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A eqüidade no Direito do Trabalho

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01/10/2001 às 00:00
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5. Análise do art. 127 do Código de Processo Civil

Dispõe o art. 127 do Código de Processo Civil, in verbis:

"Art. 127. O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei." (grifos nossos)

A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), por sua vez, em seu art. 4º, enuncia:

"Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito."

Por causa destes dispositivos normativos, há forte corrente, na qual militam diversos ilustres juristas, que entende que o juiz somente pode aplicar a eqüidade em determinadas hipóteses taxativamente expressas.

Deste entendimento, definitivamente, não partilhamos.

Com efeito, acreditamos que a regra do digesto processual civil somente se aplica ao que chamamos "decisão por eqüidade", a que nos referimos nos tópicos anteriores.

Entretanto, a regra geral de que o juiz deve decidir sempre com eqüidade, ou seja, visando realizar a Justiça, deve permanecer dentro de um sistema jurídico que se propõe lógico, pois uma decisão jurídica (enquanto busca de realização da Justiça) que afronta o direito (enquanto ideal de justiça) é um contradição de termos.

Do mesmo modo, não há como se desprezar a eqüidade como meio de integração da norma, adequando-a ao caso concreto, na hipótese de haver lacunas no ordenamento jurídico (axiológicas ou não), eis que o art. 5º da mesma Lei de Introdução ao Código Civil afirma que na "aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum."

Desta forma, é a eqüidade perfeitamente aplicável no sistema processual brasileiro vigente, em qualquer uma das 03 (três) classificações expostas ao final do tópico 4.2.

Tal constatação se consolida, ainda mais, quando nos referimos ao direito do trabalho brasileiro, eis que o próprio texto da C.L.T. prevê a aplicabilidade da eqüidade, conforme se verifica de uma simples leitura do seu art. 8º:

"Art. 8º. As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.

Parágrafo único. O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste."

Sendo assim, por expressa determinação legal, é perfeitamente aplicável a eqüidade no direito do trabalho, tanto pela aplicação direta (art. 8º), como subsidiária (parágrafo único).

Neste sentido, conforme lembra Miguel Reale, o Direito do Trabalho "é, por sua natureza, um Direito a que é inerente um ´sentido dinâmico´, de contínua adequação às estruturas sociais em mudança, sempre visando a garantir aos protagonistas do trabalho a plenitude de seu ser pessoal, numa permanente conciliação entre valores individuais e grupalistas.

Bastaria esta nota de ´dinamicidade social´, a que se referem tantos autores, ao procurarem caracterizar o ´espírito do Direito do Trabalho´, para desde logo se ter de reconhecer que o papel desempenhado pela eqüidade nos domínios da Jurisprudência, em geral, se revela ainda mais significativo na tela da Hermenêutica trabalhista, cujas relações implicam sempre um ´ser situado num quadro de peculiares circunstâncias´, como é o caso do trabalhador ou do empresário.

Natural, por conseguinte, que o operador do Direito do Trabalho, tendo de aplicar a situações concretas uma regra abstrata, pertinente a uma ´classe de atos ou de fatos´, procure obedecer a critérios equitativos para a atualização da lei, não para contrariá-la, mas antes para realizá-la em sua plenitude e concreção, segundo a raiz de seu ditame, e não segundo os elementos formais que a ocultam ou a enrijecem"(20) (grifos nossos)

Entretanto, apesar de parecer óbvio que as decisões com eqüidade são plenamente cabíveis no direito do trabalho, haja vista que não se trata de uma questão dum ramo específico da árvore jurídica, mas sim da própria Teoria Geral do Direito, há quem encontre dificuldade em visualizar decisões por equidade ou decisões tomando a eqüidade como meio supletivo no direito do trabalho.

Para dissipar quaisquer dúvidas neste sentido, apresentaremos, nos próximos tópicos, alguns exemplos destes tipos de decisão no processos trabalhistas:


6. Exemplo de decisão por eqüidade no Direito do Trabalho brasileiro

O julgamento por eqüidade é algo extremamente presente no cotidiano da Justiça Especializada Trabalhista.

Um dos exemplos clássicos deste tipo de julgamento é a decisão proferida nos dissídios coletivos, em que os tribunais trabalhistas, através de sua composição plena ou de órgãos especializados, elaboram as normas que irão regular aquela determinada categoria profissional.

