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A questão das intervenções humanitárias diante da nova ordem internacional

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2 SOBERANIA: UMA REGALIA DO POVO PARA O ESTADO

Todo poder emana do povo: esta é uma praxe há tempos arraigada na sociedade internacional, enfatizando a principal fonte de onde se extrai o poder político. Inclusive, tal entendimento é refletido por arcabouços normativos de várias nações do mundo, assim como sobrevêm na Constituição do Brasil de 1988, que o prescreve no parágrafo único de seu art. 1º. Além disso, as suas formas de interpretação adentram ao senso comum, em que não mais pairam indagações ou sobressaltos.

Ora, se todo o poder parte dos populares, os mesmos precisam dispor de, no mínino, uma parte dessa prerrogativa para a obtenção de segurança, já que as relações intersubjetivas comprimem tal garantia. Assim, o mesmo povo cede uma porção do poder inerente a um ser maior, um Leviatã [44] naturalmente segurador, que busca a difusão da paz entre os homens belicosos e também do bem estar geral. Este ser personifica-se na figura do Estado, imponente a partir da concessão de poderes por parte do povo. Desse modo atesta as palavras hobbesianas no livro Leviatã:

Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e ela ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do testado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurara paz e a defesa comum. [45](grifo nosso)

Foi assim desde os embrionários contornos do organismo estatal. Sem a permissão do povo para a atuação do Estado, provavelmente seria impossível o desenvolvimento do modus vivendi social. Assim, o Estado compreende o aparelho de organização própria e politicamente estruturada que controla, rege, administra um povo de acordo com os seus anseios, como retribuição pela força e confiança delegada para esse encargo. O estado de altivez que assegura ao Estado a íntegra persecução destes fins é o que denominamos como soberania.

De verdade, a soberania originária pertence ao povo, que transfere uma parcela dela para a construção de uma grande soberania atribuída ao Estado protetor. Em suma, está presente aqui a articulação republicana de muitos países. Até o termo "república" deriva da expressão latina res publicae (coisa pública), a qual subentende uma força vinda do povo e destinada ao suprimento das necessidades do mesmo.

2.1 REFLEXÕES PRELIMINARES

A princípio, há de se destacar que a idealização de soberania é simultânea à percepção do fenômeno estatal, pois não se pode compreender um sem o outro. A concepção de Estado está vinculada à concepção de soberania, e vice-versa.

O poder que abarca a instituição do Estado sempre foi causa de profundas inquietações. Já nas primeiras civilizações via-se a necessidade da sobreposição de um órgão que assegure a justiça das relações sociais. Em diferentes momentos, oferta-se tal superioridade aos representantes dos Estados, que utilizam a soberania conforme cada circunstância. Foi assim no caso de Santo Agostinho (354-430) que submeteu a autoridade dos príncipes ao comando papal. Noutros contextos, a soberania é posta completamente à disposição dos chefes de Estado, pouco importando interferências de terceiros.

Num plano externo, significante se tornou a contribuição trazida pelo Tratado de Vestfália [46] (1648), que modificou a regulamentação política da Europa. Com isso, eleva-se os Estados à condição de atores em âmbito internacional, triunfando o vetor da isonomia jurídica entre as nações. Profícua colaboração esta para a conclusão da elaboração moderna de soberania. O mundo globalizado de hoje apressa as disparidades quanto à unanimidade que não define em exato os padrões da soberania estatal. O Estado soberano, desta maneira, contorna intempéries à medida que a sociedade se globaliza. Sensato se faz, por hora, dispor sobre as considerações básicas de soberania, conquanto seja vital para a concepção dela.

Etimologicamente, o termo "soberania" tem seu tronco junto à expressão francesa souveraineté, difundida pelo pensador francês Jean Bodin (1530-1596), no século XVI, que transpõe o "poder da República". Contudo, o seu conceito se enquadra na mesma conformidade etimológica, sendo alvo de muita polêmica, principalmente com o recente processo de globalização, que acelera a equiparação socioeconômica entre os múltiplos Estados. Muitos são os autores que trabalharam na conceituação da prerrogativa soberana, que vem sendo rebuscada desde as antigas pregações de Aristóteles até os avançados teóricos da modernidade. A trilha histórica da soberania permeia o contundente estudo evolutivo do Poder.

