CAPÍTULO II – O PROCESSO CIVIL
2.1. Escopos do processo e da jurisdição
O Estado, dentro da noção clássica de agrupamento social-político e juridicamente organizado para fins predeterminados, é detentor de determinado poder incontrastável dentro de seus limites, nominado soberania, cujo estudo pertence às ciências sociais, políticas e a Teoria Geral do Estado.
Esse poder, quando voltado para a decidibilidade de conflitos intersubjetivos com marca de definitividade e imposição, é compreendido como jurisdição. Eis a suma frugal de soberania e jurisdição.
Nessa ordem de idéias, acertando-se que o Estado visa a concreção de certos elementos e que a jurisdição é eflúvio da soberania, também alinhada para a consecução desses interesses, conclui-se que o poder jurisdicional volta-se realização de valores estatais altaneiros [28].
Com essa mesma compreensão, pode citar MEDINA (p.40, 2009):
A jurisdição, assim deve-se ocupar de dar fim à lide, pautando-se pelas premissas fixadas pela Constituição Federal. Esta deve, a nosso ver, ser a força motriz da atuação jurisdicional no Estado democrático de Direito, podendo-se mesmo dizer que, se o juiz não atua com o intuito de materializar esta aspiração, presta, quando muito, jurisdição na forma, mas não no conteúdo.
Por prisma parecido, Cândido Rangel Dinamarco (2008) conseguiu fixar quatro escopos primordiais da jurisdição: escopos sociais, políticos, jurídicos e processuais [29].
A essa idéia deve ser somada a noção de que o processo é instrumento de operacionalização da jurisdição e, por isso e com isso, é voltado para a materialização desses objetivos maiores. Dessa forma, deve o processo dirigir-se para a mais plena garantia dos objetivos constitucionais.
Exatamente por esse motivo que Brunela Viera de Vicenzi assevera que:
Sob o enfoque dos escopos da jurisdição, a serem realizados por meio do processo, verifica-se a conexão pretendida na garantia constitucional do devido processo legal. Destarte, as garantias do acesso à justiça, do contraditório e da tutela adequada e tempestiva traçam os limites para o exercício das posições subjetivas no processo. Isso porque pretender a tutela mais célere e adequada do direito material em crise é zelar, também, para a realização dos escopos da jurisdição (2003, p.48)
Dessa forma, é preciso que as partes processuais encarem o processo como instrumento [30] ético e axiológico de realização de valores constitucionais, afastando-se de transformá-lo em instrumento de vindita e de procrastinação da própria aplicação do sistema jurídico.
Para tanto, as condutas impróprias, desleais, antiéticas e contraproducentes devem ser coibidas e neutralizadas pelo magistrado com fundamento na boa-fé objetiva, a qual também está vinculado [31].
Assentadas essas premissas, não requer esforço aceitar que o princípio da boa-fé objetiva, dentro da relação processual, é um dos mais caros à processualística, uma vez que intimamente ligada à própria finalidade política, social e instrumental do processo. Daí a relevância do presente estudo.
2.2. O magistrado e o juiz romano
Não raras vezes emerge discussão sobre o abismo que se sulca entre os juízes do sistema pátrio e os do sistema estadunidense no que toca aos poderes executórios e, porque não, à compleição psicológica-institucional diametralmente oposta.
Vozes abalizadas juntam-se à outras mais apequenadas para reclamarem da posição passiva, inerte, quase indiferente dos magistrados nacionais quanto à execução de seus próprios éditos e à respeitabilidade de sua figura como "Estado-juiz". Há razão quanto ao reclamo.
É coisa comum, lamentavelmente, a parte ousar "decidir" se cumpre ou não a ordem judicial, aquilatando a sua pertinência meritória fora dos autos, tudo sob o olhar tíbio do julgador, que transfere o problema à parte ex adversa, como se a ela coubesse, em caráter privado e disponível, a concreção de uma ordem estatal de interesse coletivo. Menos comum, mas não inexistente, são as chicanas promovidas nos autos e retroalimentadas pela passividade e participação meramente observadora do Estado-jurisdição.
