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Transformações no sistema de ilicitudes no Código Civil de 2002

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22/11/2011 às 18:36
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B) A ilicitude pelo risco do empreendimento

Além da cláusula geral da responsabilidade objetiva tratada no art. 927, parágrafo único, também há no Código um dispositivo relacionado ao fato do produto.

O dispositivo não tem sido objeto de estudo como o art. 927, parágrafo único, mas, também, tem grande relevância principalmente tendo em conta que traz uma grande inovação no que diz respeito aos legitimados para responder no caso de acidente de consumo de modo que o comerciante deixa de ser responsável subsidiário e passa a ser responsável solidário.

Além disso, é possível aplicar a responsabilidade objetiva para os casos nos quais a vítima do produto não é um consumidor, como já decidiu de forma acertada o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao julgar um caso em que a empresa fornecedora de botijões de gás, foi considerada responsável pelos danos que o revendedor teve, em virtude de oferecer no mercado botijões com peso incompatível com o anunciado[89].

Vê-se que nesse caso, muito embora não seja reconhecida a relação de consumo, a responsabilidade civil objetiva se impõe tendo em vista a responsabilidade do fornecedor do produto, que por ter fornecido produto com peso inferior ao indicado acabou acarretando danos ao revendedor que respondeu por processo crime tendo em vista a incidência do art. 7º, II e IX, do Código de Defesa do Consumidor c/c art. 29 do CP.

Outro caso que pode merece ser mencionado é o que foi objeto de análise pelo Tribunal do Rio Grande do Sul, no qual foi reconhecida a responsabilidade objetiva por dano sofrido por proprietário de estabelecimento que comercializa bebidas, que teve o olho perfurado, em virtude do estouro de uma garrafa de cerveja[90].

No caso em tela, embora o dano seja expressivo, não há como caracterizar a responsabilidade com base no Código de Defesa do Consumidor, pois a vítima era o revendedor do produto e não um consumidor. Porém, mesmo que não seja possível considerar a existência de relação de consumo, isso não prejudica o reconhecimento da responsabilidade objetiva, pois o art. 931 autoriza o reconhecimento da responsabilidade objetiva. Aliás, esse foi o dispositivo utilizado para fundamentar a decisão ora ementada.

O artigo 931 trata de uma figura denominada risco do empreendimento, segundo a qual todo e qualquer produto posto em circulação que causar dano a outrem obriga o causador do dano a reparar, independentemente de se tratar de relação de consumo ou não.

O grande questionamento que se coloca no caso em questão diz respeito aos casos nos quais se irá aplicar o instituto trazido pelo art. 931.

Sobre isso se manifesta Ruy Rosado entendendo que somente seria cabível a sua aplicação nos casos em que não haja lei específica sobre a matéria, por exemplo, não seria incidente aos casos de responsabilidade decorrente de energia nuclear, relações de consumo, atividade profissional. Assim, toda vez que não existir relação prevista em lei, e o empresário colocar um produto em circulação, responde pelo dano decorrente da circulação, que significa pôr o produto em contato com terceiros, porque exposto, entregue, transportado[91].

Alguns exemplos têm sido trazidos pela doutrina em defesa da aplicação do art. 931 do Código Civil como é o caso da explosão de depósito de fogos de artifício, que embora não tenha provocado nem morte ou ferimento de ninguém, causou prejuízo ao proprietário, tendo sido apurado pela perícia que não aconteceu nenhum defeito de estocagem, que pudesse dar causa à explosão, restou a imputação da responsabilidade do fabricante dos fogos de artifício. Antes do Código Civil de 2002 a responsabilidade seria subjetiva e agora passa a ser objetiva[92].

Outro exemplo é o caso do estouro de pneu de transportadora de carga que leva a graves prejuízos – ação de regresso do prestador de serviço, que tendo respondido objetivamente face ao consumidor pode receber do fornecedor do produto aquilo que teve de indenizar[93].

