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Da cooperação policial à polícia comum no Mercosul: delitos transnacionais como gênese

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22/10/2011 às 14:47
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Questões pertinentes à segurança pública supranacional são, efetivamente, de interesse mundial e, com a transnacionalização dos ilícitos penais, vê-se que referido setor público tornou-se, da mesma forma, um assunto e, ao mesmo tempo, um problema de âmbito mundial.

"A suspeita sempre persegue a consciência culpada; o ladrão vê em cada sombra um policial". (William Shakespeare)

RESUMO

Este trabalho tem por finalidade primordial tornar vívida a viabilidade de instituição de uma polícia comum no âmbito do MERCOSUL, à semelhança do que já ocorre na União Europeia (Europol). Com efeito, por meio da expansão de determinados crimes para além das fronteiras nacionais, já não se mostra eficaz a metodologia de repressão tradicional das polícias de cada Estado. Urge, isto sim, que se forme uma polícia transnacional, com atuação e com especialidades voltadas para a realidade da América do Sul. As metodologias existentes hoje já se mostraram vencidas há muito tempo, ineficazes até mesmo perante o mero controle dos ilícitos locais de cada país. Não se olvide de que há entre os países que compõem o bloco uma bem intencionada, embora incipiente, cooperação policial. Todavia, essa experiência ainda longe está de alcançar os sucessos que só advirão da formação de uma polícia comum. Dessa arte, discorrer-se-á, em um primeiro momento, acerca dos mecanismos de cooperação já existentes no MERCOSUL, bem como sobre as dificuldades que a sistemática atual acaba por enfrentar perante os delitos transnacionais. Por fim, em um segundo momento, estudar-se-á sobre a viabilidade de implementação de uma polícia comum na América do Sul e, finalmente, quais benefícios adviriam dessa almejada comunhão.

PALAVRAS CHAVES: Cooperação policial; polícia comum; Europol; crimes transnacionais e MERCOSUL.

ABSTRACT

This work aims to make primary vivid the feasibility of establishing a joint police as part of MERCOSUL as already happens in the European Union (Europol). Indeed, through the expansion of certain crimes across national borders, no longer shows the effective methodology of traditional police repression of each State. It is necessary to creating a transnational police, with acting and with specialties geared to the reality of South America. The methodologies available today were long overdue, ineffective even before the mere control of illegal places of each country. Although there are between countries that make up the block a well-intentioned, though nascent, police cooperation. However, that experience is still far from achieving the success that only bring the formation of a common police. That art, talk will be on a first date, on the existing mechanisms for cooperation in MERCOSUL and on the difficulties that the current systematic ultimately face before the transnational crimes. Finally, in a second time, it will study on the feasibility of implementing a common police in South America and, finally, what benefits that arise desired unification.

KEY WORDS: Police Joint; Common Police; Europol; Transnational Crimes and MERCOSUL.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. COOOPERAÇÃO POLICIAL NO MERCOSUL; 1.1. Os mecanismos de cooperação policial existentes no âmbito do MERCOSUL; 1.2 Delitos transnacionais versus a sistemática atual; 2. DELITOS TRANSNACIONAIS COMO GÊNESE DE UMA POLÍCIA COMUM; 2.1 A viabilidade de implementação de uma polícia comum no MERCOSUL; 2.1.1 Novos crimes. Novas técnicas; 2.2 previsões positivas que se evidenciam em torno de uma conjectura uniformizadora; 2.2.1 Crimes ambientais praticados por multinacionais e sua repressão internacional. Hipóteses possíveis; CONSIDERAÇÕES FINAIS; e BIBLIOGRAFIA


INTRODUÇÃO

Esta pesquisa comporta a temática direcionada francamente ao estudo da viabilidade de elaboração de uma Polícia comum no âmbito do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), já que o momento vivenciado pelo mundo contemporâneo reporta-nos a uma criminalidade transnacional que ultrapassa fronteiras.

Assim, é medida que urge o estudo em torno da possibilidade de se tornar cada vez mais vívida a hipótese de instituição de uma polícia comum mercosulina, à semelhança do que já ocorre com a Europol, na União Europeia.

A difusão, sem precedentes, dos delitos transnacionais estampa que já a longa data não mais servem para os anseios da sociedade moderna as metodologias ineficazes e tradicionais de repressão policial, patentemente obsoletas até mesmo para com o combate dos delitos nacionais, ocorridos nos estreitos limites do espaço interno de cada país.

A necessidade de uma polícia transnacional voltada para a realidade da América do Sul constitui-se em aspiração social que se afina com a realidade contemporânea.

Dessa arte, na primeira parte deste trabalho almeja-se tornar cristalina a sistemática de cooperação policial existente hoje no MERCOSUL, mormente delineando quais seriam aquelas adversidades contraproducentes que essa mesma sistemática vivencia perante o crime organizado internacional. Já na segunda e derradeira parte deste redigido, procurar-se-á verificar se é possível a criação de uma Polícia comum, bem como quais seriam, dessa criação aqui defendida, aqueles benefícios que adviriam dessa nova ordem em proveito do MERCOSUL.

No presente trabalho será verificada a gama de normas mercosulinas existentes sobre a temática de cooperação jurídico-penal e de cooperação policial, para se ter uma noção do que, efetivamente, existe sobre o tema no âmbito do Mercosul.

Será também verificado o que existe em termos de doutrina específica sobre a temática integracionista, mormente a latino-americana, e que possa servir de base para se confirmar ou se infirmar a hipótese deste trabalho.

Por fim, será efetivada a análise da União Europeia no que concerne especificamente à estrutura e finalidade da EUROPOL, suas simetrias e assimetrias com a realidade de cooperação policial existente no âmbito do MERCOSUL e verificação quanto à existência de indícios de que a nossa realidade possa evoluir a um estágio similar.


1. COOPERAÇÃO POLICIAL NO MERCOSUL

A globalização da economia criou uma nova ordem mundial em que os países precisaram-se unir, a fim de adquirir maior poder decisório perante outros blocos. Essa união não pôde deixar de lado, outrossim, questões afetas à segurança pública dos seus nacionais.

