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Contributos para compreender a fronteira entre o dolo eventual e a culpa consciente

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27/10/2011 às 13:08
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Jurisprudência. Análise prática de aplicação e diferenciação do dolo eventual e da culpa consciente.

O primeiro exemplo, para analisar os casos concretos entre dolo eventual e culpa consciente, vem do julgado do Superior Tribunal Militar (embargos (FO) nº 2009.01.050668-7 - DF, Relator Ministro Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, de 15/10/2008). Segundo o julgado,

"o acusado, por erro escusável, tomou o armamento do Sd. Avarez, que estava municiado, pensando tratar-se do seu, que não se encontrava municiado, pois estava entrando no quarto de hora e ainda não havia recebido a munição para alimentar o fuzil. A partir daí, acreditando estar com a própria arma e sem munição, fez a infeliz brincadeira que lesionou o amigo militar.

Certo é que o embargado não quis e nem assumiu a eventualidade do resultado lesivo, como quer o Ministério Público Militar, haja vista que, embora existisse a previsibilidade objetiva do armamento estar municiado, jamais imaginou que não se tratasse do seu fuzil e que a arma estivesse municiada, sendo capaz de provocar lesão em seu camarada de caserna.

Trata, nitidamente, o presente caso concreto, de hipótese de culpa consciente. Nela, diversamente do dolo eventual, o agente tem consciência do risco, as acredita piamente que não ocorrerá o resultado. No dolo eventual, por outro lado, o agente tem conhecimento do risco e assente com a possibilidade de ocorrência deste".

Nas ocorrências de trânsito surge a dificuldade de reproduzir o momento do fato, com suas reais circunstâncias. Assim, de forma a ilustrar a análise do dolo eventual nestes eventos, extrai-se do acórdão do Recurso em Sentido Estrito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais n° 1.0134.09.111799-1/001 (Relator Dr. Des. Doorgal Andrada, publicado em 22/02/2010), o seguinte:

"As testemunhas afirmam com certa dose de precisão a suposta culpabilidade do acusado que, no caso, agiu com dolo eventual.

O fato de não ter habilitação, estar sob efeito de álcool, dirigir em alta velocidade e na contramão de direção indicam que o agente assumiu o risco de produzir o resultado.

O dolo eventual caracteriza-se pela vontade do agente de realizar a conduta, pela consciência da ação e do nexo causal. O agente não quer diretamente o resultado, mas aceita a possibilidade de produzi-lo ou não se importa em produzir este ou aquele resultado.

As circunstâncias do caso no momento do acidente demonstram a possibilidade de enquadramento da conduta do acusado no dolo eventual.

Essa modalidade de dolo caracteriza-se quando a conduta do agente ultrapassa os limites da normalidade, ou seja, quando ele não se preocupa com a realização ou não do delito. No caso em tela resta induvidoso que o condutor trafegava completamente fora dos limites da normalidade, pois fugia totalmente dos padrões de um condutor zeloso."

Outra decisão, agora sobre a culpa consciente, envolvendo acidente de trânsito em sentido análogo ao acima exposto, do mesmo Tribunal de Minas Gerais (Embargos Infringentes e de Nulidade n° 1.0472.07.015949-7/002, relator Dr. Des. EDUARDO BRUM, publicado em 11/11/2009):

"De fato, verifico não ser possível dar guarida à pretensão contida na denúncia, no tocante à existência de condições para a configuração do dolo eventual, sob o argumento de que o recorrente, no momento dos fatos, estava completamente consciente do que fazia, após ingestão de bebida alcoólica, imprimindo velocidade abusiva em sua motocicleta, com o fim de praticar o crime.

Como venho frisando em julgamentos semelhantes, o dolo eventual, por apresentar tênue liame com a culpa consciente, que é a previsibilidade do resultado, algumas vezes, em especial em delitos de trânsito, vem sendo com ela identificada.

No entanto, não se pode esquecer que, no dolo eventual, o agente dá a sua aquiescência ao resultado lesivo, ao passo que na culpa consciente não há qualquer adesão. Malgrado haja, em ambos, a previsibilidade do resultado ilícito, no dolo eventual o agente não se importa em produzi-lo, enquanto na culpa consciente há, no mínimo, a esperança de que ele não ocorra.

[...]

Ora, pelo que se extrai da prova carreada aos autos, não vislumbrei, na espécie, suficientes indícios da presença do dolo eventual na ação desenvolvida pelo réu. Pela prova colacionada, ele tinha como objetivo inicial ir até à casa de um amigo, e, nesse norte, não se pode admitir que concordasse, ou até mesmo desejasse, matar alguém nesse interregno.

De plano, o acusado declarou ter feito uso de bebidas alcoólicas, após tomar medicamentos para tratamento de epilepsia e, ao que tudo indica, empregava velocidade superior a permitida no local. O que inexiste, e isto seria exigível, é prova de ter Teilor agido com animus necandi, ou assumindo risco de produzir o resultado tão danoso.

Afinal, o que se estampa nos autos é o fato de que o acusado confiava inteiramente na sua capacidade de conduzir o veículo, nas condições em que se encontrava, e em velocidade superior à recomendada sem, contudo, causar acidente.

[...]