Comentando a matéria em sua clássica obra "Curso de Direito do Trabalho", Orlando Gomes e Elson Gottschalk ensinam que, neste caso, "o juiz deve julgar segundo a eqüidade, conciliando os interesses dos empregados com os dos empregadores, subordinando-os, sempre, aos interesses gerais da coletividade."(21)

Como se vê, os julgadores, no conflito coletivo, devem estar atentos principalmente aos interesses gerais da coletividade, termo este que é, em verdade, o que se convencionou chamar de "topoi", que, segundo a conceitação de Tércio Sampaio Ferraz Jr., constitui-se em "fórmulas, variáveis no tempo e no espaço, de reconhecida força persuasiva, e que usamos, com frequência, mesmo nas argumentações não técnicas das discussões cotidianas"(22). Em outras palavras, trata-se de um conceito indeterminado, de alta reflexão, que exige uma interpretação do órgão julgador, o que acaba levando-o a recorrer ao que considera justo no caso concreto.


7. Exemplo de lacunas no Direito do Trabalho brasileiro: decisões tomando a eqüidade como meio supletivo:

Reconhecida a existência de lacunas (axiológicas ou não) no ordenamento jurídico, tal fenômeno não poderia deixar de ocorrer no Direito do Trabalho, eis que o mesmo é um dos ramos da imensa e complexa árvore jurídica.

Exemplificar, porém, uma hipótese de lacuna no Direito é sempre algo complicado, pois envolve, necessariamente, a interpretação vigente de determinada norma, que, muitas vezes, não corresponde à interpretação que é data pelo interlocutor.

Apesar destas dificuldades, não nos furtaremos a propor uma hipótese, a qual, desde já, reconhecemos como polêmica, justamente por envolver discussões acerca do método interpretativo adequado.

Tomemos, por exemplo, a norma contida no art. 7º, XIII, da Constituição Federal de 1988, que preceitua, in verbis:

"Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;"

O entendimento predominante na instância superior trabalhista é que o acordo a que se refere a previsão constitucional é o acordo coletivo, por uma interpretação sistemática do texto constitucional e - por que não dizer - do próprio espírito do legislador constituinte, que buscou "flexibilizar" alguns direitos trabalhistas, mediante uma visão privilegiadora da autonomia da vontade coletiva.

Apesar de reconhecermos a existência de ilustres vozes discordantes, acreditamos que a convicção do Tribunal Superior do Trabalho, através da sua Seção Especializada em Dissídios Individuais, é a mais acertada, não só pelas interpretações literal e sistemática do texto constitucional, mas também pelo próprio sentido histórico e princípio básico do Direito do Trabalho, que é o da proteção ao hipossuficiente econômico.

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Fundamenta-se esta última assertiva na constatação fática de que muitos destes alegados "acordos individuais de compensação de jornada" são firmados quando da admissão do empregado que, neste momento, encontra-se em posição de inferioridade, constituindo-se em verdadeiros "contratos de adesão", em que se renuncia a direitos assegurados pela legislação (in casu, a jornada máxima diária de oito horas), sob pena de não obtenção do emprego.

Nota-se, realmente, que há um vício de consentimento neste ato de adesão, decorrente da coação difusa a que está submetido o trabalhador pela necessidade do emprego, que deve inquinar de nulidade tal acordo.

Acreditamos, ainda, que outro não poderia ser o entendimento, pois, conforme lembra Carlos Alberto Gomes Chiarelli, Doutor em Direito e Senador Constituinte, na "medida em que a nova Constituição estabelece no inciso XIII, do artigo 7º., que ´mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho´ poderá haver redução de jornada e compensação de horários, dentro dos limites que a moldura constitucional fixou, as variações menores, como as do intervalo de repouso não computado para o cálculo da jornada, por sinal, não precisa ficar na dependência do Ministro, nem mesmo do Ministério. Se as partes podem o mais, logicamente podem o menos. Se lhes está assegurado o direito constitucional de reduzir jornada, por entendimento coletivo, e, dentro de tal marco negocial, de abrangência categorial (convenção coletiva) ou de âmbito empresarial (acordo coletivo), também o de efetuar compensações, de molde a dar elasticidade e plasticidade dinâmica à jornada de trabalho, também poderão, com autorização implícita da Lei Maior, ajustar o tempo de duração do intervalo de repouso intermediário. Não há dúvida de que os trabalhadores da empresa, representados pela entidade associativa classista, defenderão com mais especificidade de conhecimento, e, por que não dizer, com maior empenho e entusiasmo, os seus interesses do que qualquer representante governamental. Claro que essa disposição flexibilizadora e autorizativa, reconhecendo poderes, para tanto, dos sindicatos e, patronalmente, também das empresas, não retira o direito de fiscalização, em nome da competência legal e do interesse público do próprio Estado"(23).

É este o entendimento também de José Augusto Rodrigues Pinto, que ensina que "Em primeiro lugar, a contratualidade das horas extraordinárias foi simplesmente abolida. Somente pela vontade coletiva da categoria é possível pensar nelas, e ainda assim em termos de compensação de jornadas (CF, art. 7º, XIII). Com isso, o constituinte evidenciou seu intuito de fortalecer a atuação sindical, na negociação de um dos pontos críticos das condições de trabalho, além de proteger o empregado, individualmente, subtraindo-o à pressão econômica do empregador para obter, mediante acordo individual de vontades, qualquer forma de prorrogação de horário"(24).