O primeiro a suscitar a sistematização da soberania estatal foi o próprio Bodin, que lhe adstringiu um caráter ilimitado e perpétuo, ressalvando somente a cautela com as leis naturais e divinas. Para ele, o povo oferece integralmente seu poder aos governantes, legítimos representantes da vontade de Deus. O rei não é déspota e nem tampouco arbitrário, tendo só o condão de concentrar os poderes em nome do Estado. Destarte, segundo Bodin, a soberania do Estado tem procedência abstrata e graciosa.

Partindo do pressuposto homo homini lupus [47], Thomas Hobbes (1588-1679) temeu pela convivência conflituosa das pessoas, posto que o homem esconde em si mesmo o instinto prejudicial do egoísmo (estado de guerra permanente). Sob o intento de pautar a conduta dos indivíduos, entra em cena a atuação do Estado, que conquista força através da submissão da vontade dos seus súditos. Estes renunciam certas faculdades em prol da obediência ao Estado nacional ("Pacto de União"). Trata-se, portanto, de um Leviatã com imponência ilimitada e irrevogável, de onde não se contestam abusos, cujo encargo se desenha na tutela social. A absolutização do poder e a aplicação imperativa da direção estatal são decisivas para a ideologia hobbesiana de soberania. Acreditava Thomas Hobbes que somente assim seria possível concretizar a paz dos homens. Em comparação a Bodin, Hobbes se destaca pela soberania exacerbada interposta ao Estado.

Criticando o absolutismo soberano exercido pelos monarcas, John Locke (1632-1704) interpreta engenhosamente esse atributo como um investimento da ordem garantidora desempenhada pelo Estado, qual seja o pleno gozo dos direitos e liberdades individuais. O homem é naturalmente sociável (posição contrária à de Hobbes) e precisa apenas de segurança por parte do Estado para a sua prosperidade. A soberania, aqui, não possui tanto destaque, haja vista que o Estado é convalidado como porção de uma sociedade plural. Locke também aguçou as primordiais técnicas de liberalismo sobre o Estado soberano.

Em que pese o pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) sobre tal abordagem, a pontuação de soberania torna-se íntima da submissão de todos à vontade geral lastreada no contrato social. Sua curial explanação ergue sociedade e Estado numa mesma conexão, onde o desejo grupal constitui a razão de ser dos soberanos. Sábio anúncio este, porque serve como válvula de escape para a substância encadeada nos moldes da soberania atual.

Georg Jellinek (1851-1911), em expositiva opinião, incita a teoria da autolimitação para a perpetuação da soberania pertencente ao Estado. Em contraponto, Léon Duguit (1859-1928) detinha a crença na inexistência de soberania, interpelando-a como uma mera ânsia de fato, não como poder legítimo, pois sua força seria criada por uma determinação supraterrestre [48].

Hans Kelsen rechaçou o dualismo [49] quando confere um ângulo monista [50] para as normas soberanas do sistema jurídico internacional. A relação entre os mais variados países (soberanias) deve ser regulada por um ordenamento uno, em que a ordem jurídica interna não possa ser separada da ordem externa, sendo que esta prevalece sobre aquela. Todo o ordenamento sustenta-se a partir de uma norma-base hipotética (indemonstrável) fundamental. Por isso, Kelsen asseverou que a soberania somente deve ser apresentada como recurso para efetiva autonomia em face do relacionamento entre Estados.

Diante de tantos pormenores, o conceito contemporâneo de soberania revela-se por uma urgente adaptação às exigências do universo globalizado. Hoje, não se concebe mais soberania (definições visualizadas na efervescência do século XIX). Tornou-se notória, com isso, a decisão de reformulação da ideia de soberania para os dias de hoje.