Mostra-se patente, outrossim, que da integração, não só a econômica, surge, como de ordinário, o impacto da cultura e dos costumes locais, donde, é claro, percebe-se que as desigualdades constituem-se em um "outro ponto importante [...] e causador de crises sistemáticas [...]" (ARAÚJO e TYBUSCH, 2007, p. 72).

Foi dessa forma que surgiu, na América do Sul, o MERCOSUL, em 26 de março de 1991, com a assinatura do Tratado de Assunção por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, consolidando-se a partir de 1º de janeiro de 1995, com a assinatura do Protocolo de Ouro Preto.

Os países que compõem esse conjunto, considerando-se a estapafúrdia onda ascendente de violência urbana e o crescente crime organizado à roda de delitos transnacionais [01], têm desenvolvido mecanismos de atenção especificamente a esse tipo de ilicitude.

No que se refere à cooperação jurídica entre os Estados-partes e Associados do bloco, "A Reunião de Ministros da Justiça do MERCOSUL" (RMJ) é o foro responsável por tratar das políticas comuns a seu respeito.

No que tange aos acordos de cooperação internacional em matéria penal, várias normas do MERCOSUL emanaram da RMJ [02].

Quanto às políticas comuns de segurança pública ou de inteligência entre os Estados-partes e Associados do MERCOSUL, o foro no qual se discutem tais temas é a "Reunião de Ministros do Interior" (RMI). Já com relação à integração policial entre os países, existe também uma considerável normativa emanada da RMI [03].

Esse complexo de normas de cooperação reflete o crescimento das funções dos Estados-membros no que se refere à segurança pública, o que tornou indispensável a emanação de normativas variadas, a fim de se verem protegidos os seus nacionais.

O desenvolvimento das funções do Estado, tão acelerado nos últimos anos, tornou insuficientes os meios tradicionais de proteção dos direitos dos governados frente à administração pública. Os instrumentos mais elementares, como as reclamações a representantes populares (em alguns países), os recursos administrativos, e até mesmo a mais sofisticada instituição da justiça administrativa, mostram-se insuficientes para uma devida e rápida proteção daqueles direitos, o que levou alguns juristas a um certo ceticismo, chegando um importante advogado especialista em direito administrativo espanhol, Jesús Gonzáles Pérez, a afirmar que há uma antinomia radical entre justiça e administração (LAGUARDIA, 2000, p. 11).

Assim, vê-se que há um complexo de normas entre as nações integrantes do bloco acerca da temática envolvendo a cooperação policial. No item próximo, procurar-se-á esclarecer o processo fático que culminou na adoção de mecanismos de cooperação policial no MERCOSUL.

1.1. Os mecanismos de cooperação policial existentes no âmbito do MERCOSUL

O Tratado de Assunção que criou o MERCOSUL teve por escopo criar um mercado aberto para a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, por meio da eliminação de direitos alfandegários e restrições não-tarifárias à circulação de mercadorias. Portanto, em princípio, o que uniu os países foram fatores precipuamente econômicos.

Todavia, outros fatores foram agregando-se perante a concepção econômica clássica que deu gênese à formação do bloco. Dentre eles, pode-se destacar a necessidade de se aprimorar a segurança pública dos seus nacionais, advinda do risco originado pela criminalidade que ascende além fronteiras.

O risco, "eventual perigo, mais ou menos previsível, inerente a uma situação ou a uma atividade", é indissociável da atividade humana. No entanto, o próprio risco evolui, sua percepção se modifica e o pedido de ampliação de sua cobertura torna-se mais importante. Consequentemente, o campo de aplicação da responsabilidade aumenta (VARELA, 2006, p. 29).

Atualmente, vale citar, os países buscam também a integração de seus cidadãos, a exemplo da União Europeia.

Pelo que se vê, o processo de integração do MERCOSUL aumentou a necessidade de cooperação e assistência na área de Segurança pública, considerando-se o fenômeno da criminalidade organizada transnacional. Desta forma, com os criminosos ultrapassando fronteiras, surgiu a necessidade de maior cooperação entre os países em matéria penal e também a uniformização de legislações, como forma de combate à fragilidade estatal frente à referida criminalidade crescente.

A cooperação policial existente hoje, não obstante, ainda não é capaz de obstar a ascendência dos macrodelitos [04].

Apesar dos esforços feitos, é óbvio que a situação de delinquência não foi controlada; ao contrário, é maior a cada dia a incerteza que abate os cidadãos. Poder-se-ia dizer que as agências governamentais encarregadas de velar pela ordem pública são inoperantes, o que conspira contra o sistema democrático. [...] (LAGUARDIA, 2000, p. 26.

Com o propósito de enfrentar a delinquência transnacional organizada com maior eficácia, os Ministros da Justiça e Interior dos países signatários do Tratado de Assunção, em Reunião realizada em Santa Maria/RS, em 22 de novembro de 1996, formalizaram uma declaração conjunta, sugerindo ao Conselho do Mercado Comum [05] (CMC) a convocação dos Ministros dos países-membros para firmarem planos de cooperação multilateral.

A Reunião de Ministros do Interior do MERCOSUL (RMI) foi criada a partir da Decisão 7/96, do Conselho de Mercado Comum, durante reunião realizada em Fortaleza/CE, em 17 de dezembro de 1996; e, atendeu ao disposto no art. 8º, inciso VI, do Protocolo de Ouro Preto, que estabeleceu: "(...) criar reuniões de ministros e pronunciar-se sobre acordos que sejam remetidos pelas mesmas" [06].

A propósito, sobre essa necessidade de representação de interesses coletivos de cada país-membro, muito bem já se manifestara a respeito Laguardia:

Dentro das novas instituições constitucionais e legais da transição democrática na América Latina, estabeleceu-se a criação do defensor do povo, com sua adaptação às circunstâncias de cada região.

Funcionou adequadamente em sua primeira etapa, colaborando principalmente na função de proteção e promoção dos direitos humanos reconhecidos nos catálogos constitucionais e nos tratados reconhecidos internacionalmente (LAGUARDIA, 2000, p. 30).

