1 – INTRODUÇÃO
Segundo a teoria da justiça como equidade de John Rawls, a estrutura básica da sociedade é determinada por princípios escolhidos por pessoas livres e racionais colocadas em uma hipotética posição inicial de igualdade, sob um "véu de ignorância". Nesse sentido, a concepção de justiça seria o objeto de um consenso original.
Rawls deixa claro que "a situação original de igualdade corresponde ao estado de natureza da teoria tradicional do contrato social" [01]. Preocupadas em promover os seus próprios interesses, as partes elegem os princípios que devem regular os termos da cooperação social e da distribuição de bens e encargos, atribuindo a si mesmas direitos e deveres tão básicos quanto universais.
Presume-se que, na posição original, ninguém conhece seu status social, tampouco a sua parcela na distribuição de bens e de dotes naturais. No entanto, exige-se que os indivíduos sejam seres racionais com objetivos próprios e capazes de um senso de justiça, o que, à primeira vista, parece excluir a participação dos indivíduos que não tenham pleno discernimento de seus atos, como é o caso das crianças. A elas, portanto, os direitos e obrigações da cooperação social não seriam auto-impostos, como são aos membros plenamente capazes.
Vejamos, então, o que os adultos considerariam justo para elas, segundo o seu melhor interesse [02].
2 – PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA
A criança abandonou o antigo status de "sujeito em potencial", tornando-se destinatária de uma tutela prioritária, em razão de sua peculiar condição de "pessoa em desenvolvimento". Disso resulta que sua personalidade deve ser promovida, sobretudo, através do exercício dos direitos fundamentais gerais e dos que lhe são especialmente dirigidos.
Segundo o princípio do melhor interesse da criança, entende-se que as necessidades da criança devem ser realizadas no caso concreto, ainda que em detrimento dos interesses dos pais.
Todavia, critica-se a baixa densidade normativa do princípio, ao argumento de que a discricionariedade conferida ao intérprete para construir o seu significado poderia levar a uma aplicação arbitrária no caso concreto. Por isso, foram concebidos alguns mecanismos direcionados a reduzir a subjetividade do juiz, dentre os quais se destaca o direito à informação, concedido à criança, para que a mesma participe da decisão sobre os assuntos que lhe dizem respeito.
Verifica-se, portanto, uma preocupação em assegurar à criança o exercício das liberdades básicas, ainda que de forma assistida. Por outro lado, o tratamento diferenciado concedido às crianças, nas palavras de Martha de Toledo Machado,
autoriza a aparente quebra do princípio da igualdade: porque são portadores de uma desigualdade inerente, intrínseca, o ordenamento confere-lhes tratamento mais abrangente como forma de equilibrar a desigualdade de fato e atingir a igualdade jurídica material e não meramente formal. [03]
Assim, ao que tudo indica, o princípio do melhor interesse do menor seria escolhido na posição original, como instrumento eficaz para a maximização das expectativas das crianças, pessoas menos favorecidas em razão da sua vulnerabilidade. A par de legitimar o princípio, tornando-o "justo", a noção de justiça como equidade pode oferecer parâmetros concretos para a definição do seu conteúdo. Para tanto, é preciso verificar quando e em que medida a teoria rawlsiana converge para a tutela dos interesses da criança.
3 – IGUAL LIBERDADE DA CRIANÇA
Rawls afirma que "cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema similar de liberdade para todos" [04].
Trata-se do enunciado do primeiro princípio de justiça, o da "igual liberdade" (equal liberty principle), que tem prioridade sobre o segundo princípio, que se divide em "princípio da diferença" (difference principle) e "princípio da igualdade equitativa de oportunidades" (fair equality of opportunities). Após classificá-los em ordem lexical, Rawls conclui que a liberdade só pode ser limitada em nome da própria liberdade, em prol de um melhor ajuste do sistema único de liberdades, igual para todos [05].
Assim, certas liberdades básicas, como a liberdade de expressão e reunião, a liberdade de consciência e pensamento, as liberdades da pessoa (integridade psicofísica), a proteção contra a prisão arbitrária, entre outras, devem ser estendidas a todos por igual, inclusive às crianças, no que couber. A liberdade política, por exemplo, ficaria de fora, pois os direitos de votar e ser votado só podem ser exercidos pelo próprio titular, que deve ter maturidade suficiente para tanto.