É fato que a soberania vai muito além da mera retórica do direito internacional positivo. Ela não se prende apenas aos elementos formadores do Estado (governo, população e território), mas também ao status atual de redefinição das fronteiras, guarnecido pelo crescente índice de globalização.

A modernização da soberania, que modifica o padrão clássico e falido, vem sendo proporcionada pelas novas rédeas internacionais. O Estado soberano, hoje, depende precipuamente da ordem jurídica externa, sem que haja qualquer ingerência alheia em meio a esta subordinação. Ribeiro Bastos, esmiuçando esta tendência, preconiza muito bem que:

[...] soberania é a qualidade que cerca o poder do Estado. [...] indica o poder de mando em última instância, numa sociedade política. [...] a soberania se constitui na supremacia do poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder. Esta situação é a consagração, na ordem interna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da coordenação. Ter, portanto, a soberania como fundamento do Estado brasileiro significa que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho à Nação intervir nos seus negócios. [51]

Segundo este raciocínio, pondera-se que a soberania hodierna está abrigada na qualificação imposta por fator de conveniência para o Estado política, cultural e geograficamente organizado, para que este tutele sua sociedade e reivindique questões de seu interesse no cenário internacional, sujeitando-se, como condição para isso, a limites maiores e essenciais para todos.

No que se refere às características que envolvem a força soberana do Estado, destacam-se, entre elas, a unidade, a indivisibilidade, a inalienabilidade e a imprescritibilidade (todas remanescentes da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948), sobre as quais Perini reporta o seguinte:

Enquanto una, a soberania não pode ser múltipla, ou seja, se existissem diversas soberanias, dentro de determinada ordem, não existiria soberania alguma. O mesmo acontece com relação à indivisibilidade, pois, se a soberania fosse dividida, deixaria também de ser uma, e não seria soberania. A inalienabilidade significa que a soberania não pode ser transferida ou renunciada e a imprescritibilidade traz a permanência do poder supremo, a impossibilidade de decadência, caducidade da soberania. [52]

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Acrescentam-se aí os aspectos da integralidade (tem a ver com a totalidade dinâmica da soberania) e da universalidade (a construção do poder soberano pode acontecer em qualquer Estado existente). Outra nota que merece vislumbre é o fato de a soberania ser uma, mesmo funcionando em Estados federados. A solução por que passa o impasse pauta-se pela relativa autonomia dos entes federados até onde esbarram na soberania maior do Estado nacional. Ainda mais, aos estados federados falta justamente a personalidade jurídica para pleitos de direito internacional público.

O reconhecimento da soberania de um Estado pelos outros é ato meramente declaratório, como bem lembra Rezek:

A soberania não é elemento distinto: ela é atributo da ordem jurídica, do sistema de autoridade, ou mais simplesmente do terceiro elemento, o governo, visto este como síntese do segundo – a dimensão pessoal do Estado –, e projetando-se sobre seu suporte físico, o território. O reconhecimento dos demais Estados, por seu turno, não é constitutivo, mas meramente declaratório da qualidade estatal. Ele é importante, sem dúvida, na medida em que indispensável a que o Estado se relacione com seus pares, e integre, em sentido próprio, a comunidade internacional. Mas seria uma proposição teórica viciosa – e possivelmente contaminada pela ideologia colonialista – a de que o Estado depende do reconhecimento de outros para existir. [53]

A propósito desse reconhecimento, ele pode se suceder de maneira expressa ou tácita. Imprescindível recordar ainda que "o reconhecimento mútuo da personalidade internacional só configura pressuposto necessário da celebração de tratados bilaterais". [54] O Estado carrega consigo a presunção desse reconhecimento, não obstante tal situação venha a ser contestada pelo próprio povo, quando querela a ruptura política através de ações como golpes de Estado e manifestos. O reconhecimento da soberania envolve questões conflituosas, divergentes e que servem de apanágio para um leque fundamentalista de discussões, assim como aconteceu no dissenso entre as doutrinas de Carlos Tobar e Genaro Estrada sobre o poderio do governo na América Latina durante o despontar do século XX.

