Concílio de Latrão, de 1179, permitia a concessão gratuita da licença docente a todos que tivessem aptidão para exercê-la. Entretanto, é conveniente destacar que apesar de a exclusividade da detenção de saber pelos clérigos ter sido quebrada, a teologia continuava a ser a principal e mais procurada fonte de conhecimento.

Das escolas catedrais e monásticas nasceram as universidades. Le Goff também se refere às corporações como um elemento desencadeador delas: "O século XIII é o século das universidades porque é o século das corporações" [18] Sobre esse início das universidades, C. W. Previté – Orton assevera:

"a criação das universidades constitui o indício mais evidente do anseio da renovação intelectual e literária e do progresso da civilização que caracterizaram o período a que é o costume dar o nome de Renascença do século XII, designação adequada, pois trata-se de uma era de progresso intelectual comparável à Renascença italiana à Reforma." [19]

Em relação a elas, é conveniente acrescentar as palavras de Caenegem sobre as universidades:

"Como todas as instituições de ensino, as universidades medievais tinham um caráter eclesiástico. A maioria delas foi criada por uma bula papal e colocada sob a autoridade de um clérigo, na condição de reitor. Originalmente, todos os estudantes pertenciam ao clero, embora a grande maioria tivesse entrado apenas para as ordens menores e só uns poucos fossem ordenados padres. Em fins da Idade Média, esse caráter clerical diminuiu, e daí em diante a maioria da população estudantil era composta de leigos." [20]

Em relação às origens das universidades, há três maneiras de surgimento: união de várias escolas que já existiam anteriormente – como Bolonha (1158) e Paris (1200) -; secessão causada por problemas que levaram mestres e/ou alunos a abandonar a universidade que frequentavam e fundar outra – Cambridge surgida de Oxford (1209) e Pádua surgida de Bolonha (1222) -; decretação de bulas papais – como Toulouse (1229) - ou imperiais - Nápoles (1224).

As universidades eram verdadeiros centros cosmopolitas pois todos os cursos – Teologia, Direito, Medicina e Artes, sendo esse pré-requisito para os demais –, em qualquer universidade europeia eram ministrados em latim, utilizando-se, geralmente, a mesma bibliografia. Os estudantes, portanto, viajavam constantemente de universidade para universidade, o que também sucedia com os professores. Infere-se, por conseguinte, que as universidades eram essencialmente elitistas, pois somente os membros de uma classe social elevada eram capazes de patrocinar tais estudos, já que o sistema de bolsas era raro. Deve-se considerar também que os livros eram muito caros e os cursos muito longos, o que impossibilitava o trabalho remunerado de muitos estudantes – com exceção dos que conseguiam trabalhar para estudantes ricos [21].

O ensino era basicamente o trivial (retórica, gramática e dialética) e o eclesiástico. Convém ressaltar também que a corrente filosófica da escolástica influiu diretamente no método empregado nas universidades. Com o Renascimento do século XII e a recuperação de textos clássicos, houve um conflito entre as culturas pagãs e a cristã. O escolasticismo nasce do esforço contínuo de conciliar a fé e a razão típica dos textos gregos, especialmente os de Aristóteles. Era, na realidade, uma tentativa de exprimir racionalmente as crenças religiosas e fornecer uma explicação racional do mundo e do homem, com a pretensão de se explicar a fé cristã. Um dos fundadores da escolástica foi Santo Anselmo, um dos Pais da Igreja que representa um dos grandes expoentes dessa filosofia juntamente com São Tomás de Aquino.

Além da importância referente à aquisição e difusão de conhecimento proporcionadas pelas universidades, deve-se mencionar a envolvida questão burocrática. As grandes cidades precisavam de quadros qualificados para o exercício de cargos administrativos, políticos e jurídicos. Somente as universidades eram aptas para tal preparação. Com a formação universitária foi possível a profissionalização dos cargos, especialmente os jurídicos. Caenegem assegura que as cidades italianas, a partir do século XIII começaram a atrair professores de direito para também exercerem funções públicas [22].

As universidades multiplicaram-se e já no século XIV eram muitas, inspiradas no modelo parisiense ou bolonhês. No entanto, progressivamente a universidade foi perdendo suas características corporativas, até que o impulso do Humanismo fez desaparecer o intelectual profissional, substituindo-o por um novo tipo de homem, o humanista, e fazendo surgir o mecenato de papas, reis ou burgueses ricos, típico do individualismo renascentista.