Tais cenas, lançadas no mesmo cadinho com o sucateamento material e pessoal do Poder Judiciário, desvelam panorama de descrédito e infantilização da Jurisdição, dando ao processo a pecha de instrumento de injustiça e promoção da ilegalidade.
É Ovídio A. Baptista da Silva (2002, p.335), ao dissertar sobre a mandamentalidade das ações e sua execução, quem consegue, em curta e exata análise, explicar a origem histórica e cultural entre os julgadores do common law e os de tradição romano-canônica, perfilhada por nosso sistema.
Explica, em remissão histórica, que o direito romano judiciário havia distinção entre juiz (iudex) e o pretor (praetor). Aquele exercia a jurisdição, sempre no âmbito das questões privadas. Já o pretor, por versar sobre questões de Estado e públicas, detinha o imperium.
O iudex limitava-se a dizer o direito (iuris+dictio), em sentido idêntico ao dos árbitros contemporâneos, jamais exercendo as atribuições exclusivas do praetor, que em razão do imperium e estatalidade intensa compreendia a idéia de certa liberdade normogenética e de concretizá-la. Conclui externando que os juízes do nosso sistema são forjados nos moldes dos juízes romanos, enquanto os julgadores do common Law afeiçoam-se ao pretor, dotado de imperium
Traz se à colação para compreensão exata do tema:
O caráter privatístico da jurisdição é uma nota peculiar e constante na formação das instituições jurídicas dos países da Europa continental. Nossos juízes diferem grandemente dos magistrados da chamada common law, justamente porque os juízes do sistema do direito continental europeu assemelham-se mais a funcionários públicos do que a verdadeiros representantes do poder estatal (SILVA, 2002, p.337)
E, mais adiante, prossegue:
Não é, portanto, de surpreender que nossa cultura haja resistido, com tanta tenacidade, à outorga de poderes de imperium ao juiz, cuja expressão mais significativa são as ações mandamentais. Se pudéssemos fazer uma comparação talvez exagerada, seria possível dizer que, havendo tanto o sistema da common law quanto o sistema do direito escrito da Europa continental sofrido uma marcante influência do direito romano, os ingleses conceberam os seus juízes á imagem e semelhança do praetor, enquanto o sistema romano-canônico da Europa Continental os criou para desempenhar as modestas funções do iudex do direito privado romano. (2002, p. 339)
E esta compleição psicológica e cultural que precisa ser esgarçada de uma vez por todas, a fim de se resgatar o crédito no sistema normativo como um todo, recolocando o Judiciário em seu devido lugar constitucional, de Poder da República.
Muito pouco, senão inócuo, é a abertura do sistema normativo, com engastamento de cláusula gerais, conceitos jurídicos indeterminados, oxigenação e realinhamento por princípios e valores constitucionais, se o julgador, aquele responsável pela manutenção da higidez juspolítica, encara-se como burocrata, como "bouche de la loi", olvidando-se da parcela de poder estatal que repousa em seu cargo, vertido do poder popular, para a correta aplica da lei, justiça e consecução dos valores maiores.
Assim, a repressão a atos atentatórios e a mais plena consecução da boa-fé objetiva demandam profunda alteração cultural-jurídica da postura dos magistrados e demais operadores do direito no que toca ao exercício da jurisdição.
2.3. A moderna função do juiz no processo civil
Há, hodiernamente, tendência de dotar o julgador de certa movimentação e atividade dentro da relação processual, rompendo com o paradigma, ainda atual, baseado no magistrado como mero observador do debate travado sob sua presidência.
Informa DIDIER JR. (2007, p.55) que essa concepção, baseada na cooperação, já está em desenvolvimento no direito alienígena, notadamente na Alemanha [32], França [33] e Portugal [34]. Tal autor, ao comentar o princípio processual da cooperação, pontifica que o julgador deve desvelar-se como "agente-colaborador do processo", participando materialmente do contraditório.
Contudo, essa visão, como alerta o estudioso, não se prende apenas no campo instrutório-probatório e na efetivação das ordens judiciais, nas quais se exaure nos dias coevos toda a noção de ativismo judicial.