De sobreaviso, é salutar mostrar que soberania não consiste na mesma coisa que autonomia. Ambas, embora putativamente semelhantes, em especial no tocante à tentativa de equivalência entre estado federado e Estado a título pleno no seio internacional. Nesse caso, um estado federado pode ser autônomo quanto aos outros entes de mesma condição, muito embora não sejam soberanos a ponto de ditar impressões personalíssimas da esfera jurídica externa. Relativa competência para tanto pode ser garantida pelo Estado nacional à província federada. Mesmo assim, opiniões paralelas consideram a procedência de certo percentual de soberania às unidades federadas, o que vem lentamente mudando o anterior entendimento. Quanto a isso, Negri aduz que "sendo os estados-membros e municípios entes autônomos que buscam expedir normas, se essas forem criadas pela vontade do povo que participa na sua produção, elas se legitimam na soberania da vontade popular e, esse ente local sendo emissor de soberania para uma macrorregião, passaria a ser soberano, ao invés de ser autônomo". [55] Reforça-se mais esta tese no caso do federalismo brasileiro, no qual há uma proveitosa atividade estruturante nos três níveis federados (União, estados-membros e municípios). Outro fato que mereceu relevo foi a participação internacional da Bielo-Rússia e da Ucrânia na época em que eram apenas estados-membros da URSS.

2.2 TITULARIDADE DO PODER SOBERANO

Perduram alguns contrastes doutrinários sobre esta matéria. Nem o Direito Constitucional nem a Teoria Geral do Estado caminham no sentido de transigir sobre a titularidade do poder soberano. Para uns, o verdadeiro titular da soberania é o Estado; para outros, a soberania concentra-se nas mãos daquele que assume o comando da nação. Destaca-se aqui o sublime apontamento de Rousseau, cuja filosofia já foi supramencionada, cerceia tais ideologias ao patrocinar o povo como real detentor da titularidade soberana.

"Como resultado dessa conclusão, refuta-se as ideias de Maquiavel, Bodin e Hegel lembrando que a ideia de soberania deve ser realmente reestruturada, pois não pode mais ser vista como um atributo do Estado". [56]

O sufrágio universal e a virtude soberana como princípio norteador de vários mecanismos legais são dois exemplos da titularidade pública sobre a soberania, tão quanto pactua a Constituição do Brasil de 1988. Na pós-modernidade, a única fonte do poder soberano, de modo originário, é o povo, que vira seu legítimo titular. Fonte subsidiária desta soberania é a lei (ou contrato social, para Rousseau), que declara a delegação do poder pelo povo ao Estado, que, por sua vez, cumpre ela junto de seus estamentos cruciais (esferas executiva, legislativa e judiciária). O ato popular que delega o poder do povo é passível de revisão a qualquer tempo. Para a saudável realização desse processo, é recomendável a plena colaboração do povo na expressão de suas vontades.

2.3 CORRENTES FUNDAMENTAIS

Várias teorias foram surgindo através do tempo para explicar os fundamentos que formam o poder soberano. Algumas delas são dignas de nosso enfoque, como, por exemplo, a Escolástica Alemã e a Austríaca.

A primeira das principais correntes fundamentais é a teoria da soberania absoluta do rei, sistematizada na França do século XVI, e que atualmente acha-se em desuso contundente. Seu expoente teórico foi Jean Bodin, e serviu como escopo para o estabelecimento e perpetuação de monarquias e impérios. Aparece assim a designação "direito divino dos reis". Deus incorporava-se na pessoa do monarca, que, por consequência, deveria exercer o poder pleno, perpétuo, absoluto e ilimitado. Predominou durante a Idade Média, atingindo seu ápice com o absolutismo europeu desse período.