4) A Reforma Gregoriana

A Igreja Católica influenciou diretamente todos os setores da vida do homem medieval. A Idade Média é vista como o período e que o cristianismo se firmou como a religião hegemônica e, assim como conquistou milhões de adeptos por toda a Europa, aos poucos foi adquirindo poderes políticos e econômicos. O seu poderio era tamanho que já por volta do século V ela era a segunda maior proprietária de terras da Europa e, consequentemente, com o fim do Império Romano passou a ser a maior.

Entretanto, com o advento do feudalismo o poder eclesiástico diminuiu significativamente. Em cada feudo, o senhor podia nomear como sacerdote de seu território quem lhe aprouvesse – o que levava, muitas vezes, uma pessoa sem nenhum preparo ou moral religiosa para tal cargo - , podia se apossar do dízimos e das esmolas recebidas dos servos. Assim, os bispos não tinham poder nenhum dentro dessa "hierarquia" feudal.

Com a intenção de inverter tal quadro, a Igreja iniciou uma reforma, visando à autonomia em relação aos poderes seculares – almejando também o controle sobre a sociedade - e à recuperação do prestígio perdido. Nesse contexto de reconquista, o papa Nicolau II estabeleceu uma série de mudanças que tinham por objetivo alcançar as metas anteriormente mencionadas. Entretanto, esse papa não conseguiu atingi-las por conta das pressões dos poderes políticos, especialmente as do imperador germânico. A reforma só será realmente efetivada com o papa seguinte Gregório VII, e é por isso que tal conjunto de mudanças foi denominado Reforma Gregoriana.

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Gregório lutou fortemente contra o nicolaísmo – vida conjugal de clérigos - que se desenvolvia nos meios eclesiásticos e contra a simonia – venda de coisas santas e espirituais -, ameaçando os infratores de excomunhão. O papa também instituiu uma hierarquia monástica, cujo ápice era o próprio papado. Aliás, o papa era também o rei de todos os povos e o único a quem se devia beijar os pés.

Porém, foi a Questão das Investiduras que teve a maior repercussão na Europa daqueles tempos. Gregório havia estabelecido que nenhum leigo poderia outorgar ofícios eclesiásticos, contrariando interesses de vários reis e imperadores que muito ganhavam com a nomeação de pessoas de sua confiança para cargos clericais. Vários choques ocorreram, principalmente na Itália, entre os grupos que apoiavam o papa – os guelfos – e os grupos que apoiavam o imperador – os gibelinos.

Apesar desses conflitos, o papa conseguiu enraizar o seu poder na sociedade medieval. Sobre isso, expõe Hilário Franco Júnior:

"Em relação aos clérigos, o papado legisla e julga, tributa, cria ou fiscaliza as universidades, institui dioceses, nomeia para todas as funções, reconhece novas ordens religiosas. Em relação aos leigos, julga e vários assuntos, cobra o dízimo, determina a vida sexual (casamento, abstinência),regulamenta a atividade profissional /trabalhos lícitos e ilícitos), estabelece o comportamento social (roupas, palavras, atitudes), estipula os valores culturais. (...). Um claro sinal do alargamento das atribuições papais estava numa importante novidade, a exclusividade de canonização dos santos." [23]


5) O ressurgimento do direito romano

Mesmo com o colapso do Império Romano e as invasões bárbaras, o direito romano continuou a ser empregado nos primeiros séculos medievais. Um fator que muito contribuiu para a manutenção do direito romano foi o princípio da personalidade. Nesse período, o mesmo território europeu estava albergando povos de diferentes origens e, por isso, era mister que tal princípio fosse utilizado. Ele se baseava no fato de que o direito aplicado em determinado conflito era o direito original das partes. Dessa forma, o direito romano conseguiu ainda permanecer por alguns séculos depois da decadência do Império.

O contato com a cultura germânica transformou o direito romano a fim de que ele fosse ajustado à nova realidade que miscigenava a cultura romana e cultura germânica. Dessa adaptação, surgiu o direito romano vulgar, no qual prevaleciam os costumes. Nesse período, algumas compilações foram feitas por reis bárbaros, ilustrando claramente esse direito vulgar. Exemplos dessas codificações: Edito de Teodorico ( promulgado pelo rei dos ostrogodos na Itália), a Lei Romana dos Burgúndios, a Lei Romana dos Visigodos.