Há que se dar mais um passo. O magistrado deve estar em constante e aberto diálogo com as partes e intervenientes, respondendo com eficiência e nitidez as os pedidos e dúvidas das partes, externando as suas próprias incertezas processuais e oportunizando que sejam sanadas, além de decisões e despachos pedagógicos e explicativos.
Essas idéias e paradigmas de conduta constituem-se mera dimensão da boa-fé objetiva forjando a conduta do Estado-julgador, na modalidade transparência e cooperação.
Por esse prisma, o processo deve ser visto como
"o produto de atividade cooperativa: cada qual com as suas funções, mas todos com o objetivo comum, que é a prolação do ato final (decisão do magistrado sobre o objeto litigioso). Traz-se o magistrado ao debate processual; prestigiam-se o diálogo e o equilíbrio. Trata-se de princípio que informa e qualifica o contraditório. A obediência ao princípio da cooperação é comportamento que impede ou dificulta a decretação de nulidades processuais – e, principalmente, a prolação do juízo de inadmissibilidade. O princípio da cooperação gera os seguintes deveres para o magistrado (seus três aspectos): a) deve de esclarecimento; b) dever de consultar; c) dever de prevenir (DIDIER JR, 2007,p. 56).
Dessa sorte, dimanando da boa-fé objetiva, caberia ao julgador o dever de esclarecimento, o dever de consultar e o dever de prevenir [35].
O dever de esclarecer traduz-se na imposição ao órgão julgado de se esclarecer perante os jurisdicionados, para que não venha a decidir a relação material com esteio em fundamentos fáticos e jurídicos equivocados e\ou percepções apressadas.
Esse dever fragmenta a concepção do magistrado como ser meramente observador, que julgará de acordo com o que lhe é apresentado pelas partes. O atual sistema processual impõe que a demonstração insuficiente de fatos e o manejo inábil de instrumentos processuais e argumentativos seja carreada apenas à parte, impedindo por vezes que o próprio magistrado interfira nesse ponto, à pretexto de não desequilibrar a paridade de armas.
É bem verdade, pensa-se, que o magistrado não deve descer à arena probatória, investigando pela parte de forma substitutiva, suprindo as provas e deficiências técnicas.
Todavia, o foco aqui é outro. Os verbos "suprir", "produzir", "investigar", usados pelos defensores do ativismo probatório, devem ser permutados por "esclarecer-se", "compreender", "inteirar-se", "ouvir" e "oportunizar"
Dessa maneira, por exemplo, deve o julgador, acasos dúvida quanto à existência de algum requisito processual de validade, ouvir as partes de maneira direta, clara e objetiva, e não aplicar de chofre a sanção processual para o caso, na hipótese, a extinção sem resolução [36].
Quando se menciona, cumpre insistir, em ouvir as partes de maneira direta e clara, quer-se dizer que o juiz, ao despachar para tanto, deve externar em palavras a sua dúvida e seu objetivo, repudiando despachos já encarnados na prática forense que denotam apenas o descompromisso e a indiferença do julgador, para não se dizer na sua pretensão deificação.
Um exemplo é o "Diga a parte", que nada esclarece, impondo ao jurisdicionado, vezes muitas, a repetição de tudo quanto já fora dito, deixando de incidir diretamente no ponto querido pelo magistrado. Nesses despachos, em razão da pletora insana de feitos, perde-se meses, dispêndio de forças humanas e de recurso matérias dirigidos para a procrastinação [37].
Já o dever de consultar é manifestação conjunta da boa-fé objetiva e do contraditório e ampla defesa, demonstrado a irmanação intensa entres esses princípios, que nós faz acreditar que este é decorrência daquele [38].
Por tal dever – o de consultar – o Estado-Julgador não pode decidir absolutamente nada, mesmo as questões ex officio, sem que as partes sejam intimadas a manifestar-se. Portanto, descoberta pelo juiz a ausência de algum requisito de admissibilidade do processo, deverá ouvir as partes antes de extinguir o feito.