Surgindo em meio aos praticantes da Escola Espanhola, a teoria da soberania popular parte do princípio do direito divino providencial, aquele dado por Deus ao povo, e não diretamente ao rei, como imaginava Bodin. Gratia argumentandi, o poder público que legaliza a proposição do ser governamental, o que justifica o direito de resistência pelo povo e a limitação da vontade real pela sociedade.

Os déspotas perdem ainda mais seu prestígio com a ascensão da teoria da soberania nacional, exsurgida do pressuposto de que o único poder se origina da nação, que pode ou não consentir com a política de governo. Destarte, compete a pura soberania aos nacionais e nacionalizados na prática da cidadania. A imposição do Parlamento à autoridade executiva de alguns países encontra exímio substrato a partir desta teoria, bem como a tematização da Revolução Francesa e dos movimentos liberais.

Das Escolas Alemã e Austríaca provêm acirradas discussões contra a Escola Clássica Francesa, no que concerne à teoria da soberania do Estado, a qual atribui a esta organização toda e qualquer fonte de poder. Essa ideologia foi um tipo de fomento para os regimes totalitaristas e para a cópula de sentimentos de cunho extremista e nacionalista (como, por exemplo, a xenofobia).

A contrario sensu, tanto a Escola Austríaca como a Escola Alemã modelam o padrão de soberania com bases essencialmente jurídicas, negando restrições advindas do direito natural. Aqui, direito e Estado são papéis que se completam, de modo que um não existe sem a chancela do outro.

Dessa forma, a soberania figura como teor supremo e coativo, erguendo a bandeira da estatalidade jurídica, isto é, a soberania é poder de direito e este estrutura o Estado, de modo que há uma mútua complementação desses pólos. Jellinek e Kelsen são, respectivamente, líderes dos postulados alemães e austríacos.

Para a teoria negativista da soberania, defendida por Leon Duguit, o ideal de soberania inexiste no plano concreto, limitando-se somente ao campo irreal (conceito abstrato ou metafísico de soberania). Segundo os negativistas, soberania compreende um mero serviço público como qualquer outro a ser desempenhado pelo Estado, que reúne em si as noções de pátria, governo e cosmo do direito.

Uma dessas vertentes que vêm tendo relativo destaque refere-se à teoria institucionalista, também conhecida como teoria realista. Estado e nação distinguem-se, apenas ganhando unidade em face do meio internacional. Por isso, a soberania, como expressão da identidade popular, é proveniente da nação, mas só passa a ser exercida através do ordenamento formal dinamizado pelo Estado. Assim, a concretização funcional e objetiva da soberania é realizada por vias estatais de poder. Em virtude desse fato, o Estado exerce a soberania em nome da nação, sendo por ela sujeito a certas limitações e à racionalidade política.

2.4 SOBERANIA E GLOBALIZAÇÃO

Já não vingam mais, na realidade atual, as antigas compreensões absolutas de poder estatal, amargadas em face da vergonha resultante de coordenações totalitárias aparecidas num cenário de animosidade entre influentes países.

[...] após a Primeira Grande Guerra, surgiram os regimes totalitários como o nazista e o comunista que reafirmaram a idéia de soberania absoluta, já que seus sistemas jurídicos primavam pela primazia do Direito Interno em relação ao Direito Internacional. É o que se convencionou chamar de "razões de Estado", ou seja, cada Estado poderia fazer o que bem entendesse com as pessoas que estivessem sob sua tutela. Tal postura acabou por legitimar as atrocidades cometidas pelas lideranças totalitárias contra judeus, homossexuais, ciganos, dentre outros. [57]

