1. BENS JURÍDICOS TUTELADOS PELA NORMA
A Constituição Federal prevê, em seu art. 150, inc. VI, "d", a imunidade para os impostos que venham incidir sobre o livro, o jornal, o periódico ou o papel destinado à impressão desses veículos de informação. Trata-se, pois, de uma imunidade objetiva [01], vez que alcança determinados bens ou meios materiais – no caso, o livro, o jornal, o periódico e o papel – que viabilizam a disseminação de valores considerados relevantes pelo legislador constituinte.
É em virtude dessa natureza objetiva que a referida imunidade não irá se estender, por exemplo, às receitas das empresas editoriais, jornalísticas, gráficas, ao livreiro ou ao autor da obra literária. Refere-se tão somente à coisa, e não à pessoa que a produz. Há, contudo, opiniões em sentido contrário, a exemplo de Paulo Roberto Cabral Nogueira e Yonne Dolácio de Oliveira, para quem a imunidade deveria alcançar as atividades-meio, como a dos anúncios. [02]
Ao deferir um tratamento imunizante para determinados veículos de informação, pretendeu o legislador preservar e, ao mesmo tempo, incentivar a livre manifestação de pensamento e de expressão artística, cultural e científica, e o acesso irrestrito à informação e à comunicação (art. 5º, incs. IV, IX, XIV, XXVII, da CF), em regra por intermédio da linguagem escrita e materialmente manifestada em papel. Coloca-se à salvo da incidência do imposto, portanto, o suporte material em que as ideias são reproduzidas (o livro, o jornal, o periódico e o respectivo papel de sua impressão), justamente porque é neste aspecto material que elas têm a aptidão de se manifestar de modo universal.
Em última análise, a imunidade de que trata o art. 150, inc. VI, "d" da CF, busca também o fomento do direito à educação – o qual constitui dever do Estado e da família –, na medida em que o acesso à informação conduz ao estímulo do aprendizado, do ensino, da pesquisa, da difusão da arte e da cultura, e do desenvolvimento científico (art. 205, art. 206, inc. II, art. 215, caput, art. 218, caput, art. 220, caput e §§ 1º e 2º, todos da CF).
É bem verdade que nem todo livro, jornal ou periódico contém informação fidedigna, pedagógica, ou sequer útil, mas ainda assim estão contempladas no espectro de incidência da imunidade. A justificativa poderia se circunscrever na impossibilidade de uma interpretação restritiva da norma constitucional imunizante, vale dizer, não seria dado ao intérprete estabelecer limitações qualitativas ao conteúdo do veículo de informação aonde não o fez o legislador constituinte. Todavia, para além disso, cogitar-se de uma hipotética submissão a determinados critérios qualitativos, para efeitos de concessão da imunidade, importaria em inegável censura sobre a informação ou pensamento que se quer veicular, sujeitando-a ao subjetivismo do fisco.
Razoável, então, que prevaleça a regra imunizante para toda e qualquer expressão intelectual, independentemente de seu assunto ou conteúdo estar ou não adequado a tal ou qual parâmetro de moralidade, do que sujeitar as manifestações de ideias a uma prévia censura – como ocorrera durante o Estado Novo (décadas de 1930 e 1940) e no Regime Militar de 1964. Objetiva-se, portanto, com que o fisco não utilize o tributo como instrumento de controle indireto sobre a imprensa, favorecendo certas publicações e dificultando outras.
Ademais, a imunidade prevista no art. 150, inc. VI, "d", da CF, contém eficácia plena e aplicabilidade imediata, razão porque independe de legislação infraconstitucional que a complemente, como acentua Paulo de Barros Carvalho. [03] Nesse ponto, vale registrar que, como a Constituição nada dispôs sobre a necessidade de lei para a sua implementação, não seria dado ao legislador infraconstitucional disciplinar essa matéria pela via ordinária, sob pena de vício de inconstitucionalidade e de violação à proibição da censura.