A concepção cogente do contraditório e ampla defesa é robusta, em nosso espírito, quando a alegação é deduzida pela parte ex adversa. Todavia, há certa dificuldade em aceitar que a parte tem direito de ser ouvida previamente quando a matéria prejudicial advier de cognição direta do juiz. E é justamente isso que impõe o dever de consultar.
Convém trazer a anotação ad calcem de Fredie Didier Jr. (2007, p. 57, nota 96):
Muito interessante a ponderação de Rodrigo Mazzei: se o CPC impõe a ouvida do autor quanto o réu alega a falta de um requisito de admissibilidade (art. 327), dando ensejo ao contraditório, por que também não se exigir o contraditório quando a falta for "alegada" pelo juiz? ("O manejo dos declaratórios pelo terceiro prejudicado". Aspectos polêmicos e atuais sobre terceiros no processo civil e assuntos afins. Fredie Didier Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). São Paulo: RT, 2004, p. 921-922, nota 127). Outro interessante exemplo do princípio da cooperação-dever de consulta, no direito positivo brasileiro, é a regra do art. 40, § 4º, da Lei federal n. 6.830/80 (Lei de execução Fiscal), que autoriza o magistrado a conhecer ex officio da prescrição tributária, mas impõe a prévia oitiva da Fazenda Pública.
Por fim, no que toca aos deveres decorrentes do princípio da cooperação, há o impositivo de prevenção.
O órgão julgador "tem o dever de apontar as deficiências das postulações das partes, para que possam ser supridas" (DIDIER JR., 2007, p.58), possuindo amplo espectro, uma vez que incide toda em qualquer circunstância na qual o êxito da ação, em favor de qualquer parte e interveniente, possa ser obstado por manejo deficiência ou insuficiente do instrumental.
Numa análise de tudo quanto se verberou nesse tópico, convém evidenciar que se cuidam de deveres do magistrado e não mera faculdade de agir. Assim como ao Estado-juiz pesa a incumbência de dar decisão, quando provocado, incide juntamente com esse dever vários outros que podem ser tidos como anexos, decorrendo da obrigação principal de julgar.
Deveras, todo o conjunto processual, defluido da Carta Política, volta-se, de forma ordenada, para a consecução de finalidades já talhadas nesse trabalho. Essas finalidades, no campo do direito público, devem ser o alvo constante de todos os poderes, agentes e prerrogativas, daí a instrumentalidade também dos poderes funcionais.
Em consonância com essa visão é a doutrina do publicista Celso Antônio Bandeira de Mello, cuja clareza de compreensão insiste na citação integral do excerto:
A ordenação normativa propõe uma série de finalidades a serem alcançadas, as quais se apresentam, para quaisquer agentes estatais, como obrigatória. A busca destas finalidades tem o caráter de dever (antes do que "poder"), caracterizando uma função, em sentido jurídico. Em Direito, esta voz-função quer designar um tipo de situação jurídica em que existe, previamente assinalada por um comando normativo, uma finalidade a cumprir e que deve ser obrigatoriamente atendida por alguém, mas no interesse de outrem, sendo este sujeito – o obrigado -, para desincumbir-se de tal dever, necessita manejar poderes indispensáveis à satisfação do interesse alheio que está a seu cargo prover. Daí uma distinção clara entre função e faculdade ou direito que alguém exercita a seu prol. Na função, o sujeito exercita um poder, porém o faz em proveito alheio, e exercita não porque acaso queira ou não queira. Exercita-o porque é um dever. Então, pode-se perceber que o eixo metodológico do Direito Público não gira em torno da idéia de poder, mas gira em torno da idéia de dever. (MELLO, p.13, 2007)
Dessa forma, por tais compreensões, dessume-se que ao magistrado é imposto e oponível o princípio da boa-fé objetiva, quer como presidente da relação processual, quer como agente e elemento desse liame público.