Portanto, restando patente não ter o acusado aceitado o resultado como possível, não aderindo a ele sua vontade, é de se concluir pela configuração da culpa consciente, devendo o réu ser responsabilizado pelo delito de homicídio culposo, nos termos do art. 302 do CTB."

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A jurisprudência, conforme se tentou demonstrar, infere, ao dolo eventual e à culpa consciente, substratos variantes para cada decisão, resultantes de elementos subjetivos do convencimento do julgador, decorrência direta da confusão existente para delimitar as fronteiras dos institutos em comento. Não se discute aqui a sentença é uma convicção de toda subjetiva, mas prende-se ao fato de que tanto o dolo eventual como a culpa consciente não apresentam elementos diferenciadores universais de interpretação, tampouco os que existem se prestam com concretude. Observa-se que, no primeiro caso, o voto do Ministério Público Militar era pelo dolo eventual, enquanto a decisão julgou pela culpa consciente. No segundo acórdão, a decisão configura o dolo eventual nas circunstâncias do fato, razões que são estranhas no terceiro e último julgado que busca o elemento volitivo.

Espera-se, assim, ter demonstrado a dificuldade apresentada quando do inicio do trabalho, qual seja, a fronteira nebulosa e complexa que separa o dolo eventual da culpa consciente.


Referências Bibliográficas

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DIAS, Jorge de Figueiredo. Liberdade, culpa, direito penal.3. ed. Coimbra: Coimbra, 1995.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais, a doutrina geral do crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

DÍAZ PITA, Maria Del Mar; MUÑOZ CONDE, Francisco. El dolo eventual. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral – 8ª ed. – Rio de Janeiro: forense, 1985.

JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal: parte general. 5.ed. renov. e ampl. Granada: Comares, 2002.

LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal alemão. Campinas, SP: Russell, 2003.

MIR PUIG, Santiago. Derecho penal: parte general. 5. ed. Barcelona: Reppertor S. L., 1998.

MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal: parte especial. 12. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999.

REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 1997.

WESSELS, Johannes. Direito Penal (aspectos fundamentais). Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Fabris, 1976.


Notas

  1. Neste sentido a redação do parágrafo único do artigo 18 do Código Penal Brasileiro: "Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente."
  2. DÍAZ PITA, 1994. p, 17.
  3. DÍAZ PITA, p. 18.
  4. ROXIN, 1997. p. 424./DIAS, 2007.p. 373.
  5. JESCHECK 2002. p, 247, assim como DIAS, 2007. p. 371.
  6. DIAS, 2007. p. 368.
  7. FRAGOSO, 1985. p. 178. ROXIN, 1997. p. 427.
  8. ROXIN, 1997/SANTOS, 2008/ REALE JUNIOR, 2004/ BITENCOURT, 2008.
  9. ROXIN, 1997. p.427.
  10. ROXIN, 1997. p.426.
  11. ROXIN, 1997. p.426.
  12. WESSELS, 1976. p. 52.
  13. ROXIN, 1997. p.427
  14. DIAS, 2007. p. 368.
  15. JESCHECK 2002. p, 245.
  16. ROXIN, 1997. p. 427. No mesmo sentido, MUÑOZ CONDE (1999, p. 302) afirmava que "con todas estas expresiones se pretende describir un complejo proceso psicologico en el que se entremezclan elementos intelectuales y volitivos, conscientes o inconscientes, de difícil reducción a um concepto unitário de dolo."
  17. Para aprofundar a matéria sugere-se o estudo sobre o conceito de dolo, seus elementos e classes, porém, ressalva-se que "de acuerdo com una definición inexacta aunque usual, el dolo significa conocer y querer los elementos objetivos que pertencen al tipo legal" (JESCHCK, 2002. p. 314).
  18. DIAS, 2007. p. 269.
  19. ROXIN, 1997. p. 430.
  20. FRAGOSO, 1985. p. 178.
  21. REALE JÚNIOR, 2009. p. 225.
  22. MIR PUIG, 1998. p. 246.
  23. ROXIN
  24. MIR PUIG, 1998. p. 246.
  25. MIR PUIG, 1998, p. 246.
  26. ROXIN, 1997. p. 432.
  27. JESCHECK, 2002. p.324.
  28. ROXIN, 1997. p. 435.
  29. JESCHECK, 2002. p.325.
  30. ROXIN, 1997. p. 432.
  31. ROXIN, 1997. p. 432.
  32. JESCHECK, 2002. P.324.
  33. ROXIN, 1997.p. 434.
  34. ROXIN, 1997. p. 439.
  35. JESCHECK, 2002. p. 324.
  36. ROXIN, 1997. p. 443.
  37. ROXIN, 1997. p. 439.
  38. ROXIN, 1997. p. 439.
  39. ROXIN, 1997. p. 447.
  40. DIAS, 2007. p. 376.
  41. ROXIN, 1997. p. 448.
  42. DIAS, 2007. p. 377.
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Sobre o autor
Frederico Cattani

* Sócio da Frederico Cattani Advocacia, que atua com foco no Direito Penal Econômico e Crimes Financeiros * Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS (Porto Alegre, RS) * Especialista em Direito Empresarial pela FSG (Caxias do Sul, RS) * Professor de Graduação e Pós-Graduação

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CATTANI, Frederico. Contributos para compreender a fronteira entre o dolo eventual e a culpa consciente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3039, 27 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20309. Acesso em: 10 mai. 2024.

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