Além da utilidade da aplicação do art. 931, do Código Civil como pode ser visto dos exemplos acima citados, há outro ponto de extrema relevância que é a análise dos responsáveis.

O dispositivo legal estabelece que respondem os empresários que colocarem produtos em circulação, incluído o comerciante. Aí está a grande inovação do Código Civil de 2002 em relação ao art. 12 do Código de Defesa do Consumidor que somente responsabiliza o fabricante, produtor, construtor e incorporador pelo fato do produto.

No regime adotado pelo Código de Defesa do Consumidor existe uma subsidiariedade em relação aos legitimados, pois, em regra, o comerciante foi excluído da via principal. Já no sistema adotado pelo Código Civil aplica-se a regra da solidariedade. Assim, o comerciante será legitimado para figurar na ação indenizatória mesmo que o fabricante tenha sido identificado[94].

No art. 931 do Código Civil a ótica é distinta do Código de Defesa do Consumidor, pois a responsabilidade está fundada nos danos causados pelos produtos postos em circulação, e o comerciante é peça fundamental.

O Superior Tribunal de Justiça entendeu ser legítima concessionária no caso de defeito de veículo novo[95]; e no caso de máquina agrícola[96], afirmou a responsabilidade entre o vendedor e o fabricante aplicando o art. 18[97].

Além desses aspectos, deve se atentar para o risco no desenvolvimento que é aquele que não pode ser cientificamente conhecido no momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto e do serviço. Defeito que é desconhecido e imprevisível na época em que o produto é posto em circulação. Como exemplo disso podem ser citados os danos provenientes de medicamentos, como foi o caso dos danos provocados pela talidomida[98] que provocaram má formação do feto e prejudicavam o crescimento dos membros superiores e inferiores nos bebês – os casos mais comuns eram os de pessoas que nasciam sem os dedos ou com dedos nos punhos[99].

O grande questionamento que se coloca neste caso é quem são os responsáveis. De um lado, se o fornecedor responder pelos riscos de desenvolvimento, vai tornar insuportável a atividade para o setor produtivo da sociedade.

Por outro lado, fazer com que o consumidor arque com as conseqüências do dano decorrente do risco do desenvolvimento vai na contramão dos princípios da responsabilidade objetiva que tem por fundamento a sociabilização dos riscos. A solução está na fixação de preços e seguros que possam responder a esse problema[100].

É possível considerar os riscos de desenvolvimento como modalidade de defeito do produto ou serviço inseridos nos arts. 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor. Sanseverino adverte que a isenção da responsabilidade civil do fornecedor pelo risco no desenvolvimento somente seria possível se o legislador o incluísse de forma expressa no rol das excludentes, como ocorreu no Direito Comunitário Europeu. Não havendo indicação expressa da forma de exclusão, caberia então a imputação da responsabilidade.[101]

Cavalhieri defende que os riscos de desenvolvimento devem ser entendidos como fortuito interno, risco da atividade do fornecedor, assim com estabelece o enunciado 43 do Superior Tribunal de Justiça “A responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento”.

A esse respeito cabe aqui incluir um ponto que ainda não apresenta solução satisfatória no Código Civil de 2002 a respeito da solidariedade da responsabilidade civil daqueles que participam da cadeia de circulação dos produtos.

O Código Civil admite que tal responsabilidade seja solidária, e o enunciado referido acima autoriza a aplicação do art. 931 nos casos de riscos do desenvolvimento. A leitura conjugada do enunciado e do artigo de lei poderiam supor a responsabilidade do comerciante pelo risco no desenvolvimento?

Esse é um questionamento que não tem sido levantado pela doutrina e por esse motivo não se tem uma resposta ao mesmo, o que não impede de lançar neste artigo o questionamento para reflexão.


CONCLUSÃO

O tema deste artigo é complexo principalmente tendo em conta que se está diante de uma matéria sobre a qual ainda não se tem um posicionamento doutrinário e jurisprudencial consolidado.