Em pleno auge do século XXI, a derrubada de fronteiras emerge de um dos principais e mais fortes fenômenos contemporâneos: a globalização. Este pendor não diz respeito somente a um processo social ou econômico. Acima de tudo, ele simboliza uma inovadora forma de ver o mundo em que vivemos. Sua origem data dos séculos XV e XVI, dos porões da expansão ultramarina que tomou conta do Velho Mundo, mas foi diante da atualidade que a globalização teve significativo impulso, atingindo amplos horizontes. O imperialismo, o universalismo, o mercantilismo e tantos outros comportamentos funcionaram como motores para tal evolução. Tanto que, a partir da década de 90, as utilidades sociais, como ciência, tecnologia e comunicação, foram se aprimorando vertiginosamente, de maneira a se amoldar aos instáveis hábitos humanos. A era global vem tomando espaço e também nosso tempo in totum de forma surpreendente e fascinante, dádiva esta da crescente interação entre os indivíduos e entre as nações de todo o mundo.

O choque de culturas e a extinção de barreiras são consequências inerentes à globalização desenfreada. O contato entre diferentes grupos acelera-se a cada dia que se passa. A circulação de pessoas, serviços e dados convergem numa dinâmica animalesca, sendo que as ações político-econômicas tornam o planeta ainda menor.

Hoje em dia, para sentir a influência da globalização não precisamos ir muito longe. Basta só enxergar com atenção tudo que está à nossa volta. O convívio com produtos importados, multinacionais, assim como os novos tipos de relacionamento derivados da internet, já fazem parte do nosso cotidiano e proporciona a troca rápida de informações numa onda contagiante de avanço ao futuro.

A profusão cognitiva do homem globalizado tem sido a maior de todos os tempos. Se, por um lado, a globalização oferta tantos benefícios, por outro, ela transparece também alguns pontos negativos. Exempli gratia, a globalização mostra seu lado positivo ao promover uma melhor aproximação de países, mas peca ao refletir as disparidades entre eles. Com efeito, o requisito do IDT (Índice de Desenvolvimento Tecnológico) presente na técnica de apuração do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de uma população é uma boa evidência desse vício globalizado.

O Brasil vem se adaptando tardiamente à globalização, juntando os esforços disponíveis para tanto. Consta que o primeiro estímulo oficial nesse sentido foi dado durante a gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (iniciada em 1995), conquistando mais solidez nos governos posteriores.

Ante tais mudanças, o conceito de soberania sofreu latente reformulação, na busca de orquestrar-se à realidade hodierna. A revolução comunicativa pautada pela globalização instiga o fluxo volumoso de informações entre muitos lugares simultaneamente, com uma velocidade imperceptível há alguns anos atrás. Isso incentiva um aglomerado de relações sociais que vão além das fronteiras, comprometendo o controle territorial incumbido ao Estado no exercício da sua soberania.

A informação tem, ainda, o poder de fortalecer ou enfraquecer governos. A globalização e a "democratização da informação" criaram para os governos o seguinte dilema: se o governo mantiver o monopólio da informação, manterá também o controle sobre a população, mas se verá alijado do cenário internacional globalizado; por outro lado, se permitir que a população tenha acesso à informação, perderá um de seus mais poderosos instrumentos de controle. As populações dos mais diversos países estão, com cada vez mais freqüência (e algumas delas pela primeira vez), dizendo aos seus governos o que estes devem fazer por elas; tal seria inimaginável num passado em que apenas uma pequena elite oficial controlava o acesso a todas as informações. [58]

Desse modo, a publicidade de decisões tomadas pelo Estado torna-se uma fatalidade ocasionada pela globalização informativa. Na maioria das vezes, o privilégio internacional de um Estado é mensurado pelo nível de informações mantido entre este, seu povo e outros países soberanos. O rateio de informações, a confecção de tecnologia de ponta, a evolução das redes de transporte e telecomunicações ensejam um fracionamento do poder, porquanto os liames da informação não se atam mais à situação territorial da sociedade. De acordo com Perini:

Essa intensificação da interdependência em escala mundial desterritorializa as relações sociais, e a multiplicação de reivindicações por direitos de natureza supranacional relativiza o papel do Estado-nação, que tem como uma de suas características principais a territorialidade. Há algumas décadas, ficava bem mais evidente a situação de um Estado que deixava de ser soberano após ter seu território invadido e ser subjugado por outro Estado. Hoje, para controlar um país, não se tem só a opção de enviar exércitos e ocupar o território, mas, ao contrário, pode-se controlar a economia do país e modificar os valores culturais dos habitantes, através dos meios de comunicação. Dessa forma, a perda ou a mitigação da soberania ocorre de forma muito mais sutil, mais camuflada. [59]

A revisão conotativa da soberania procede do fato de que esse poder, recentemente com sua investidura clássica ultrapassada, alveja atender às expectativas das novas modalidades de relações sociais. Os Estados, tentando alcançar vasta efetividade, tendem a se unir sob formato de associações superiores e fundadas com a cessão de parte da soberania de cada um deles. Desse jeito, organismos supranacionais despontam em diversos cantos do globo, como a União Europeia, a ONU, a Liga das Nações, o Mercosul, etc.

Neste caso, a soberania perde a caracterização absoluta antes lhe imputada, e passa a ser vista como poder limitado, infinitamente dependente do regime jurídico internacional. A associação entre Estados prevalece num mundo em que uma nação individualmente não consegue abranger as relações globalizadas. O esforço coletivo de países é crucial para esse intento.

Em suma, as relações sociais globalizadas escapam das fronteiras físicas dos Estados, que já começam a repensar seus conceitos de modo a garantir melhor eficácia sobre elas. Para tanto, os Estados teriam que se unir abrindo mão de parte das suas respectivas soberanias para a construção de equipes internacionais, regidas por tratados, e não por leis ou Constituições, mas que ajudam no comando do poder soberano, ainda que redefinido por medidas limítrofes. As obrigações comunitárias pertinentes a essas alianças devem ser incorporadas, ou melhor, internalizadas de acordo com as peculiaridades de cada ordenamento aderente. Na sua exegese, Ives Gandra Matins repousa o raciocínio sobre a mudança no perfil do Estado e da soberania como determinante para a percepção atual:

[...] do Estado Clássico surgido do constitucionalismo moderno, após as Revoluções Americana e Francesa, para o Estado Plurinacional, que adentrará o século XXI, há um abismo profundo. [...] em outras palavras, o Estado Moderno está, em sua formulação clássica de soberania absoluta, falido, devendo ceder campo a um Estado diferente no futuro. [...] n a União Européia, o Direito comunitário prevalece sobre o Direito local e os poderes comunitários (Tribunal de Luxemburgo, Parlamento Europeu) têm mais força que os poderes locais. Embora no exercício da soberania, as nações aderiram a tal espaço plurinacional, mas, ao fazê-lo, abriram mão de sua soberania ampla para submeterem-se a regras e comandos normativos da comunidade. Perderam, de rigor, sua soberania para manter uma autonomia maior do que nas Federações clássicas, criando uma autêntica Federação de países. [...] nada obstante as dificuldades, é o primeiro passo para a universalização do Estado, que deve ser "Mínimo e Universal". [...] a universalização do Estado, em nível de poderes decisórios, seria compatível com a autonomia dos Estados locais, aceitando-se a Federação Universal de países e eliminando-se a Federação de cada país, que cria um poder intermediário que, muitas vezes, se torna pesado e inútil. [60]

Com certeza, "o fenômeno da globalização é o ponto de partida para a migração do poder que se verifica na recente história mundial" [61], a qual suscita uma redefinição político-jurídica a nível contemporâneo.

2.5 LIMITAÇÃO DA SOBERANIA ESTATAL

A soberania em suas diversas formas, tanto interna (supremacia federativa) quanto externa (independência e personalidade internacional), suporta imposições de limites oriundos de múltiplas órbitas. Dentre esses limites, destacam-se especialmente o direito privado dos populares e o direito imperativo da esfera externa.

