Artigo Destaque dos editores

Preservação da dignidade do preso e responsabilidade social no cumprimento de alvarás de soltura.

Um dever do Estado na busca da ordem pública

11/10/2011 às 16:04
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Justamente quando o preso deixa o estabelecimento prisional é que ele sente sobre suas costas o peso do preconceito e o desrespeito à sua dignidade, pois a forma em que esses detentos são colocados em liberdade é uma verdadeira afronta aos Direitos Humanos.

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana pode ser compreendido como o substrato ético que consubstancia os valores básicos reconhecidos por uma sociedade e possuiu suas bases no pensamento clássico e no ideário cristão. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade humana constitui-se em "qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos".

Neste sentido, muito tem se falado sobre os Direitos Humanos na aplicação da lei penal, no Direito Penitenciário e quanto à exigência de comportamento ÉTICO no trato e respeito ao preso. Ocorre que, muitos não sabem ou fecham os olhos ao que acontece com o preso no momento do cumprimento de seu alvará de soltura. Por óbvio, este é o momento mais esperado por ele e por seus familiares, contudo, ao ser colocado em liberdade, não lhe é reservado o mínimo de dignidade e respeito, pois é "solto" em uma situação humilhante, em total desamparo por parte do Estado e, muitas vezes, longe da presença de seus familiares que não ficam sabendo o dia e o horário em que o alvará de soltura vai ser levado a efeito.

Recentemente, em uma madrugada fria do mês de junho, em frente ao Centro de Remanejamento de Presos - CERESP/Gameleira, em Belo Horizonte - MG, vivenciei o padecimento das pessoas que, mesmo privilegiadas com a informação do deferimento da liberdade provisória e seguindo orientação de advogados, ficaram horas e horas a espera do momento em que seus pais, filhos, irmãos, etc, seriam colocados em liberdade. Observei também o momento da madrugada em que os detentos foram colocados em liberdade. Todos, em meio a uma mistura de alegria e revolta, estavam com vestes totalmente desajeitadas, descompostas, sujas e alguns apenas de calção e camiseta de malha. Era nítido no olhar daqueles que não tinham alguém à sua espera a absoluta falta de noção de como fariam para encontrar o rumo de suas casas.

Diante daquela situação, tomei conhecimento que as vestes que os ex-detentos usavam eram as mesmas que haviam sido deixadas por detentos recém chegados àquele CERESP e estavam sendo aproveitadas para que pudessem deixar aquele estabelecimento prisional, uma vez que quando são admitidos pelo Sistema Prisional passam a vestir uniformes da Subsecretaria de Administração Prisional - SUAPI. Naquele lamentável momento, tive a certeza de que nosso Sistema Prisional ainda não se preocupa com a ressocialização do preso como deveria.

Antes que leitores afoitos critiquem, explico-me: Sabemos que o preso em favor do qual for expedido o alvará de soltura deverá ser colocado imediatamente em liberdade, salvo se estiver preso em flagrante delito por outro crime ou se houver mandado de prisão expedido em seu desfavor, tudo isso sob pena de eventual falta disciplinar, abuso de autoridade, descumprimento de ordem judicial e de comunicação ao Ministério Público para apuração de responsabilidade criminal. Contudo, justamente quando o preso deixa o estabelecimento prisional é que ele sente sobre suas costas o peso do preconceito e o desrespeito à sua dignidade, pois a forma em que esses detentos são colocados em liberdade é uma verdadeira afronta aos Direitos Humanos.

Como dito, ao ingressar no sistema prisional, o preso deixa de utilizar suas roupas particulares para utilizar o uniforme da Subsecretaria de Administração Prisional - SUAPI e, durante a permanência como preso, é submetido a vários remanejamentos de um CERESP para outro. Nos remanejamentos os objetos de valor (lícitos) seguem o destino do detento, já suas roupas por um motivo ou outro não acompanham o mesmo destino. Os valores em dinheiro ficam custodiados pelo sistema prisional e poderão ser restituídos em dois momentos: no momento da soltura do ex-detento ou por solicitação de familiares e com o aval do preso.