Por epítome, compreendendo que a boa-fé objetiva é, em sua versão original germânica, uma cláusula geral que, assumindo diferentes feições, impõe às partes o dever de colaborarem mutuamente para a consecução dos fins perseguidos (...) (TEPEDINO, 2005, p.32), dessume-se que aos sujeitos processuais cabe colaborar, como dever, para a consecução dos fins do processo e da jurisdição. Eis aqui o telos da boa-fé objetiva na relação processual.
2.4. O devido processo legal e a razoabilidade temporal como garantias fundamentais
No tópico pertinente mencionou-se que, para alguns estudiosos, a boa-fé objetiva processual teria raiz e espeque na garantia fundamental do devido processo legal. Longe de adentrar essa discussão, é de reconhecer-se que a concepção contemporânea da cláusula imbrica-se com o próprio cerne da boa-fé na relação processual.
A cláusula tem nascedouro na Magna Charta de João Sem-Terra, no ano de 1215, ao se referir à Law of the land (art. 39). A expressão, contudo, due process of law surgiu tão-só na lei inglesa de 1354, denominada Statute of Westminster of the Liberties of London [39].
No século XVIII começou a vicejar nas Constituições das colônias da "Nova Inglaterra" e em algumas "Declarações de Direitos", sendo finalmente consagrada na Constituição Federal americana de 1787.
E nosso arcabouço constitucional a garantia limitadora de abusos e desproporcionalidade alberga-se no inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal, atraindo-se para a sua deliberada elasticidade todas as garantias processuais – sem mencionar as substantivas – possíveis, encerrando (mas permanentemente aberto) e acabando o rol de remédios, garantias e direitos fundamentais [40].
Em análise mais detida percebe-se que o devido processo legal tem como escopo, dentre outros, conectar-se à garantia de acesso à justiça, legitimador do Estado Constitucional de Direito. Por isso que Nelson Nery Júnior (2009, p. 87) pontifica que "O direito à tutela jurisdicional adequada, garantido pela CF 5º, XXXV, pressupõe a existência e o desenvolvimento de um processo devido (fair procedure, faires Verfahren, giusto processo)
Nesse contexto, o devido processo legal, principalmente no direito norte-americano, ganha releitura ou faceta moderna para surgir como procedural fairness, muito mais ligado à realidade do que aos aspectos formais do procedimento. Tenciona não bitolar e manter no fluxo processual em lindes meramente formais, mas, antes de tudo, direcionar o processo para os escopos fixados, dentro das garantias fundamentais e como própria garantia fundamental.
Por esse prisma, que se afirma ser a boa-fé objetiva obrigação decorrente do devido processo legal (faires Verfahren, debido proceso, processo equitativo, proceso justo, proceso limpio, proceso équo e processo giusto) [41], como garantia que as partes possuem de obterem os resultados garantidos pelo direito material.
Então, por essa óptica atual, a garantia do processo legal é dos jurisdicionados e também contra eles e o próprio Estado-juiz, a quem cabe efetivá-lo e garantido dentro da relação pública que se trava no processo, valendo de toda a proficuidade da boa-fé objetiva para alcançar os fins e a utilidade instrumental do processo.
Plasme-se a observação de Brunela Vincenzi (2003, p. 47-48), verbatim:
(...) a garantia do devido processo legal, nos sistemas de civil law, tem por objetivo delinear uma norma genérica reguladora das garantias internas do processo – as que definem a forma do procedimento e o exercício das posições subjetivas das partes e do juiz na relação jurídica processual – e a principal garantia externa do processo, qual seja, a efetividade das decisões judiciais. Assegura-se, assim, de forma genérica, que deverá ser concretizada caso a caso, observando-se o limite das garantias mínimas, uma garantia processual de meio e de resultado, concedendo às partes os meios e os remédios adequados para o exercício do processo e da jurisdição, de modo a possibilitar a realização do direito de forma efetiva, ou seja, garantindo o processo civil de resultados.
A garantia do devido processo legal, portanto, abre espaço na sociedade contemporânea para o processo civil de resultados, pois, garantindo os meios adequados – garantias mínimas -, pugna pela realização eficaz e tempestiva da tutela jurisdicional.