A primeira reunião oficial do grupo constituído por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai ocorreu na cidade de Assunção, Paraguai, em 30 de maio de 1997. Na oportunidade, ficou estabelecido como prioridade do grupo:

(...) avançar na cooperação e coordenação das políticas e tarefas relativas à segurança e à harmonização das legislações em áreas pertinentes, a fim de aprofundar o processo de integração e dar segurança aos habitantes dos países que compõem o MERCOSUL [07].

Percebe-se que os países que compõem o bloco deixaram de calcarem-se com quase exclusividade na sorte para a solução das questões de segurança pública continental, passando a jungirem esforços coesos e desígnios uníssonos. Grotius já se havia manifestado sobre esse jogo perigoso de se lançar o futuro de uma nação à sorte, quando outrora tecia comentários sobre o êxito da guerra:

O êxito da guerra não pode sempre licitamente ser submetido a chance da sorte, [...]. [...]. Entretanto, se ao final das contas, aquele que for envolvido por uma guerra injusta for de tal maneira inferior que não possa alimentar qualquer esperança de resistir, parece que possa optar pelo caminho da sorte, a fim de escapar de um perigo certo através de um perigo incerto. Este, de fato, é, de dois males, o menor (GROTIUS, 2004, p. 1403).

Durante a VI RMI realizada em Montevidéu, em 17 de novembro de 1999, foi aprovado o Plano Geral de Cooperação e Coordenação Recíproca para a Segurança Regional (Acordos 13 e 14/99), assinado pelos países do MERCOSUL, e ratificado na XVII Reunião do CMC, em Montevidéu, em 7 de dezembro de 1999. O plano tem sido objeto de várias adequações, a exemplo dos acordos firmados no ano 2000, referentes à complementação em matéria de tráfico de menores, delitos econômico-financeiros, ilícitos ambientais, e tráfico ilícito de materiais nucleares e radioativos; e a criação, no mesmo ano, do Centro de Coordenação e Capacitação Policial do MERCOSUL [08].

Assim, viu-se fortalecido o compromisso dos países-membros, frente aos riscos da criminalidade crescente, em estancar, o quanto possível, sua expansão, em perfeita comunhão de esforços e conjugação de vontades, deixando-se de lado, assim, a atuação individual frente aos riscos advindos da criminalidade além fronteiras.

O pensamento liberal oriundo da Revolução queria, a todo custo, que cada indivíduo enfrentasse livremente os altos e baixos de sua própria existência. Pregava a noção de previdência e condenava a dependência. A noção de responsabilidade, em particular, como era entendida, constituía obstáculo a uma socialização ampliada dos riscos [...] (VARELA, 2006, p. 20).

Vale mencionar que o plano supracitado tem como objetivo "optimizar los niveles de seguridad comunitaria ante los hechos delictivos en general y en particular los que trascienden las fronteras, con el fin de lograr el desarrollo sustentable de la región" [09].

Por meio, pois, de uma sucessividade de reuniões ocorridas regularmente, tratando-se dos mais variados temas atinentes à prevenção e à repressão da criminalidade transnacional no MERCOSUL, vimos os países envolvidos caminhando ao perfeito encontro daquelas normas internacionais gerais já existentes e da mesma natureza cuja razão de existir já estava a serviço de várias nações. Cite-se, como exemplo, a normativa relativa às denúncias de violações de direitos civis:

[...] na esfera internacional, [...] as denúncias a violações de direitos civis são prontamente investigados pelos órgãos internacionais, como as comissões e tribunais de direitos humanos, que exigem a cessação da ilegalidade, estabelecendo, quando pertinente, a reparação dos danos. O Estado que não acatar essa determinação pode ser censurado por meio de uma resolução que recebe ampla publicidade (LEWANDOWSKI, 1996, p. 238).

No ano 2000, durante a VII RMI, realizada em Buenos Aires, por meio do Acordo 11/00, assinado pelos Estados-partes, foi criado, finalmente, o CENTRO DE COORDENAÇÃO E CAPACITAÇÃO POLICIAL DO MERCOSUL (CCCP) [10].

Da formação do CCCP, pois, exsurgiu uma nova realidade, mais adequada à conjuntura hodierna, distinta do sistema pretérito e preestabelecido, já tão impotente frente à complexa criminalidade que ascende vertiginosamente.

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[...], na pós-modernidade, subsiste um elevado grau de complexidade e pluralidade nas relações sociais que impedem de se recorrer a uma forma preestabelecida para resolução dos conflitos, a solução parece ser combinar essas relações sociais de maneira a encontrar uma decisão mais adequada (AREND e FROEHLICH, 2007, p. 134).

Já na XVIII CMC, realizada em Buenos Aires em 29 de junho de 2000, por meio da Decisão 16/00, dos Estados-partes, ratificou-se a criação do CCCP. Por meio do acordo 12/00 da RMI e Decisão 17/00 do CMC, Chile e Bolívia aderiram e aprovaram a criação do Centro.

Na VIII RMI, realizada no Rio de Janeiro em 10 de novembro de 2000, por meio do Acordo 19/00, aprovou-se o Regulamento do Centro. O ato foi aprovado na XIX CMC, realizada em Florianópolis, em 14 de dezembro de 2000, pela Decisão 42/00.

O Centro de Coordenação e Capacitação Policial do MERCOSUL é um órgão de trabalho formado pelas áreas educativas dependentes das forças de segurança e policiais dos países que integram o MERCOSUL. Tem como objetivo a coordenação da capacitação e atualização das forças de segurança e policiais, com a finalidade de neutralizar as novas e sofisticadas formas da ação delitiva que tem adquirido uma crescente dimensão transnacional e requer a adoção de processos educativos dinâmicos para a capacitação dos recursos humanos que garantam a segurança pública, baseando-se na difusão de novos conhecimentos científicos e tecnológicos.

Essa linha de raciocínio do CCCP encontra consonância com o que já afirmara Menezes:

O Direito Internacional é transformado pelo processo de globalização que oferece um leque de temas a serem regulados e o obriga, de alguma forma, a possibilitar mecanismos que deem uma resposta à sociedade que se desenha e aos temas que se abrem em um horizonte ainda não totalmente descoberto (MENEZES, 2005, p. 111).

O Centro de Coordenação e Capacitação Policial do MERCOSUL tem como prioridades o levantamento de capacidades e necessidades em matéria educativa das instituições competentes em segurança pública e a elaboração de uma base de dados com essas capacidades.