De modo geral, quando os ex-detentos deixam o estabelecimento prisional não possuem dinheiro e são colocados em liberdade sem o conhecimento de seus familiares, sem qualquer condição de tomar o rumo de sua casa, em plena madrugada, sem a menor noção de onde estão, sem qualquer condição de transporte e com as roupas aproveitadas de outros detentos. Cabe ressaltar que, em regra, o ex-detento não estará na mesma localidade em que foi preso, pois, o sistema CERESP é de remanejamento de presos e, dependendo do tempo em que permaneceu preso, o ex-detento não estará mais na mesma localidade em que foi preso.

A nosso ver, o problema não está somente no absurdo do horário em que são cumpridos os alvarás de soltura (em plena madrugada) mas sim, repito, no modo em que os ex-detentos são colocados nas ruas, sem qualquer amparo do Estado e de seus familiares. O conjunto destas condutas é que reputamos desumano. É importante lembrarmos que a Constituição Federal de 1988, em seu Art. 5º LVII, consagra o estado de inocência, prevendo que o cidadão somente será considerado culpado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ou seja, aquele ex-detento que sai do CERESP ainda é considerado inocente e, mesmo que pese em seu desfavor graves acusações, o Estado deve acreditar na capacidade de ressocialização e na capacidade de readaptação do ex-detento junto à sociedade. Portanto deve oferecer o mínimo de condições para isso. Sabemos que no momento de sua prisão o acusado tem direito a um telefonema, então não seria viável que, no momento de sua soltura, o ex-detento realize outro telefonema para informar aos familiares onde e em que dia e hora será solto?

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Da maneira em que são colocados em liberdade, embora não justifique, pergunto: será que aquele ex-detento, vivenciando um momento de abandono, quase em um estado de necessidade não ficará tentado em furtar ou roubar na primeira oportunidade que surgir? Será que aquela pessoa colocada em liberdade em plena madrugada, com fome, com frio, sem condições de arcar com uma condução pública, ao deparar-se com um trabalhador que caminha rumo ao seu trabalho, não furtará a marmita e o cartão de transporte daquele cidadão? Será que o Estado ao colocar o ex-detento nas ruas sem amparo da família e sem condição de ir e vir, estará contribuímos com sua ressocialização? Será que ao ser abordado por um ex-detento maltrapilho e barbudo você o ajudaria com alguns trocados?

Não pretendemos "idolatrar" o preso, mas apenas atentar a sociedade para o fato de que o reconhecimento de direitos e garantias fundamentais devem ser garantidos a todos, e que o Estado somente conseguirá o respeito do cidadão se respeitar sua dignidade. Entendemos que este é um assunto que requer um estudo detalhado. Conclamo a bancada dos Direitos Humanos de nossa Augusta Assembléia Legislativa e os defensores dos Direitos Humanos a pensarem nesta situação desajeitada de nosso Sistema Prisional.

Para as pessoas mais radicais, infelizmente ainda é a grande maioria da população, o preso deixa de ser uma pessoa dotada de direitos, e passa a ser tratado como coisa. É importante lembrarmos que o preso precisa ser reconhecido como ser dotado de dignidade, qualidade inerente à essência do ser humano e bem jurídico absoluto, inalienável, irrenunciável e intangível.

O assunto requer estudo aprofundado mas talvez uma legislação tornando obrigatória comunicação prévia de local e horário de soltura do ex-detento minimize o abandono em que estas pessoas são colocadas em liberdade. Assim o Estado estará oferecendo o mínimo de condições ao ex-detento e contribuirá para diminuir a dor de quem espera por horas a fio por seu parente preso e, principalmente, demonstrará ao ex-detento que a sociedade e o Estado acreditam em sua recuperação e que ele é importante para a sociedade. Sociedade que está pronta para recebê-lo de volta.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. 2ª ed, revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002.

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Sobre o autor
Clodoaldo Carlos Costa

Policial Militar, Bacharel em Direito, Especialista em Direito Público, Especialista em Dependência Química e Doutorando em Ciência Jurídicas e Sociais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Clodoaldo Carlos. Preservação da dignidade do preso e responsabilidade social no cumprimento de alvarás de soltura.: Um dever do Estado na busca da ordem pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3023, 11 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20192. Acesso em: 23 nov. 2024.

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