Consigna, pois, a estudiosa que o devido processo legal deve ser compreendido também como elemento garantidor da própria instrumentalidade do processo civil, concedendo-se as garantias, deveres e proibições mínimas para a realização eficaz e tempestiva da tutela jurisdicional.
Dessa forma, atos que vulnerem a boa-fé objetiva edificando procrastinações, desvirtuamento de formas, abuso de situações processuais e tudo quanto mais desloque o processo de seu eixo instrumental deve ser visto como mortificação do due process of law, ataque direto a uma garantia fundamental.
É Fred Didier Jr. (2009a) quem relembra que o Supremo Tribunal Federal segue o entendimento de que o devido processo lega determina um processo de lealdade e orientado pela boa-fé. Em artigo sobre o tema (2009a) ele cita o trecho da fundamentação de certo aresto daquela Corte Constitucional, cujo teor autoriza a citação:
O princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com a observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além, representa uma exigência de fair trail, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais. (...) A máxima do fair trail é uma das faces do princípio do devido processo legal positivado na Constituição de 1988, a qual assegura um modelo garantista de jurisdição, voltado para a proteção efetiva dos direitos individuais e coletivos, e que depende, para seu pleno funcionamento, da boa-fé e a lealdade dos sujeitos que dele participam, condição indispensável para a correção e legitimidade do conjunto de atos, relações e processos jurisdicionais e administrativos.(...) Nesse sentido, tal princípio possui um âmbito de proteção alargado, que exige o fair trial não apenas dentre aquele que fazem parte da relação processual, ou que atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange todos os sujeitos, instituição e órgão, públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções qualificadas constitucionalmente como essenciais à Justiça.
E, no fim da citação, após apresentar outras fundamentações para a boa-fé objetiva, que já foram vertidas no item pertinente desse estudo, arremata o doutrinador:
Todas essas opções são dogmaticamente corretas. Adota-se a do STF, principalmente em razão de um aspecto prático: a caracterização do devido processo legal como uma cláusula geral é pacífica, muito bem construída doutrinariamente e aceita pela jurisprudência. É com base nesta garantia que, no Direito estadunidense, se construiu o dever de boa-fé processual como conteúdo da garantia do fair trial. É mais fácil, portanto, a argumentação da existência de um dever geral de boa-fé processual como conteúdo do devido processo legal. Afinal, convenhamos, o processo para ser devido (giusto, como dizem os italianos, equitativo, como dizem os portugueses) precisa ser ético e leal. Não se poderia aceitar como justo um processo pautado em comportamento desleais ou antiéticos (2009a)
Dessa forma, infere-se que a boa-fé objetiva no processo é realidade jurídica existente, clamando por reconhecimento e auto-aplicabilidade, uma vez que ligada a direito fundamental plasmado na Constituição, cuja extensão e conteúdo, por essência, devem ser traçados pelo magistrado no caso concreto, sempre em ponderação com demais garantias, com a lógica do sistema processual e sua evidente instrumentalidade.
Além disso, é possível reforçar a tese de que a boa-fé objetiva é instituto de intermediação e enlace entre os valores constitucionais e a legislação infraconstitucional, demonstrando a sua instrumentalidade com a garantia de duração razoável dos procedimentos judiciais [42] e administrativos.
Primeiramente, destaca-se que o art. 5º, LXXVIII [43] garante a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração dos processos e os meios que necessários para tanto. Importa dizer, além da auto-aplicabilidade expressa das normas de direitos fundamentais, que todo meio jurídico é viável para impor garantir a prestação jurisdicional
Nesse norte, CAPERNA (2005) assevera que "a concepção de ética no processo encontra suporte no delineamento de duração do mesmo de acordo com o uso racional do tempo processual, aliás, perspectiva essa bem desenvolvida pela doutrina italiana e tipificada no art.111 da Constituição peninsular.
Isso importa dizer que os meios para atingir a celeridade são também direitos fundamentais, dessumindo-se que a boa-fé objetiva, como meio para tanto, é também garantia constitucional por extensão normativa.