Contudo, com a perda do poder dos reis, especialmente depois do Tratado de Verdun, o qual dividiu o Império Carolíngio em três, e com o feudalismo, o território europeu foi todo compartimentado e feudos, dentro dos quais o poder dos reis era quase insignificante. Era o senhor feudal que tinha plenos poderes dentro de seu território. Assim, com o desaparecimento da atividade legislativa imperial, o direito foi adstrito aos costumes e as relações de vassalagem. Esse foi o período e que se recorria aos ordálios – provas irracionais – e aos duelos judiciais. O direito romano ficou praticamente esquecido nesse período, salvo em algumas localidades nas quais ele permanecia na forma de costumes.

Todavia, com a decadência do feudalismo e com o aumento no grau de complexidade na sociedade – ocasionado pelo surgimento de novos papéis sociais-, o direito consuetudinário não era mais suficiente para solucionar os conflitos jurídicos. Além disso, os intelectuais que fora surgindo nas cidades reclamava, também por um direito mais racional. Foi-se então clamado o direito romano que, apesar de relegado há um bom tempo, podia se adaptar, por conta de seu caráter universalizante, à nova conjuntura social, política e econômica.

Muitos foram os atores que contribuíra para a reabsorção do direito romano pela sociedade medieval, sendo assim difícil estabelecer qual foi o preponderante. O que se assegura é que todos estes fatores combinados favoreceram a reemergência desse direito.

Um fator muito importante foi a herança cultural legada pelo Império Romano aos europeus. Sobre isso, Argemiro Cardoso expressa: "As marcas da civilização romana estavam por demais entranhadas no continente europeu, de forma que não poderiam ser facilmente esquecidas." [24]. O povo europeu, por conta de sua intensa admiração ao Império, possuía um sentimento de identidade e continuidade com a cultura romana, o que certamente favoreceu a aceitação do direito romano depois de tanto tempo restrito apenas à memória.

A economia também um papel fundamental. A nova classe burguesa que se formava na Europa precisava de um direito uniforme por todo o território, a fim de que suas atividades mercantis fossem facilitadas. Além do mais, o direito romano garantia certa previsibilidade e segurança, aspectos que o direito consuetudinário não era capaz de abarcar. Entretanto, é importante se fazer um ressalva em relação a esse aspecto econômica. O direito romano não foi recepcionado pelos mercadores pelo seu conteúdo material, mesmo porque o Império Romano pouco desenvolveu o comércio e, portanto, não tinha possibilidade de regular materialmente essas novas transações. A relevância do direito romano estava, decididamente, em sua estrutura racional e uniforme, além de suas noções de propriedade absoluta, suas tradições de equidade, e seus critérios racionais de prova e na ênfase dada a uma magistratura profissional [25].

Há também um fator político que desencadeou essa recepção: com o enfraquecimento do sistema feudal, os reis puderam recuperar o seu poder e, assim, centralizá-lo. O direito romano ia ao encontro dessa nova realidade política haja vista, na época de seu pleno desenvolvimento, possuir um poder imperial forte que, porém, permitia a liberdade no âmbito privado.

Podem-se enumerar, outrossim, fatores sociológicos e epistemológicos [26]. Os primeiros se referem ao processo de burocratização do Estado. Com o ressurgimento das cidades e com o fortalecimento do poder central era preciso que a estrutura administrativa e a profissional fossem bem desenvolvidas e eficazes para garantir que as ordens reais fossem cumpridas eficientemente. Para isso, o direito romano tinha um aparato que possibilitava essa estruturação. Com relação aos segundos fatores, vale-se ressaltar o surgimento das universidades e a crença na razão.

A Igreja, por sua vez, desempenhou um papel importantíssimo no desenvolvimento jurídico. O autor menciona o fato de que, depois da aceitação do catolicismo por Constantino, várias tarefas públicas ficaram a seu encargo. Do mesmo modo que a Igreja influenciou a burocracia romana, o fez também com o direito. A doutrina cristã fixou como fonte de direito não escrito a ética-social, e dessa forma, durante toda a Idade Média, o direito foi permeado pelo pensamento teológico.

A tradição pedagógica romana também influiu profundamente no âmbito jurídico. Roma adotou como padrão a Paideia grega, portanto, o ensino do trivium: gramática, retórica e dialética. Mais tarde, quando da decadência do império, a formação jurídica foi também incluída no trivium. Entretanto, é importante salientar que depois de aceita a religião católica, foi ela que prevaleceu nos centros de ensino. Wieacker assevera que o ensino eclesiástico – também baseado no trivium para a formação de clérigos - e o ensino trivial desempenharam um papel fundamental na herança da antiguidade.