O Estado é máquina subserviente nata ao povo, e como tal apenas se limita a atender às suas exigências. Prevendo tais relações, as leis se põem como objeto legítimo de limitação do poder, para que o Estado lute pelos ideais estritamente declarados na sociedade civil. A autoridade legal está acima do Estado, haja vista que a lei nada mais é do que a expressão materializada da soberania conferida pelo público. Desta forma, leis, decretos, jurisprudências e, inclusive, os princípios gerais do direito natural atropelam a gana discricionária do Estado, demarcando a atuação desenvolvida por este na perseguição dos seus fins.

A única fonte legítima (originária) de poder, no mundo pós-moderno (mundo da história não linear), é o POVO e a fonte secundária é a lei (ordenamento jurídico) criada pelo POVO, cabendo ao Estado, como uma das instituições da NAÇÃO exercer a função de fazer cumprir a lei pelos segmentos básicos do serviço público (executivo-administrativo, comissário-legislativo, judiciário). Estado não é [...] soberano por atributo intrínseco, mas exerce a soberania por delegação popular numa relação jurídica revisível a qualquer tempo pelo povo. [62]

Arrebatado pelo ímpeto do bem comum, o Estado tem o seu desempenho limitado também por valores arraigados no meio social, como a religião, a ética, a democracia e o culto à família. O respeito a esses fatores confirma o Estado como honroso cumpridor de deveres e adepto do autocontrole. A limitação estatal não deve ser tida como expiação de penalidade, mas como uma condição para o desdobramento pacífico do ciclo internacional.

Não só a sociedade se coloca como limite para a soberania dos governantes, a própria presunção da coexistência de outros Estados consiste noutro veículo que racionaliza esse potencial. Inclua-se aos Estados ainda as organizações, associações (como já tratamos anteriormente) e afins que, como atores do domínio externo, detém o condão de limitar o caráter soberano. É propício exclamar aqui sobre a junção bem sucedida dos países em torno da Comunidade Europeia [63], conforme insinua Eduardo Carlezzo:

O processo de integração europeu, até alcançar um patamar de supranacionalidade, não ocorreu de uma hora para outra, mas sim começou a cerca de 50 anos atrás, com Tratado de Paris, que constituiu a Comunidade do Carvão e do Aço (CECA), inicialmente composta por seis Estados. Este tratado estabeleceu instituições independentes dos respectivos Estados membros que passaram a ser responsáveis pela gerência do carvão e do aço dos mesmos. Outro passo importante foi dado em 1957, com o Tratado de Roma, que criou a Comunidade Européia de Energia Atômica (CEEA ou EURATOM) e a Comunidade Econômica Européia (CEE). Assim, com o desenvolvimento das relações entre os Estados e com as semelhanças dos dirigentes destas três comunidades, em 1992, assinou-se o Tratado de Maastricht, que criou a União Européia. [64]

Porém, mesmo com esse arsenal delimitador e incidente sobre a soberania, devemos nos ater principalmente sobre o influxo dos direitos humanos como argumento para a limitação do poder soberano dos Estados. Será dada mais ênfase a este fato nas próximas meditações. Por enquanto, precisamos saber que os direitos humanos são, nos dias de hoje, uma chave-mestra para a ponderação do ato de limitar ou não a soberania nacional.

O que se pretende com isso não é denegrir ou menosprezar a instituição estatal de forma alguma. O que se intenta com o procedimento de limitação da soberania é lembrar que o Estado deve sempre servir ás veleidades do seu povo, e não o contrário. Pleiteia-se, através da disposição desses limites, um Estado ainda mais apto a tratar os problemas sociais com exatidão, dedicação e perseverança.

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Sobre o autor
Wendell Carlos Guedes de Souza

Bacharel em Direito, Bacharelando em Administração, Auxiliar da Procuradoria Jurídica do Município de Rio Tinto/PB e ex-estagiário do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Wendell Carlos Guedes. A questão das intervenções humanitárias diante da nova ordem internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3064, 21 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20472. Acesso em: 28 mar. 2024.

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