2. O LIVRO, O JORNAL E O PERIÓDICO COMO VEÍCULOS DE PENSAMENTO
O livro, o jornal e o periódico são meios materiais de veiculação do pensamento, aos quais o legislador constituinte atribuiu imunidade aos impostos que neles viessem incidir. A expressão "livro", em seu conceito tradicional, define a "reunião de cadernos manuscritos ou impressos, cosidos entre si e brochados ou encadernados". [04] Essa forma física de apresentação, no entanto, vem sendo rapidamente substituída por outros suportes materiais que lhe fazem as vezes, como os arquivos magnéticos que podem ser armazenados em dispositivos físicos (cd-roms, dvd-roms, blu-ray, hard-disk, etc.) ou em cloud computing, quando simplesmente disponibilizados para download através da internet, e que constituem, por assim dizer, os chamados "livros virtuais, digitais ou eletrônicos". O fenômeno tecnológico também vem alcançando os jornais – mídia escrita e periódica das empresas jornalísticas, que visam difundir notícias a seus leitores – e os periódicos propriamente ditos – revistas, álbuns, etc., que são editados com certa frequência.
Para Roque Antonio Carrazza, a acepção de "livro", "jornal" e "periódico" é utilizada no texto da Lex Legum no sentido de "veículos do pensamento", vale dizer, instrumentos qualificados para a difusão da cultura e do conhecimento, e não estritamente como um conjunto de folhas de papel impressas. [05] É por isso que, para o citado autor, não devem ser reputados como típicos livros, para fins de imunidade, os livros destinados à escrituração e análogos, como os diários, o livro cartonado, o livro espiral, o livro de ouro, o livro de ponto, o livro de inscrição na dívida pública, o livro de bordo, o livro mestre ou livro-razão, o livro de atas, etc., [06] já que estes não veiculam propriamente ideias voltadas à difusão do conhecimento, mas apenas registros de fatos econômicos ou contábeis.
A compreensão do que pode ser considerado "livro", "jornal" ou "periódico" para efeito de incidência da imunidade tributária, à falta de uma definição infraconstitucional, tem sido objeto de longas discussões na jurisprudência pátria. O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema, ora ampliando o conceito desses veículos para adequá-los aos novos mecanismos de transmissão do conhecimento, ora excluindo da benesse constitucional outros meios de comunicação não alcançados pelo sentido da norma imunizante.
Em decisões paradigmáticas, o Pretório Excelso reiterou o entendimento segundo o qual estão abrangidos pela imunidade prevista no art. 150, inc. VI, "d", da CF, os álbuns de figurinhas e os respectivos cromos adesivos [07], e as apostilas e os manuais técnicos [08]. É que, nesses casos, a distribuição desses instrumentos buscava facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação, alguns destinados ao público infantil, outros à aprendizagem técnica. Ainda segundo o STF, também é alvo da norma imunizante as listas telefônicas [09], porquanto tais catálogos possuiriam relevante utilidade pública.
Por outro lado, o Egrégio STF entendeu inaplicável a imunidade aos serviços de distribuição de encartes de propaganda de terceiros por jornais e periódicos [10], às capas duras autoencadernáveis utilizadas na distribuição de obras para o fim de incrementar a venda de jornais [11], e aos encartes de propaganda distribuídos com jornais e periódicos. [12] Isto porque, nessa situações, fica evidente que o veículo publicitário não pode ser considerado como destinado à cultura e à educação, notadamente em face de sua natureza propagandística, de exclusiva índole comercial.
3. A QUESTÃO DA PUBLICAÇÃO ELETRÔNICA
Em virtude do sentido finalístico que deve repousar sobre a imunidade do livro, do jornal e do periódico, Hugo de Brito Machado defende que as publicações eletrônicas devem estar abrangidas pela imunidade do art. 150, inc. VI, "d", da CF, [13] até porque a interpretação da norma constitucional deve ser feita de modo a lhe assegurar a máxima efetividade. Assim, na perspectiva de que o livro, o jornal e o periódico constituem verdadeiros "veículos de transmissão do pensamento", como defende Carrazza, outro não seria o caminho senão considerar a publicação eletrônica imune a impostos, porquanto sucedânea dos livros impressos à base do papel. [14]
A Lei nº 10.753/2003, que instituiu a Política Nacional do Livro, em seu art. 2º, parágrafo único, inc. VII, referiu-se aos "livros em meio digital, magnético e ótico, para uso exclusivo de pessoas com deficiência visual", como instrumentos equiparados a livros. Apesar da referência aos suportes eletrônicos destinados exclusivamente para uso de pessoas com deficiência visual, é certo que a publicação digital tem o mesmo objetivo de transmitir conhecimento, cultura e educação que o livro escrito em papel, tanto que tendente a substituí-lo num futuro próximo.