Essa motivação acadêmica, interativa entre os países-membros do MERCOSUL, tão crucial em um processo de integração, já havia sido prevista por Casella, quando apontara como o MERCOSUL poderia ensinar-nos a evoluir junto ao Direito Internacional, tornando-se este uma realidade inafastável:

Do ponto de vista de um profissional do direito, enfatizando o conteúdo e a necessidade do direito internacional, o momento atual vivido pelo MERCOSUL nos coloca excelente oportunidade de absorver e consolidar patamar mais elevado de atuação internacional, de vivência do direito e da vida internacional de forma diversa do que foi feito até hoje, de modo incipiente, entre nós. Pode o MERCOSUL nos ensinar a fazer do direito internacional uma realidade e a partir daí podemos avançar nesse sentido, para poder viver de modo mais completo uma suposta vocação e conteúdo internacional (CASELLA, 1996, p. 54).

Por fim, não obstante, é importante que se pense na construção, para o futuro, de uma estrutura com profissionais dispondo de competência e especialização próprias, ou seja, de uma Polícia comum. Certamente, isso seria algo muito mais além do que a simples, mas sem dúvida bem vinda, troca de cooperação hoje existente entre as polícias do MERCOSUL. A sistemática de hoje, embora muito melhor do que um vácuo normativo e operacional, ainda é insuficiente para o enfrentamento da grande gama de ilicitudes transnacionais, como se verá logo a seguir.

1.2 Delitos transnacionais versus a sistemática atual

É importante frisar, neste momento, os contratempos, as dificuldades, enfim, toda a complexidade de obstáculos que impedem o pleno sucesso das forças policias no atual estágio de evolução do MERCOSUL, mormente frente àqueles delitos que ultrapassam as fronteiras nacionais.

Assim, elencar-se-ão alguns delitos além fronteiras neste trabalho, tais como a extorsão mediante sequestro, o narcotráfico, o terrorismo internacional, o tráfico de armas, os crimes ambientais, a biopirataria, a lavagem de dinheiro e a pedofilia praticada pela internet, a fim de destacar as suas potencialidades nefastas às populações diretamente envolvidas, bem como se estamparão as dificuldades hoje enfrentadas pelas polícias nacionais tais como elas se apresentam hodiernamente, sem aquela junção fática e jurídica tão almejada neste trabalho a ponto de ensejar uma Polícia comum.

Como já se disse antes, e é sempre bom lembrar, crimes transnacionais são aqueles que ultrapassam os limites da nacionalidade, sendo que eles foram imensamente beneficiados com o processo de globalização. No Brasil, os legisladores preferiram adotar uma classificação bipartida ou dicotômica a respeito da definição de infrações penais, ou seja, a nossa legislação pátria faz uma diferenciação entre crimes e contravenções, sendo o delito sinônimo de crime.

Cumprido esclarecimento supra, vale dizer que os povos latino-americanos não mais aceitam, no estágio atual da evolução da consciência humana, discursos retóricos e vazios de seus governantes, anunciando soluções que não ultrapassam o vento dos verbos que são lançados pelos seus lábios. Urge que sobrevenha sistemática real de união policial no MERCOSUL. Aliás, sobre essa insistente prática de se resolver tudo em discursos vazios na América Latina já foi muito bem esclarecida por Paoli:

[...] a tentativa de dizer que finalmente eu sou moderno, eu cheguei, o país vai entrar no concerto das nações de Primeiro Mundo e, finalmente, o atraso que tanto nos envergonha, com a pobreza, com as desigualdades, terá uma outra forma de controle, uma outra forma de transformação interna e, enfim, todo potencial desses países e desse continente poderá se explicitar. Isso não ocorre somente com os governantes brasileiros, mas acontece também com os governantes dos países da América Latina. É alguma coisa que faz parte do discurso da consciência infeliz que nós temos, em geral, diante dos países onde essa desigualdade é menos selvagem e onde algumas figuras da cidadania existem e funcionam de fato. Mas isso é uma nota marginal (PAOLI, 1996, p. 200).

Pois, entre os dias 23 a 27 de abril de 2007, em Brasília, mais precisamente nas dependências da Academia Nacional de Polícia, por intermédio do Centro de Coordenação e Capacitação Policial do MERCOSUL (CCCP), realizou-se o I Seminário Anti-sequestro para Policiais do MERCOSUL e Países Associados.

Dentre outros tópicos importantes para serem estudados pelo CCCP, a escolha da temática desse curso foi muito oportuna, tendo em vista que o delito de extorsão mediante sequestro pode ser considerado como um dos mais lucrativos dentro das ações das organizações criminosas que atuam na América Latina.

O tema também é relevante porque há muito tempo esse crime não mais respeita fronteiras, especialmente na América Latina. Estrangeiros procurados pela Justiça em suas regiões de origem, pela execução desse crime, já foram presos ou identificados em outros países pela prática do mesmo delito. Em nosso continente, entre países fronteiriços, já ocorreu do crime haver sido praticado em um território e o cativeiro estabelecido em outro. Há casos também em que a vítima foi sequestrada em um país e libertada em outro.

Falando-se especificamente em fatos envolvendo o Brasil, por exemplo, cabe salientar que no ano de 1987, na cidade de São Paulo, ocorreu a libertação do coronel do Exército do Chile, Carlos Carreño Barriga, que havia sido sequestrado em seu país.

Ainda em São Paulo, respectivamente nos anos de 1989 e 2001, ocorreram os sequestros do empresário Abílio Diniz e do publicitário Washington Olivetto, que tiveram a participação efetiva de vários criminosos estrangeiros (argentinos, chilenos, colombianos e canadenses), todos ligados a grupos de guerrilhas de esquerda de países da América Latina [11]. Atualmente, alguns sequestros cometidos no Brasil são negociados por meio de ligações telefônicas e postagens de correspondências originadas de outros países.

Esses e outros fatos bem demonstram ser necessária a adoção de medidas repressivas comuns no MERCOSUL e países associados, visando a minimizar e a desencorajar essa internacionalização criminal.