No entanto, ressalvadas as situações personalíssimas, a ausência de discernimento para realizar as próprias escolhas não impede o pleno exercício dos direitos e garantias fundamentais, devendo a ordem jurídica criar mecanismos específicos – como é o caso da tutela e do poder familiar – para suprir a incapacidade do menor.
Por outro lado, em se tratando de situações existenciais, não-patrimoniais, entende-se que a criança deve ter autonomia para tomar decisões compatíveis com a sua "efetiva situação psicofísica" [06], o que, aliás, está plenamente de acordo com o atual modelo democrático de família. Sendo a democracia constitucional o regime para o qual Rawls concebeu a sua teoria, seria contraditório que, em uma sociedade bem ordenada, as demais instituições, dentre elas a família, se organizassem de forma diferente.
A democratização no âmbito familiar representa igualdade, respeito mútuo, autonomia, resguardo da violência e integração social. Nas relações paterno-filiais, a educação deixa de ser uma relação de imposição, cedendo espaço para a negociação e o diálogo. Diluindo-se a autoridade parental na noção de respeito à originalidade da pessoa do filho, permite-se a ele o maior exercício possível de liberdades básicas ao mesmo tempo em que tornam mais aceitáveis as restrições nesse sentido, o que satisfaz o primeiro princípio da justiça como equidade e a regra que determina a sua prioridade sobre os demais.
O inconveniente disso é que, em alguns casos, a tutela dos interesses da criança, inclusive contra os próprios pais, se dê ao custo de uma maior e indesejável intervenção do Estado na vida privada das pessoas.
4 – DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES
Na segunda parte do segundo princípio de justiça, diz-se que as desigualdades econômicas e sociais devem se originar de "cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades" [07].
Desenvolvendo essa idéia, Rawls sustenta que o Estado deve "assegurar oportunidades iguais de educação e cultura para pessoas semelhantemente dotadas e motivadas, seja subsidiando escolas particulares, seja implantando um sistema de ensino público" [08]. Vê-se, portanto, que o princípio se dirige especialmente às crianças, em razão de sua condição de "pessoa em desenvolvimento".
O constituinte brasileiro foi sensível a essa questão, dispondo, no art. 205, que "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".
No âmbito legislativo, o art. 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) prevê que "a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho".
Em outra passagem, Rawls sugere que não haverá plena igualdade de oportunidades enquanto a família for um tipo de organização social. Na sua visão, as aptidões naturais desenvolvem-se de acordo com as circunstâncias sociais. Por isso, a disposição de se esforçar e, assim, alcançar uma determinada posição dependeria das condições materiais da família em que a criança nasce e de como as suas aspirações foram educadas. [09]
A solução, então, seria prestigiar o princípio da diferença, para que as desigualdades existam para aumentar as expectativas da classe representativa de pessoas menos favorecidas e, por outro lado, redefinir o princípio da igualdade equitativa de oportunidades para que haja "perspectivas iguais de vida em todos os estratos da sociedade para os que têm motivação e capacidade semelhantes" [10].
5 – DA PREOCUPAÇÃO COM AS GERAÇÕES FUTURAS
Outro ponto abordado por John Rawlsque afeta as crianças é o problema da justiça entre gerações. Para o autor, "cada geração deve, além de preservar os ganhos em cultura e civilização e manter intactas as instituições justas que foram estabelecidas, também poupar a cada período de tempo um montante adequado de capital real", segundo uma taxa razoável de poupança [11].
Afinal, não seria justo que uma geração abusasse dos seus descendentes, consumindo a sua riqueza. Nesse sentido, o princípio da justa poupança é corolário do princípio da diferença, pois exige que a geração atual poupe em benefício das gerações posteriores, inclusive a da que as crianças de hoje fazem parte [12].