Curiosamente, o Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática proferida pelo MM. Ministro Dias Toffoli no RE 330.817/RJ, rejeitou a imunidade ao ICMS de uma Enciclopédia Jurídica Eletrônica comercializada em cd-rom, ao argumento de que "a imunidade prevista no artigo 150, inciso VI, alínea "d", da Constituição Federal, conferida a livros, jornais e periódicos, não abrange outros insumos que não os compreendidos na acepção da expressão 'papel destinado a sua impressão'", [15] tendo sido reconhecida a repercussão geral da matéria nos autos do RE 595.676/RJ. [16]
A mudança de paradigma na difusão do conhecimento – da base impressa em papel para o eletrônico ou digital – é fato inconteste, e não poderia passar despercebido pelo intérprete da Lei Fundamental, sob pena de retrocesso. Assim, à luz dos princípios da máxima efetividade e da força normativa da Constituição, pensamos que o art. 150, inc. VI, "d", da CF, deve ser interpretado no sentido de que a imunidade ali estabelecida se aplica aos veículos de pensamento qualificados como livros, jornais e periódicos, quaisquer que sejam os seus suportes físicos, e ao insumo papel, quando e se este for destinado à sua impressão.
O fato de o papel ter sido eleito como único insumo imune aos impostos não quer dizer que os veículos de pensamento propriamente ditos tenham que ser necessariamente assim reproduzidos para também serem beneficiados com a imunidade. A norma imunizante abrange, portanto, os três citados veículos de pensamento mais o insumo papel, caso este seja empregado na sua impressão. Como afirma Roque Antonio Carrazza, "não nos parece sustentável que a Constituição, com os dizeres 'e o papel destinado a sua impressão' (alínea 'd', in fine), vinculou o livro ao papel, afastando, assim, da imunidade, os outros processos tecnológicos de transmissão de ideias." [17]
Acrescente-se que, se o legislador constituinte não fez qualquer ressalva quanto ao suporte físico dos veículos de pensamento abrangidos pela imunidade, não poderia o intérprete restringir a sua incidência apenas aos meios impressos em papel. Este ainda é, sem dúvida, o insumo mais utilizado na produção de livros, jornais e periódicos, mas certamente não o único.
4. O PAPEL DESTINADO À IMPRESSÃO COMO INSUMO
Apesar da desenfreada evolução tecnológica do Século XXI, muitos livros, jornais e periódicos ainda permanecem sendo distribuídos sob a forma impressa em papel, coexistindo, pois, com as publicações eletrônicas. Acontece que, quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, o papel até então era o meio mais comum de veiculação da informação, sendo, portanto, o principal insumo utilizado na fabricação de livros, jornais e periódicos. Daí o constituinte tê-lo elegido como o único insumo abrangido pela imunidade tributária, já que, àquela época, não se imaginava os rumos que a tecnologia iria destinar aos meios de comunicação.
Parte da doutrina, a exemplo de Aliomar Baleeiro [18] e Roque Antonio Carrazza [19], tem defendido que a imunidade prevista no art. 150, inc. VI, "d", da CF, não compreende apenas o papel e seus congêneres, mas também todos os demais insumos necessários à fabricação do livro, jornal ou periódico, vez que o objetivo almejado pela norma é a garantia da liberdade de expressão e, por conseguinte, o acesso à informação. Nesse sentido, a eficácia da norma constitucional não poderia ser suficientemente atingida com a imunidade tão só do papel, mas sim quando estendida aos demais insumos integrantes da cadeia produtiva.
A despeito disso, em razão da especificação contida no art. 150, inc. VI, "d", da CF, prevalecia o entendimento de que apenas o papel empregado na impressão dos livros, jornais e periódicos é que poderia ser considerado imune aos impostos, excluindo-se outros insumos, ainda que necessários na produção desses veículos, como a tinta, o plástico, a cola, etc. O mesmo se diga em relação aos papéis utilizados em quaisquer outras finalidades que não a impressão daqueles veículos de pensamento referidos na norma em apreço.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se firmado no sentido de que alguns insumos assimiláveis ao papel devem ser igualmente alcançados pela imunidade, como os filmes e os papéis fotográficos, [20] os filmes destinados à produção de capas de livros, [21] e o papel destinado à fabricação de álbuns a serem completados por cromos adesivos. [22] O critério interpretativo manejado pelo Pretório Excelso, portanto, até então não se relacionava necessariamente com a essencialidade de tais insumos no processo fabril de livros, jornais e periódicos, mas sim na possibilidade de equiparação desses insumos ao papel.
