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A possibilidade de transformação do caráter da posse e da detenção.

Interpretação constitucional dos efeitos da posse

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23/11/2011 às 07:36
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b.1) A função social da posse e da propriedade

A função social da propriedade não é novidade no Direito Brasileiro, nos acompanha desde a Constituição Federal de 1934 que no seu art. 113, n. 17, foi a primeira a referir embora garantido o direito de propriedade, o seu exercício não poderia contrariar interesse social ou coletivo. Essa orientação foi retomada na Constituição Federal de 1946 (a Constituição de 1937 somente tratou da propriedade como um direito pleno) no art. 141, § 16 (“É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social...”) e 147 (“O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.”), na CF de 1967 no art. 150, § 22 (“É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, ressalvado o disposto no art. 157, § 1º”) e na de 1969 no art. 153, § 22 (É assegurado o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou interêsse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro...”)[47].

Na CF 88 o princípio da função social aparece no art. 5º, XXIII, 170, 182 e 186. Porém, não é possível referir a matéria sem tecer a crítica ao disposto no art. 185, II da CF que limitou a possibilidade de desapropriação para fins de interesse social nos casos de propriedade produtiva. Sendo a propriedade produtiva somente um dos requisitos do cumprimento da função social, o dispositivo foi visto como negativo no Direito Agrário, pois limitou as possibilidades de exigência de cumprimento da função social da propriedade, já que bastaria a produtividade para tornar a área imune à desapropriação (mesmo que isso fosse alcançado sem atender os outros incisos do art. 186, ou seja, à custa de exploração da mão de obra semi-escrava, sem cuidado preciso com medidas de preservação ambiental, etc.)[48].

Além das disposições constitucionais, o Direito Agrário contribuiu para a aplicação e disseminação do princípio da Função Social da propriedade, tanto na doutrina que marcou presença no cenário nacional em defesa da propriedade funcionalizada (podendo ser citados os Estudos de Paulo Tormin Borges, Fernando Sodero, etc. ) como na Legislação (iniciando com o Estatuto da Terra, que embora tenha sido promulgado na vigência do Regime da Ditadura Militar tinha por objetivo a realização da reforma agrária como mecanismo de efetivação da função social da propriedade e seguindo com a Lei 8629/93).

No âmbito do Direito Civil, embora o Código Civil não autorizasse de forma expressa a compreensão da função social da propriedade, isso se tornava viável pela doutrina que tratava da matéria, podendo ser referido entre outros, importante artigo de Orlando Gomes[49], que trouxe para o Direito Civil a noção de que propriedade é uma função social, no sentido de ser reconhecida como parte integrante da propriedade, ou como alguns preferem sendo uma limitação interna da propriedade[50].

A doutrina civilista sempre tratou da função social da propriedade, mas o que se observa é que a jurisprudência era tradicional no exame da matéria, sendo que a partir da Constituição de 1988, com o que se convencionou chamar de movimento da constitucionalização do Direito Privado passou a se ter uma aplicação mais efetiva da função social da propriedade podendo ser citadas as idéias de Tepedino, Facchini, Fachin e Pelingieri[51] que colaboram para a interpretação integrativa do Direito Civil em consonância com a Constituição Federal.

Esse movimento da constitucionalização foi responsável pela interpretação da legislação civil de 1916 em harmonia com a CF, o que talvez tenha dado uma sobrevida ao Código Civil de 1916. Prova disso é o que já ocorria na doutrina e na jurisprudência a respeito da necessidade de aplicação do princípio da função social no exame de questões envolvendo a posse e a propriedade.

A esse respeito pode ser citado artigo de Marcio Manoel Madaime que na vigência do CC de 1916 já fazia a defesa da possibilidade da mudança do caráter da posse em virtude da função social da propriedade, e também a decisão já referida neste estudo, proferida pelo Juiz Luís Christiano Enger Aires, que depois foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do RS no sentido de exigir a comprovação do cumprimento da função social para a defesa da posse através dos interditos possessórios sob a ótica que a propriedade é um direito fundamental que será protegido, se, e desde que, seja atendida a sua função social.

Se a harmonização da legislação civil com a CF 88 era viável e defendida na vigência do CC de 1916, o qual refletia a defesa do proprietário, atualmente, com CC de 2002, que traz em seu bojo, dispositivos relacionados à função social (da posse e da propriedade!) essa interpretação harmonizada com a CF agora é uma necessidade[52].

O art. 1228 do cc de 2002 traz mostras de que a propriedade não é mais um direito absoluto, está condicionada à sua função social. O dispositivo em questão trata também do abuso do direito e da perda da propriedade pela desapropriação por ato do poder judiciário, limites ao direito de propriedade que não estavam disciplinados no CC de 1916.

Além da referência expressa à função social da propriedade no art. 1228, o CC de 2002 traz também a função social da posse, princípio que estava adormecido no sistema do Direito das Coisas do CC de 1916. Através da função social da posse se vê a valorização do possuidor que cumpre com a função social, tendo no bem a sua moradia, fazendo com que o bem atinja a sua utilidade econômica e social.

Isso pode ser percebido com o art. 1238, parágrafo único do CC que traz a possibilidade de redução de 1/3 do prazo prescricional para o reconhecimento de usucapião extraordinário, nos casos em que o possuidor tiver ali a sua moradia ou então obras de relevante interesse econômico e social[53].