Alguns países, todavia, têm certas peculiaridades com relação às características dos delitos de sequestros praticados em seus territórios como, por exemplo, a predominância de cativeiros selváticos e não urbanos, ou casos em que a extorsão é dirigida para a empresa multinacional onde o refém trabalha e não para uma pessoa de sua família ou, ainda, que o resgate exigido é em quantia de drogas e não em dinheiro (os chamados narco-sequestros).

É interessante, neste ponto, falando-se sobre narcotráfico, em especial quando este conferiu nascimento ao narco-sequestro, lembrar o que Rodrigues mencionou quanto à Lei Seca ocorrida nos Estados Unidos. Realmente, quando o Estado tenciona obstar severamente um tipo de ilicitude ele pode acabar gerando inúmeras outras violências a partir de então, razão pela qual, em se falando de MERCOSUL e, em particular, de Polícia comum, nada mais plausível que dessa esperada unificação surjam sistemáticas legais e de atuação que impeçam essa ordem reflexa de violência advinda da repressão-matriz. Em palavras mais singelas, que a repressão continental contra o narcotráfico que se desenvolve além fronteiras, por exemplo, caminhe junto com técnicas de repressão ao narco-sequestro internacional.

A Lei Seca, num movimento complementar, criou oficialmente o crime organizado nos Estados Unidos. O "guarda-chuva legal", que estaria abrigando a nação contra os males do vício, protegia também o livre desenvolvimento de atividades criminosas. A ilegalidade tornou possível o fortalecimento e a prosperidade das máfias. [...] (RODRIGUES, 2004, p. 53).

Outro ponto importante nessa gama de dificuldades vivenciadas pelo Estado no combate à criminalidade transnacional é a baixa densidade demográfica e as longas distâncias de nossas fronteiras, associadas à precariedade do sistema de transportes terrestres, o que condiciona o uso das hidrovias e do transporte aéreo como principais alternativas de acesso. Estas características facilitam a prática de ilícitos transnacionais e crimes conexos, além de possibilitar a presença de grupos com objetivos contrários aos interesses nacionais.

Nessa linha de raciocínio, o Estado, por seus órgãos, bem como as entidades internacionais, têm de caminhar pela tipificação de delitos transnacionais ambientais e pela criação imediata de Tribunais ligados a organismos internacionais capazes de impor sanções penais privativas de liberdade e pecuniárias, administrativas e cíveis àqueles que violam, sem qualquer sentimento, a natureza e o meio ambiente [12].

A prevalência dos novos crimes transcende os limites territoriais dos Estados Nacionais, fazendo com que eles passem a ser também referidos como transnacionais, já que algumas organizações criminais modernas, tais como traficantes de entorpecentes, traficantes de armas e sequestradores, ao desenvolverem hoje suas atividades, não respeitam divisas ou fronteiras nacionais, demonstrando um considerável poder de articulação e planejamento, exibidos com uma sofisticação e arrojo nunca antes observados.

Nesse diapasão, verifica-se também, por outro lado, uma baixa efetividade dos órgãos policiais em sua capacidade de controle e supressão do crime organizado. Talvez isso aconteça em função da premente necessidade de ajuste da legislação criminal vigente de cada país, hoje em franco descompasso com modalidades delitivas prevalentes em plena "Era da Informação", sem falar na carência de uma mais robusta e eficaz legislação internacional dessa mesma natureza, com órgãos policiais autônomos e específicos para o trato dos assuntos por ela regulamentados, sem se olvidar, é claro, de tribunais internacionais da mesma forma a ela pertinentes.

E por falar na "Era da Informação" [13], não menos importante é destacar-se neste capítulo a propagação, além fronteiras, da pedofilia pela internet.

A pedofilia [14] motiva, naturalmente, uma grande perturbação moral na sociedade, em decorrência da indignação, aversão ou repulsa que exsurgem do íntimo de qualquer ser humano perante temática de tão flagrante barbárie. Todavia, é de se notar, o estudante não encontrará, exemplificativamente, na legislação penal brasileira repressiva, expressão direta a esse fenômeno, mas, isto sim, a tipos que com ele se relacionam. Com efeito, a pedofilia é termo designativo à conduta desconsertada que encontra amplo debate em nossos anais da psicologia e da psiquiatria [15].

Mas o que mais deve chamar a atenção neste trabalho é a dificuldade probatória que advém da propagação da ilicitude pela internet. Efetivamente, como agravante fastidioso que assola não só os menores de idade vítimas de crimes sexuais, mas também à polícia no seu essencial e precípuo papel tendente a elucidar a autoria e comprovar a materialidade de desvaliosos atos da espécie, estampa-se que essa ilicitude ocorre ordinariamente às escuras, longe dos olhos de testemunhas, onde, no mais das vezes, o único indício que se tem é a palavra da própria vítima [16].

Diz-se, aliás, que é um verdadeiro truísmo afirmar que a palavra da vítima constitui-se em um elemento de suma importância na formação da prova em crimes contra os costumes, já que é elemento natural da conduta ser esta levada a efeito longe dos olhos de terceiros.

Com o advento da internet, essa ilicitude ganhou, fulminantemente, repercussão além de qualquer fronteira, atravessando países por meio de fotos e vídeos lançados na rede mundial de computadores, quer em sítios determinados, quer por meio de mensagens eletrônicas. Assim, obviamente, a junção de forças de vários países em torno de uma Polícia comum, com treinamento próprio e competências que ultrapassariam os limites fronteiriços entre os países pareceria ser a medida mais viável diante da problemática aventada.

Fato alarmante, como se pode perceber, é o fenômeno que ocorre via internet, onde imagens e vídeos, como se disse acima, são lançados na rede mundial de computadores divulgando cenas de sexo explícito entre adultos e crianças.

Há, indubitavelmente, uma infinidade de programas de compartilhamento de arquivos disponíveis gratuitamente na rede mundial de computadores [17].