A partir dessa premissa, o STF editou a Súmula nº 657, segundo a qual "a imunidade prevista no art. 150, VI, 'd', da Constituição Federal abrange os filmes e papéis fotográficos necessários à publicação de jornais e periódicos."
Diversamente, ainda segundo o Egrégio STF, não foram recepcionados pela norma imunizante do art. 150, inc. VI, "d", da CF, alguns serviços e insumos que, embora relacionados à cadeia produtiva dos veículos de pensamento impressos, não podem ser assimilados ao papel. São eles: os serviços de composição gráfica; [23] os serviços de distribuição, transporte ou entrega de livros, jornais, periódicos e do papel destinado a sua impressão; [24] os serviços de distribuição de encartes de propaganda de terceiros por jornais e periódicos; [25] as chapas de gravação utilizadas na produção do jornal; [26] a tinta para impressão de livros, jornais, revistas e periódicos; [27] as tiras plásticas para amarração de jornais; [28] e os equipamentos do parque gráfico. [29]
Ocorre que, em 26/04/2011 foi noticiado, através do Informativo nº 506, o julgamento do RE 202.149/RS que, por maioria, reconheceu a aplicação da imunidade tributária às peças sobressalentes para equipamentos de preparo e acabamento de chapas de impressão offset para jornais. Trata-se, portanto, de uma nova orientação do Pretório Excelso que, a partir da divergência iniciada em 13/05/2008 pelo voto do MM. Ministro Marco Aurélio, inclinou-se ao entendimento de que "a imunidade conferida a livros, jornais e periódicos apanharia ainda todo e qualquer insumo e ferramenta indispensáveis à edição desses veículos de comunicação". [30]
Ainda de acordo com o novo pronunciamento do STF, a abrangência da imunidade deve ser discutida sob o fundamento de tê-la como um instrumento de estímulo à circulação da cultura, alinhando-se ao princípio da liberdade de imprensa que, desse modo, deve restar ainda mais assegurada. Afinal, como já advertia Hugo de Brito Machado,
na interpretação da norma imunizante tem-se de atualizar o seu significado, ampliando-se quando necessário o seu alcance para que não reste a mesma inutilizada por uma espécie de esclerose que dominaria se prevalente o sentido estritamente literal. [31]
Com efeito, a recente decisão proferida no RE 202.149/RS parece privilegiar uma interpretação mais consentânea com a densidade normativa contida no art. 150, inc. VI, "d", da CF, atribuindo-lhe máxima eficácia. Deveras, quanto mais insumos puderem ser alcançados pela imunidade tributária, maior será o grau de independência dos órgãos de imprensa de um modo geral, já que o seu principal produto – a notícia, a ideia, a opinião crítica veiculada através do livro, do jornal ou do periódico – estará cada vez mais acessível ao público.
Notas
- COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p.346.
- Id. p.346-347.
- CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p.193.
- CARRAZZA Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21.ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p.762.
- Ib.
- Id. p.765-766.
- Cf. RE 179893 e RE 221239.
- Cf. RE 183403.
- Cf. RE 134071.
- Cf. AI 368077.
- Cf. RE 325334.
- Cf. RE 213094.
- MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 27.ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p.302-303.
- CARRAZZA, 2007. p.764-765.
- Cf. RE 330817.
- O STF já havia manifestado igual entendimento em decisões anteriores, vide RE 416.579/RJ, RE 282.387/RJ, AI 530.958/GO, RE 600.334/SP, RE 276.213/SP, RE 450.422/SP, entre outros.
- CARRAZZA, 2007. p.770.
- BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p.151.
- CARRAZZA, 2007. p.774-777.
- Cf. RE 495385, RE 327414 e RE 289370.
- Cf. AI 597746 e RE 392221.
- Cf. RE 339124.
- Cf. RE 435978, RE 229703, e RE 230782.
- Cf. RE 530121.
- Cf. AI 368077.
- Cf. RE 244698.
- Cf. RE 265025, RE 273308, RE 267690 e RE 216857.
- Cf. RE 208638.
- Cf. RE 215798.
- SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL . Informativo nº 506, Imunidade Tributária: Art. 150, VI, d, da CF e Peças Sobressalentes. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo506.htm. Acesso em: 22 mai. 2011.
- MACHADO, 2006. p.303.