Vale ressaltar que essa decisão seria uma exceção ao "princípio das justas salvaguardas", segundo o qual cada um, na posição original, defende apenas os seus próprios interesses individuais, pois as partes sabem que são contemporâneas e as gerações anteriores terão ou não poupado de qualquer modo. A idéia, aqui, é viabilizar que a próxima geração possa vivenciar um modelo de sociedade com o mesmo nível de justiça e desenvolvimento econômico que o verificado no esquema imediatamente precedente. [13]
A respeito do tema, Rawls conclui que há deveres e obrigações entre gerações, assim como entre contemporâneos. A opção por maximizar as expectativas dos menos favorecidos de cada geração, através da poupança, seria o cumprimento do dever natural de apoiar e promover instituições justas mediante a renúncia de ganhos imediatos e que estejam disponíveis. Do contrário, segundo Rawls, a riqueza poderia se tornar "um verdadeiro obstáculo, na melhor das hipóteses uma distração sem sentido, se não uma tentação à indulgência e à falta de objetivos" [14].
6 – CONCLUSÃO
Na concepção kantiana, em que se funda o pensamento rawlsiano, o homem – independentemente de sua idade ou qualquer outra condição – é um valor em si mesmo, não podendo ser instrumentalizado a nenhum outro fim. Assim também a criança, que deve ter sua dignidade protegida, por si, e não como um prolongamento da personalidade dos pais ou como um projeto de pessoa, o que seria incompatível com a teoria da justiça como equidade e com os valores do ordenamento jurídico brasileiro.
Aliás, a concepção de justiça formulada por Rawls parece ter exercido significativa influência sobre a formulação do nosso sistema jurídico democrático, haja vista as diversas questões, indicadas neste trabalho, solucionadas de modo similar por ambos. Até em relação às críticas há coincidências: a objeção dos libertários a Rawls, liderados por Nozick, no que se refere ao intolerável efeito, natural a qualquer ideal estrutural de justiça, de exigir que o Estado interfira continuamente nos atos das pessoas [15] corresponde à problemática do Direito de Família alusiva à necessidade de uma mínima intervenção estatal.
Feita essa aproximação, torna-se possível preencher o conteúdo do princípio do melhor interesse da criança com elementos da teoria da justiça como equidade, tais como o maior exercício possível de liberdades básicas, no contexto de uma família democratizada, e a igualdade equitativa de oportunidades, a ser realizada, preferencialmente, através de um ensino público gratuito e de qualidade.
Em suma, se aplicada ao caso concreto, a concepção de justiça como equidade pode se tornar um instrumento eficaz para a proteção dos interesses das crianças. E seria em escala ainda maior, se as partes da hipotética posição original, preocupadas exclusivamente com os próprios interesses, devessem contar com a possibilidade de se virem crianças quando caísse o véu de ignorância que as impedia de conhecer essa condição.
7 – REFERÊNCIAS
CRUZ JUNIOR, Ademar Seabra da. Justiça como Eqüidade: Liberais, Comunitaristas e a Autocrítica de John Rawls. Rio Janeiro: Lumen Juris, 2004.
KUKATHAS, Chandran e PETTIT, Philip. Rawls: "Uma Teoria da Justiça" e os seus críticos. Lisboa: Gradiva, 1995.
MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos fundamentais. Barueri: Manole, 2003.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. 3.ed, traduzida por Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Notas
- RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 13.
- A ambiguidade é proposital.
- MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos fundamentais. Barueri: Manole, 2003. p. 119.
- RAWLS, John. Op. Cit. p. 376.
- Ibidem. p. 250.
- Nesse sentido, PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. 3.ed, traduzida por Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 260.
- RAWLS, John. Op. Cit. p. 376.
- Ibidem. p. 343.
- Ibidem. p. 89.
- Ibidem. p. 375.
- Ibidem. p. 355-356.
- KUKATHAS, Chandran e PETTIT, Philip. Op.Cit. p. 68.
- CRUZ JUNIOR, Ademar Seabra da. Justiça como Eqüidade: Liberais, Comunitaristas e a Autocrítica de John Rawls. Rio Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 65.
- RAWLS, John. Op. Cit. p. 364-365.
- KUKATHAS, Chandran e PETTIT, Philip. Op.Cit. p. 107.