A problemática toda consiste no fato de que os programas de compartilhamento de arquivo, simplesmente, compartilham, rápida e gratuitamente, o vídeo e a imagem que o usuário bem entender em divulgar entre o seu computador e quaisquer outros computadores espalhados pelo mundo, desde que conectados à internet e com algum programa de compartilhamento em funcionamento. Caso deseje, por exemplo, que o seu vídeo seja capturado por um computador de um usuário que jamais desejaria assistir a um vídeo de pornografia infantil, basta nomear o referido arquivo de vídeo com um outro nome qualquer. Desta forma, o receptador inocente acreditará estar baixando para o seu computador um vídeo lícito, como um determinado filme de humor, por exemplo, mas, na verdade, tratar-se-á de uma filmagem doentia envolvendo o estupro ou o atentado violento de uma criança de tenra idade. O pior de tudo, ainda, é o fato de que, ao deixar o seu computador ligado e baixando referido vídeo, sem imaginação acerca do seu verdadeiro conteúdo, automaticamente, e isso é o natural entre os programas de compartilhamento de arquivo, outros usuários do mundo todo já estarão também capturando automaticamente do computador desta inocente pessoa o referido vídeo, em uma ininterrupta relação de download [18] e upload [19].

Em assim sendo, percebe-se que uma pessoa inocente, sem imaginar, recebeu um vídeo criminoso e repassou-o a incontáveis outras pessoas, o que dificulta sobremaneira a sua responsabilização criminal. Claro, e isto é certo, a exemplificação supradita referiu-se a um arquivo com nomenclatura simulada e, deduz-se, assim que identificado fosse seria deletado incontinenti pelo usuário surpreendido.

Todavia, é preciso restar claro que o compartilhamento de arquivo por meio dos programas alhures referidos pode ocorrer de tal forma que, mesmo estando os vídeos ou imagens denominados com a expressão "pornografia infantil", ainda assim a identificação dos seus usuários e propagadores criminosos é problemática, dada a celeridade com que as trocas ocorrem e em decorrência do cuidado com que os delinquentes costumam levar a efeito seus comportamentos criminosos, separando em seus computadores, após as propagações, aqueles arquivos ilícitos compartilhados, removendo-os das pastas de download e de upload para uma pasta à parte daquelas próprias do programa de compartilhamento.

Assim, estampam-se algumas dificuldades enfrentadas pelas polícias nacionais na elucidação de crimes desta espécie, tanto naquelas hipóteses em que ninguém pôde testemunhar a conduta, porquanto efetivada longe dos olhos de terceiros, bem como, e isto é tão preocupante quanto, naquelas hipóteses onde os doentios autores de tamanha ilicitude resolveram, ousadamente, propagar ao mundo inteiro, por meio da rede mundial de computadores, as cenas repulsivas de suas atrozes condutas.

Essa fragilidade em que os nacionais, de um ou de outro país, veem-se envolvidos, decorrente da fragilidade do sistema de cada nação na contenção de condutas tão repulsivas quanto à pedofilia, reporta ao no que Boson já dissera quando anunciou que "O Estado deve dar aos estrangeiros a mesma proteção devida a seus nacionais; mas os estrangeiros, assim como aos nacionais, estão submetidos e devem aceitar todas as vicissitudes do País, [...]. [...]" (BOSON, 1994, p. 287).

A repressão mundial frente à pedofilia deve-se constituir em um verdadeiro Direito Humano posto à disposição de qualquer cidadão, independentemente as fronteiras nacionais que o cercam. BRAUN, ao falar sobre a natureza e o alcance dos Direitos Humanos, aliás, assevera que referida classe de direitos já é ínsita do homem. Assim, parece certo que não é uma faculdade de cada Estado apenas cogitar acerca da criação de meios e otimização das suas polícias, a fim de garanti-los, mas referido agir é mesmo um dever imediato seu:

Os direitos humanos não são concedidos ao homem, pois o homem nasce com tais direitos, eles vêm da própria dignidade humana. O homem deve ser o objetivo principal do Direito. Seu Bem-estar, sua integridade e sua dignidade devem ser resguardadas sempre pelo Direito (BRAUN, 2002, p. 129).

Uma das características adversas deste novo cenário imposto pela transnacionalização do crime é o fato de que a legislação e prática internacionais atuais não disponibilizam instrumentos ágeis e velozes de acesso das organizações policiais nacionais às informações necessárias ao combate dos crimes transnacionais.

O terrorismo, o narcotráfico, o contrabando, o estelionato cibernético, a pirataria, e até mesmo sua mais nova expressão, qual seja, a biopirataria, são desafios constantes às polícias nas nações.

Acerca da biopirataria, por sua vez, é importante esclarecer que, além do aspecto de contrabando de diversas formas de vida da flora e da fauna, abarca ela a apropriação e a monopolização de conhecimentos das populações tradicionais no que diz respeito à utilização dos mais diversos recursos naturais existentes em nosso meio ambiente. Dessa forma, referidas comunidades acabam perdendo o domínio sobre os mais diversos recursos essenciais à sua sobrevivência cuja soberania sempre coube ao coletivo.

Como se tem observado da literatura jurídico-nacional, a biopirataria ainda é tema por demais novel. A problemática que exsurge deste assunto, pois, exige, excitada pela imensa proliferação e facilitação de mecanismos tais como o registro de marcas [20] e de patentes [21] no âmbito internacional, uma imediata e célere atuação estatal em torno da imprescindível repressão relativa a quaisquer usurpações à roda desta matéria.

Efetivamente, nos dias de hoje, com o advento da globalização e da proliferação de formas de ilicitude, como a citada biopirataria, um dos maiores desafios para os Estados é mesmo o combate a esses crimes transnacionais. As ações delituosas assumiram novas formas que transcendem os limites territoriais de um país em particular.

As fronteiras físicas entre os Estados deixaram de ser barreiras efetivas contra a prática de crimes. Assim, a efetiva prevenção e a persecução de crimes transnacionais requerem, antes de qualquer coisa, o esforço conjunto das nações, em torno de uma Polícia comum.

Sobre a cooperação policial já existente no MERCOSUL, efetivamente cumpre salientar que, além de sequer contar ela com uma estrutura física para os seus agentes, os quais, diga-se de passagem, não estão subordinados a uma hierarquia única ou plano de carreira próprio, referido sistema de cooperação policial deve evoluir e conceder margem, incontinenti, à estruturação de uma Polícia comum no âmbito da América Latina, à semelhança do que já ocorre com a EUROPOL.