As universidades foram importantes focos de estudo do direito romano. Assim que elas surgiram, o curso de direito já era ministrado com o direito romano erudito, o que facilitou a recepção desse direito nos tribunais. A respeito disso, Caenegem faz essa observação:

"Há vários fatores que podem explicar essa difusão do direito romano em regiões de direito consuetudinário: a erudição jurídica encontrava-se inteiramente sob a influência do direito erudito; os tribunais de justiça estavam cheios de juristas cuja educação universitária fora baseada no direito romano; e os próprios costumes (uma vez homologados) reconheciam freqüentemente que o direito romano exercia um papel suplementar de vínculo." [27]

Um grande foco de formação da ciência jurídica na Europa é Bolonha, no final o século XI. Esse início é marcado pelo resgate da cultura clássica, e , consequentemente, dos textos clássicos que por muito tempo foram esquecidos. Nesse mesmo século iniciou-se a apreciação crítica do Digesto, a chamada "Vulgata do Digesto". A importância dessa Vulgata é dada pelo fato de que era ela o instrumento de ensino do ius civile na Europa.

Os estudos jurídicos de Bolonha estavam baseados já no então mencionado ensino trivial. Todavia, o que distinguia os glosadores bolonheses de seus antecessores era o fato de que a gramática, a retórica e a dialética eram agora utilizados com um objeto bem definido: o Digesto. Por isso, é que Wieacker assevera que tal fenômeno foi "um ato de entusiasmo científico" [28]. Foi essa elaboração da Vulgata, com o uso das artes liberales que deflagrou o surgimento da ciência jurídica europeia. É relevante salientar que, ao contrário de muitas universidades medievais, Bolonha não prendeu seus estudos ao estudo da teologia. Seus documentos eram basicamente resultado da técnica expositiva do trivium.

Outro elemento que desencadeou esse processo foi o racionalismo da escolástica. Essa busca pelo racionalismo foi fruto da recuperação da cultura clássica. Assim, textos como os de Aristóteles, de Plínio, as Sagradas Escrituras e o próprio Corpus Iuris Civilis eram tidos como verdades irrefutáveis. A característica sobrenatural que atribuíam ao Império Romano – que significava ele mesmo o Corpo de Cristo – refletiu diretamente na ideia do Corpus Iuris, tido como uma revelação no âmbito jurídico. Assim, o direito romano passou a ser visto não só como um direito do povo romano , mas como um direito de toda a comunidade humana, denotando o caráter universal do direito.

Em relação à interpretação do Digesto, afirma Wieacker, os glosadores tinham o objetivo de comprovar a veracidade da autoridade, pelo uso da razão, contida nos textos. Essa autoridade reflete a busca de uma dogmática pelos glosadores. Assim, eles não tinham a intenção de tornar práticos os preceitos romanos nem compreendê-lo do ponto de vista histórico. Para eles, o Corpus Iuris Civilis era a razão que havia tomado corpo.

A respeito dos glosadores, é difícil estabelecer a contribuição individual de cada jurista em relação à totalidade de seus trabalhos devido à precariedade de fontes. Declara Wieacker que somente nos tempos modernos se comprova a individualidade de cada jurista; contudo, nesse período do qual se ocupa, essa individualidade não era efetivamente priorizada. Não obstante, é verificada a existência de grandes glosadores, como Búlgaro, Placentino, Azo e Cino, além de Irnerius, tido como o fundador da escola de Bolonha e o primeiro glosador. Os outros antecessores ainda permanecem nas sombras.

Já com relação à tentativa de legitimação da razão, a descoberta de textos clássicos, não só o Código de Justiniano, mas também as obras de Plínio, Platão e especialmente de Aristóteles, levaram a um conflito com a fé, uma vez que esses textos eram considerados fruto de uma cultura pagã. Contudo, com o tomismo esse conflito foi harmonizado, causando uma maior admiração por esses textos clássicos. A crença na razão era tão preponderante que havia nessa época a intenção de conciliar tais textos clássicos com as Sagradas Escrituras, função bastante desenvolvida pelos glosadores de Bolonha.

Esses fatores, cada um a sua maneira, contribuíram para que o direito romano fosse novamente empregado na vida jurídica medieval. Entretanto, essa recepção não foi homogênea por toda a Europa, como afirma Caenegem. O direito germânico também era bastante utilizado, e dessa fusão de influências nasceu o direito romano-germânico. Na Alemanha, o direito romano foi recepcionado maciçamente, enquanto na Inglaterra esse direito foi rejeitado em virtude da existência do Common Law. Mas mesmo assim, a influência do direito romano foi tão forte que até em alguns tribunais ingleses, como o Court of Chancery e o High Court of Admiralty, o direito erudito era aplicado [29].