O legislador trouxe dispositivos que oportunizam um sistema de norma geral da responsabilidade civil objetiva ao passo que a tradição do Direito Brasileiro era de ter a aplicação da responsabilidade objetiva somente em casos específicos definidos previamente na legislação.

Além disso, a origem desses dispositivos remete à análise do direito comparado, no qual, predominantemente os dispositivos que foram considerados inspiradores das regras gerais da responsabilidade objetiva em verdade seriam modelos de presunção de culpa.

Todos esses elementos contribuem para demonstrar a utilidade de se discutir o tema proposto neste artigo, com o objetivo de se evitar que as regras gerais da responsabilidade civil caiam em desuso ou sejam objeto de decisionismo ou interpretações equivocadas.

Exemplo claro e evidente da preocupação exposta neste artigo é o problema decorrente da tentativa de aplicação do parágrafo único do art. 927 a toda e qualquer atividade. Isso tem gerado alguns inconvenientes como, por exemplo, a sugestão de que seria viável aplicar o dispositivo à atividade do médico, contrariando dispositivo expresso do Código de Defesa do Consumidor que contempla a responsabilidade do profissional liberal considerando-a subjetiva baseada na culpa.

Outro exemplo é o caso dos acidentes do trabalho no qual a responsabilidade civil do empregador é subjetiva, conforme disposição expressa da Constituição Federal, tem se tentado forçar o posicionamento de que a responsabilidade seria objetiva, em posicionamento inconstitucional.

Além disso, não se pode concordar com a interpretação dada ao art. 187 de que a regra institui caso de responsabilidade subjetiva. Alguns doutrinadores equivocam-se em considerar essa responsabilidade subjetiva tendo em vista a inclusão do dispositivo no capítulo que trata dos atos ilícitos. Aos que associam a idéia de ilicitude à culpa ficaria a impressão de que a responsabilidade seria subjetiva, o que não é correto ainda mais tendo em conta que o dispositivo em questão não adotou a forma de ato de emulação que era consagrado no Direito Romano.

Outro aspecto que merece destaque é o exagero no emprego do art. 187 a situações em que, na verdade, haveria lesão a direito de terceiro, vislumbrando-se no caso uma vulgarização do instituto, situação recorrente na responsabilidade civil como ocorreu com o instituto da perda de uma chance e também com as indenizações decorrentes de dano moral.

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Disso tudo, pode-se concluir que a matéria é nova, possui poucos precedentes em nossa legislação, e mesmo encontrando dispositivos idênticos ou parecidos com a legislação comparada, talvez não se possa dar a interpretação que recebe nos países de origem, como se vê no caso do art. 927, parágrafo único, que tem dispositivos parecidos no Direito italiano e português, mas que ao ser transplantado ao Direito brasileiro recebeu outra feição (talvez porque o nosso ordenamento na matéria da responsabilidade civil siga muito mais o modelo francês, que mesmo sem possuir uma legislação nova, está à frente dos modelos Italiano e português).

A única certeza que se pode ter no caso do Direito brasileiro é que será necessário se servir da doutrina e da jurisprudência como suportes para a fixação da disciplina (o que é benéfico, pois possibilita a “oxigenização” do Direito). Pode-se dizer que se está ainda tateando soluções, e que talvez essas soluções não se mostrem palpáveis ao intérprete que lê a legislação com os mesmos olhos que interpretava a legislação anterior.

Como toda e qualquer legislação nova, e, sobretudo aberta, como é o caso dos dispositivos em comento, a interpretação depende de cautela e atenção, sob pena de, ao invés de representar um benefício à sociedade, ser caracterizada como um ponto de insegurança jurídica, culminando com a afronta até mesmo dos direitos fundamentais.


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Sobre a autora
Tula Wesendonck

Advogada em Porto Alegre (RS). Professora Universitária no UNIRITTER e na ULBRA. Mestre em Direitos Fundamentais e Doutoranda em Direito na PUCRS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WESENDONCK, Tula. Transformações no sistema de ilicitudes no Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3065, 22 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20476. Acesso em: 26 abr. 2024.

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