Sem dúvida alguma, essa experiência policial na Europa adveio diante da insuficiência de atendimento perpetrado pela INTERPOL junto aos macrodelitos que atingem o mundo. Assim, com o escopo de atuar especificamente na Europa, surgiu a Europol, como se fosse uma Interpol concentrada em uma região específica. Referida sistemática, sem dúvida, urge ser implementada na América do Sul.

Por outro lado, a falta de um Direito comum e a existência de um emaranhado de acordos em matéria de cooperação policial no MERCOSUL demonstra a fragilidade das nações que compõem o Bloco frente aos crimes transnacionais, já que "é importante ressaltar que se torna indispensável o objetivo de buscarem-se elementos capazes de se obter uma harmonização das legislações dos quatro países (Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai), que compõem o MERCOSUL, [...]" (COELHO, 1996, p. 63).

Outra problemática, ainda, é a lavagem de dinheiro que assola os países de qualquer canto do mundo. Sem dúvida, o Direito Penal foi atingido em cheio pela globalização, em vários aspectos, forçando, inclusive, o surgimento de legislações específicas a respeito do tema citado. No Brasil, a Lei 9.613/98 [22] vem seguindo o padrão internacional de combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado. Todavia, insuficiente, porquanto é norma apenas de cunho interno, sem previsão de interação patente e coesa com as demais nações. Dispõe expressamente que o julgamento caberá à Justiça Federal e cria, no seu art. 14, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras [23]. Frise-se que este constitui-se em Órgão interno e voltado, obviamente, para os problemas interiores do país. Vê-se, assim, que "a sociedade como um todo modernizou-se. Novas formas, mas velhos problemas [...]: [...]" (SANDRONI, 1996, p. 196).

É premente que vejamos a necessidade de interação cabal entre os países no combate à criminalidade internacional, jungindo-se desígnios que sejam verdadeiramente uníssonos, que evoluam harmonicamente, não mais se mostrando hábeis padrões de legislação arcaicos e, muitas vezes, antagônicos entre si. Consoante Grau, e muito bem lembrado por ele:

Na relação de intercâmbio, [...] estamos diante de uma oposição de vontades que estão temporariamente harmonizadas. [...] Além das relações de intercâmbio existem outras que são as relações de comunhão de escopo, em que as vontades não estão em oposição, mas caminham paralelas. [...] (GRAU, 1996, p. 225).

Seguindo a linha de raciocínio presente, não se poderia deixar de tecerem-se comentários também atinentes ao tráfico internacional de drogas.

A norma interna referente ao assunto adentrou, na data de 23 de agosto de 2006, no cenário jurídico nacional. A Lei nº11.343 [24] institui uma nova sistemática repressiva concernente às ilicitudes envolvendo substâncias estupefacientes, considerando-se estas, consoante o parágrafo único do art. 1º da referida Lei em estudo, aquelas substâncias ou produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União. Acabaram sendo revogadas a Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, a qual regeu a atuação policial nacional pelo longo interstício temporal de 30 anos, bem como a recente Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002 [25].

Felizmente, pelo menos em parte, e na esteira do que ensina JOBIM, quando afirma que aos países são impostas determinadas lições de casa frente à internacionalização do ilícito, a legislação agora em comento acenou para uma nova conjugação de esforços entre as nações, consoante o seu art. 65 [26] que determina a "cooperação internacional", todavia distante da tão almejada e aqui defendida uniformização policial. Aliás, para que haja uma íntima e verdadeira comunhão entre os labores policiais de Estados distintos, urge que haja previsão sobre isso não só em suas leis ordinárias, mas em seus textos constitucionais. Assim, manifesta-se o celebrado doutrinador supra a este respeito:

[...], o processo de integração, que caminha aceleradamente no que diz respeito não só à licitude, mas também à ilicitude, começa a impor determinadas situações domésticas. E aí vem o problema dos Estados, de situações supranacionais e os problemas relativos às chamadas cláusulas de supranacionalidade que a Constituição não tem. (JOBIM, 1996, p. 264).

Pois, como bem consta no artigo antes referido, previram-se, basicamente, intercâmbios, muito, mas muito longe da formação de uma entidade comum, de uma Polícia comum, a atuar frente à ilicitude internacional, a qual também poderíamos, por que não, intitulá-la de ilicitude comum, comum a todos os países.

Esse aspecto comum que os macrodelitos abarcam hoje em dia, ou seja, de serem comuns a mais de um país, desenvolvendo-se, em um mesmo desdobramento de conduta, por mais de um país, também abarca a conjugação ou interação com outras figuras da mesma forma ilícitas. Assim, pode-se afirmar que o tráfico ilícito de entorpecentes é comum para com a lavagem de dinheiro, já que os lucros indevidos do primeiro procuram um aspecto de legitimidade ao serem levados e lavados em outros países.

Nessa concepção, as normas de cada país tendentes a combater os macrodelitos devem romper com a propensão de conservação cega da ordem estabelecida, voltando-se para interação e uniformização com legislações de países vizinhos, como aqueles que compõem o bloco, em verdade formando-se um Direito comum, com norma única, órgãos de aplicação específicos (como a desejada Polícia comum), e tribunais competentes para o julgamento específico desses casos, a fim de que se ponha termo à formação de um mundo à parte em cada país, separado do todo que o cerca.

Para que a Ciência do Direito possa permitir ao Direito conservar-se, transformando-se, não pode ele fechar-se sobre si mesmo, tratando tão-só do "puramente jurídico", em nome de uma falsa cientificidade que, no fundo, o que quer é a conservação cega da ordem estabelecida. Essa "ciência", assim construída, pretendendo ser asséptica, responde a interesses que se ocultam por não ousarem identificar-se. Tal modo de proceder cria um mundo à parte, o mundo dos juristas, que esquece a sábia advertência de Ihering que, no século XIX, depois de ter trafegado pelo formalismo jurídico, superou-o. Pôs-lhe, então, à mostra a inconsistência, proclamando a incontestável verdade de que "a vida não deve se dobrar aos princípios; são os princípios que devem modelar-se à vida" (AZEVEDO, 2004, p. 48).