A importância dos glosadores para a ciência jurídica moderna baseia-se no domínio do texto romano que obtiveram com seus estudos e interpretações. Além disso, fizeram que se mudasse o sistema de ensino de direito, combinando procedimentos filológicos, analíticos e sintéticos. Os glosadores também contribuíram para desenvolver a exploração lógica dos problemas jurídicos. A partir do trabalho deles, o direito foi visto como fruto da racionalidade e da discussão intelectual, e não mais como costumes. Assim, complementa Wieacker:

"Essa nova exigência dos juristas racionalizou e jurisdicionalizou para sempre a vida pública da Europa; em virtude dessa influência, dentre todas as culturas do mundo, é a européia a única que se tornou legalista." [30]

A partir dos glosadores, surgiu, além dos estudos teológicos e das artes já existentes, o studium civile, que desencadeou a formação de profissionais especializados pela administração da justiça, os quais a monopolizaram e a racionalizaram, o que perdura até os dias atuais.


BIBLIOGRAFIA:

AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de Nomes, Termos e Conceitos Históricos. 3 ed. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1999.

CAENEGEM, R. C. van. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. (trad. Carlos Eduardo Machado).

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média – nascimento do Ocidente. 2 ed.São Paulo: Ed. Brasiliense, 2002.

HEERS, Jacques. História Medieval. São Paulo: Difel – Difusão Européia do Livro, 1974.

HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Sãp Paulo: Cia das Letras. (trad. Cid Knipel Moreira)

LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. 2 ed. São paulo: Brasiliense, 1989.

_______________. O homem medieval. In: Le Goff, Jacques (org). O homem medieval, Lisboa: Editorial Presença, 1989. (trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo)

______________. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Editorial Estampa.

MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O Direito Romano e seu ressurgimento no Final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

PREVITÉ-ORTON, C. W. História da Idade Média. Vol. IV. Lisboa: Editorial Presença, 1973.

WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gilbenkian, 1980. (trad. A. M. Botello Hespanha)


Notas

  1. HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Cia das Letras, 2001. (trad. Cid Knipel Moreira). Pág. 75.
  2. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média - nascimento do Ocidente. 2 ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2001. Pág. 109.
  3. HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia das Letras. Pág. 71.
  4. LE GOFF, Jacques. O homem medieval. In: LE GOFF, Jacques (org). O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. (trad. Maria José Vilar de Figueiredo). Pag. 09
  5. LE GOFF, Jacques. Op. cit. Pág. 12.
  6. LE GOFF, Jacques. Op. cit. Pág. 15.
  7. Idem. Pág. 16
  8. Idem.
  9. Idem. Pág.19.
  10. LE GOFF, Jacques. Op.cit. Pág. 24.
  11. Idem Pág. 25.
  12. LE GOFF, Jacques. Op.cit. Pág. 27.
  13. Idem Pág. 29.
  14. "Prática agrícola que na divisão da terra cultivável em partes (duas no sistema bienal e três no trienal) deixava uma delas todo o ano, alternadamente, sem cultivo, para que a terra se fertilizasse naturalmente. No período em que essa parcela ficava inculta, os restos do plantio anterior servia de pasto secundário para os animais do senhorio, cuja adubação também contribuía para a recuperação do solo". (FRANCO JÚNIOR, Hilário. Op.cit. Pág 185).
  15. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Op.cit. Pág. 41.
  16. Idem. Pág. 43.
  17. LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Liscoa: Ed. Estudios Cor. Pág 13.
  18. Idem. Pág. 73.
  19. PREVITÉ-ORTON, C. W. História da Idade Média. Vol. IV. Lisboa: Editorial Presença, 1973. Pág. 224.
  20. CAENEGEM, R. C. van. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. ( trad. Carlos Eduardo Machado). Pág. 108.
  21. Idem. Pág. 111.
  22. Idem. Pág. 106.
  23. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Op.cit. Pág. 77.
  24. MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. Op.cit. Pág. 199.
  25. Idem. Pág. 202.
  26. Idem.
  27. CAENEGEM, R. C. van. Op.cit. Pág. 49.
  28. Idem. Pág. 42.
  29. Idem. Pág. 48
  30. WIEACKER, Franz. Op.cit. Pág. 65.
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Sobre a autora
Daniella Ribeiro de Pinho

Procuradora Federal, pós graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHO, Daniella Ribeiro. História do Direito: o Renascimento do século XII e as repercussões no ressurgimento do Direito Romano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3021, 9 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20178. Acesso em: 26 abr. 2024.

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