Apenas para ilustrar, ainda mais, este posicionamento, vale lembrar Amauri Mascaro Nascimento, que declara expressamente que "a forma do sistema de compensação de horas será o acordo coletivo com o sindicato, não valendo, e estando sujeito a autuações da fiscalização trabalhista, o acordo individual", bem como que "para reduzir coletivamente a jornada de trabalho, a empresa terá que fazê-lo também mediante acordos coletivos com o sindicato"(25) e Octávio Bueno Magano, que, em curto artigo, porém com a costumeira precisão, declara que "a Constituição, ao falar em acordo ou convenção coletiva, quis dizer acordo coletivo ou convenção coletiva", pelo que "não se concebe, portanto, de modo algum, compensação de horários ou redução de jornada, mediante acordo individual"(26).

Entretanto, mesmo tendo em mente estas premissas de raciocínio, podemos propor a seguinte hipótese ideal para discussão:

Determinado jovem executivo, que trabalhava 08 (oito) horas de segunda a sexta e 04 (quatro) horas no sábado, conclui que precisa cuidar melhor de sua saúde e aparência física, resolvendo que deve se dedicar à prática de esportes nos finais de semana.

Então, para isto, pretende deixar de trabalhar nos dias de sexta-feira e sábado, para que possa dispor de mais tempo livre, pelo que celebra um acordo com seu empregador, para trabalhar 11 (onze) horas de segunda a quinta-feira, o que compensaria exatamente as 12 (doze) horas deixadas de trabalhar.

Ressalte-se que tal executivo é um dos empregados mais qualificados da empresa empregadora, sendo "objeto de cobiça", inclusive, de diversos "headhunters".

Pela sua grande importância para os quadros da empresa, esta aceita o acordo, e esta situação permanece por cerca de 05 (cinco) anos.

Contudo, depois deste lapso temporal, há um desentendimento do executivo com a empresa, o que culmina com sua saída.

Irado pela perda de sua posição privilegiada, este executivo decide, então, ajuizar reclamação trabalhista, alegando que o acordo era nulo de pleno direito, por vício de forma, requerendo o pagamento, como extras, de todas as horas excedentes à oitava diária.

QUESTIONA-SE:

Após todos estes posicionamentos, terá o executivo reclamante sucesso em sua aventura judicial?

De acordo com tudo quanto foi exposto, absolutamente não!!!

Tendo sido todos os acontecimentos supra relatados apresentados ao órgão julgador trabalhista, não pode o mesmo abstrair os fatos e valores ali existentes para se limitar à aplicação da letra fria da lei, sob pena de não se fazer justiça no caso concreto.

Então o que pode fazer o julgador?

A resposta é óbvia: suprir esta lacuna com a aplicação da eqüidade.

Mas como?

Há no Direito o princípio, oriundo de um velho brocardo romano, de que "ninguém será ouvido (em juízo) quando alega a sua própria torpeza" (Nemo auditur propriam turpitudinem allegans), pelo que o privilégio da boa fé é uma das "bússolas", que deve orientar o aplicador do direito.

Ora, na presente hipótese, tal acordo, alegado como nulo, foi proposto pelo próprio empregado, numa busca por melhores condições de vida e saúde.

Ademais, não se pode olvidar que não se trata propriamente de um hipossuficiente econômico, eis que tais profissionais tem remuneração anual maior do que a recebido por um trabalhador médio, durante toda sua vida, pelo que não há como se pensar num vício de consentimento, notadamente pelo fato de se tratar de um cidadão de nível superior, extremamente qualificado e polivalente.

Desta forma, o julgador, valendo-se da eqüidade no preenchimento desta lacuna apontada, possibilita a adeqüação da norma aos fatos e valores referentes, eis que a evolução social do próprio Direito do Trabalho impõe novos problemas carentes de soluções.

Com isso, podemos afirmar, inclusive, que a eqüidade, como meio supletivo de interpretação e integração de normas, exerce um papel importantíssimo na reprivatização da autonomia da vontade, em virtude das transformações por que passa o juslaboralismo.

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Sobre o autor
Rodolfo Pamplona Filho

juiz do Trabalho na Bahia, professor titular de Direito Civil e Direito Processual do Trabalho da Universidade Salvador (UNIFACS), coordenador do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito Civil da UNIFACS, mestre e doutor em Direito do Trabalho pela PUC/SP, especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAMPLONA FILHO, Rodolfo. A eqüidade no Direito do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2026. Acesso em: 23 abr. 2024.

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