É claro que, quando se fala neste trabalho em Polícia comum, quer se falar sobre uma instituição policial específica e com atuação além fronteiras, em termos de MERCOSUL e com referência a determinados delitos. Cada país, não obstante, deve conservar suas próprias e peculiares polícias, pois compete a cada governo gerenciar a segurança pública peculiar de seus territórios. Ocorre que, quando se fala em macrodelitos, está-se falando em criminalidade que ultrapassa os referidos limites territoriais de cada país, razão da tese aqui defendida que lança a ideia de criação de uma instituição comum nos moldes similares ao da Europol.

A bem da verdade, ainda aproveitando o ensejo da temática envolvendo o tráfico internacional ilícito de entorpecentes, como se disse antes, é-nos cediço que uma atividade está intimamente ligada à outra, pois os grandes traficantes internacionais de drogas procuram na lavagem de capitais encobrir o dinheiro sujo oriundo do comércio clandestino de entorpecentes. Assim, o tráfico internacional está intimamente ligado à lavagem de dinheiro à nível internacional, e assim por diante.

Os países tentam se modernizar para que possam satisfatoriamente combater o tráfico internacional de drogas, visto que os traficantes já não se utilizam dos "velhos meios" de outrora. Dessa arte, aquela concepção puramente econômica de integração preconizada outrora por Bertogilo [27] perdeu, há muito, seu valor, diante do avanço das ilicitudes transnacionais e da necessidade de integração, por exemplo, também a nível de segurança pública entre os países.

Nessa linha de raciocínio, as convicções naturais ou princípios do senso comum, tais como a crença num mundo externo independente, na lição de Chomsky, vê-se despida de razão:

Em seu estudo da tradição escocesa, George Davie identificou como tema central dela o reconhecimento do papel fundamental das "crenças naturais ou princípios do senso comum, tais como a crença num mundo externo independente, a crença na causalidade, a crença em padrões ideais e a crença no eu da consciência moral como distinto do restante do indivíduo". Às vezes se considera que esses princípios têm um caráter regulador; embora nunca sejam plenamente justificados, eles proporcionam as bases do pensamento e da concepção. Houve quem dissesse que contêm "um componente irredutível de mistério", como assinalou Davie, enquanto outros tiveram a esperança de lhes dar uma base racional. No que diz respeito a essa questão, o júri ainda está deliberando (CHOMSKY, 2003, p. 437).

Ainda, por oportuno, falando-se sobre a preservação do meio ambiente frente à problemática referente aos delitos transnacionais, aí está uma faceta importantíssima do fenômeno da globalização. As nações do mundo unem-se num esforço comum para evitar o colapso do meio ambiente o que acarretaria um perigoso e possivelmente irreversível declínio da qualidade de vida no planeta.

Nesta tarefa, suma importância adquirem as Organizações não-governamentais, que agem além das fronteiras de cada Estado, desenvolvendo, pari passu, um trabalho tendente a preservar o meio ambiente na terra, como, por exemplo, o Greenpeace.

O desenvolvimento humano, o incremento das tecnologias, o aumento demográfico, dentre outros fatores levaram a uma degradação do meio ambiente, forçando um movimento mundial pela sua preservação.

A preocupação com o meio ambiente, a bem da verdade, não é de hoje, apesar de ter aumentado sensivelmente nos dias atuais. Com efeito, já no ano de 1972 foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, que resultou na Declaração de Estocolmo, que trazia 26 princípios referentes à proteção ambiental. Podemos dizer que começava ali a preocupação com o futuro ambiental do planeta.

Nessa linha de conscientização ambiental assumida pelos Estados, paralelamente também se inseriram organismos outros, como o Greempeace antes citado, muitas vezes promovendo manifestações nem tão pacíficas quanto seria o ideal. Mas sobre isso, Marés, aliás, com muita propriedade, já nos esclareceu que a inspiração do Estado contemporâneo aflorou-se nem sempre pacificamente e o sistema jurídico que se pretendia já acenava, audaciosamente, para o universalismo dos bens da vida. Dentre esses bens, o meio ambiente, certamente, hoje é primacial a qualquer Estado.

O sonho que inspirou o Estado contemporâneo nasceu na Europa e foi sendo por todo o mundo, não sem guerra, revoluções e imposições, tornando-se, em alguns lugares e para alguns povos, um longo pesadelo. Sua elaboração teórica e luta prática que marcaram os séculos XVI, XVII e XVIII na Europa mudaram os conceitos de ciência, religião e política. Copérnico, Lutero e Hobbes são apenas três dos nomes que apresentaram teorias e propostas de inovação ao mundo a que se convencionou chamar de civilizado, em oposição ao mundo natural. Pode-se agregar outros teóricos, Locke, Morus, Rosseaus, Bodin, Calvino, Galileu, Montesquieu, Bartolomé de Las Casas, e uma interminável lista completando um pensamento que teria como resultado a criação do Estado contemporâneo assentado num sistema jurídico que pretendia ter regras claras e de execução pronta, além de uma audaciosa e arrogante proposta de universalismo (MARÉS, 2003, p. 105).

Dessa arte, perante as exposições supra, percebe-se que o nível de cooperação policial existente no MERCOSUL é, indubitavelmente, ainda deveras incipiente, muitas vezes inexistente mesmo, mormente frente aos crimes transnacionais. Todavia, é certo que ele existe ao menos em alguns aspectos, o que torna não tão difícil assim uma visão otimista, ainda que ousada para este momento da história do MERCOSUL, concernente à implementação de uma futura Polícia comum, como se verificará no capítulo seguinte.

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Sobre o autor
Roger Spode Brutti

Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito pela Universidad Del Museo Social Argentino (UMSA) de Buenos Aires/Ar. Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Universidade Franciscana do Brasil (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA). Graduado em Direito pela Universidade de Cruz Alta/RS (UNICRUZ). Professor Designado de Direito Constitucional, Direito Processual Penal e Direito Penal da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (ACADEPOL/RS). Membro do Conselho Editorial da Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. especializando em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), professor de Processo Penal da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (ACADEPOL/RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRUTTI, Roger Spode. Da cooperação policial à polícia comum no Mercosul: delitos transnacionais como gênese. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3034, 22 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20260. Acesso em: 21 nov. 2024.

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