Interessante referir, que o prazo de usucapião extraordinário na redação original do CC de 1916 era de 30 anos, tendo depois passando a ser de 20 anos pela Lei 2.437 de 07 de março de 1955[54]. Agora, com o art. 1238, o prazo de usucapião extraordinário passa a ser de 15 anos (caput) podendo ser reduzido a 10 (parágrafo único), nos casos em que o indivíduo tiver no imóvel a sua moradia ou obras de relevante interesse econômico ou social.

A regra do caput passa a ser exceção, pois dificilmente o indivíduo que não for proprietário do imóvel estará exercendo posse sobre o mesmo sem ter ali a sua moradia ou obras de relevante interesse econômico ou social, ou seja, em regra o prazo de usucapião extraordinário será de 10 anos, privilegiando aquele que cumpre com a função social posse.

Essas informações conduzem à conclusão de que o sistema de posse e propriedade foi alterado no direito brasileiro, e por isso a legislação não pode mais ser interpretada como antes, ainda que alguns dispositivos tenham sido repetidos em sua íntegra.

Além desse aspecto, merece referência o art. 1255 e seu parágrafo único do CC de 2002[55], que tendo em vista a função social da posse mudou o sistema da regra das acessões por plantações e construções que consagrava o princípio superfície solo cedit[56], princípio consagrado no Direito das Coisas desde o Direito Romano. Superfície designava tudo o que se encontrava sobre o solo e a este estaria ligado, vigorando o princípio superficies solo cedit (se alguém constrói sobre nosso terreno, a construção, apesar de realizada pelo construtor em nome próprio, é nossa por Direito Natural, porque a superfície segue o solo)[57].

A força de acessoriedade era tão grande no regime da legislação anterior que não admitia exceções. O proprietário do solo era proprietário das construções e plantações não importando o valor das acessões e também não importando se o proprietário tinha empregado materiais alheios sobre o seu imóvel, caso em que teria a possibilidade de adquirir as acessões, necessitando somente indenizar pelas perdas e danos.

No direito brasileiro houve mudança da regra de que o acessório segue a sorte do principal, tendo em vista a relevância que passou a se dar ao critério da destinação econômica e social do bem, a exemplo do que ocorre com a distinção dada às pertenças, que mesmo sendo bens principais não seguem a sorte do principal[58].

Assim, o critério da acessoriedade passa a ser secundário, já que foi instaurado um sistema de que o acessório nem sempre seguirá o bem principal, pois poderá ocorrer o contrário. No sistema do CC atual para definir as acessões será relevante o valor que a construção ou plantação representa em relação ao terreno, ou seja, se vislumbra uma clara preocupação com o exercício da função social da posse, privilegiando aquele que exerce um poder sobre a coisa com o fito de valorizá-la atingindo a finalidade econômica e social do bem, em detrimento daquele proprietário que por sua inércia, abre mão do exercício da posse da coisa.

Importante salientar que o artigo não estabelece prazo de exercício de posse para essa aquisição, os requisitos são a superioridade do valor das construções e plantações em relação ao terreno e que o possuidor pague o valor do terreno ao proprietário.

Inverte-se a lógica da aquisição da propriedade porque o sistema apresentado no Código Civil de 2002 está adequado à função da posse e da propriedade. Com isso se percebe que propriedade rima com responsabilidade, não basta ser proprietário para garantir o seu direito, é necessário ser diligente, cauteloso e zeloso sobre o bem em questão, sob pena de perder a propriedade para aquele que fizer com que a sua função social seja cumprida.

Esse sistema de relativização da regra das acessões também está adequado ao direito de superfície que veio para o CC de 2002, depois de várias tentativas de inclusão na legislação civil.

O instituto já existia no Direito brasileiro até 1864, quando foi abolido por uma lei que deixou de enumerá-lo entre os direitos reais[59]. No projeto do Código Civil de 1916 havia um artigo que autorizava o direito de superfície, porém tal artigo foi excluído do texto legal quando o projeto tramitou no Congresso Nacional[60]. O Anteprojeto do Código Civil de Orlando Gomes previa o direito de superfície[61]. Quando transformado em projeto, a Comissão revisora formada pro Caio Mário, Orozimbo Nonato e Orlando Gomes, não manteve o direito de superfície[62]. No anteprojeto do CC de 2002 a redação apresentada por Ebert Chamoun não incluía o Direito de Superfície como Direito Real. Posteriormente, por indicação de Miguel Reale e José Carlos Moreira Alves foi incluído o Direito de Superfície[63].

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O direito de superfície é um direito real de gozo e fruição, que permite ao proprietário, que não quiser exercer posse direta sobre o seu bem, transferir o direito real de gozo e fruição do bem ao superficiário. O direito de superfície pode ser encarado como um direito real de proteção do proprietário diligente.

Com a constituição desse direito real o proprietário fica imune ao risco de perda da propriedade pela usucapião ou pelas acessões, bem como fica isento de ter que indenizar o possuidor sobre as construções e plantações feitas no imóvel.

Ao mesmo tempo em que o sistema exige o cumprimento da função social da propriedade, coloca à disposição do proprietário mecanismos que o deixam numa posição de tranqüilidade caso não quiser exercer a posse de forma direta, ficando o direito de propriedade protegido e garantido.

O que se vislumbra é que não existe mais a possibilidade ou justificativa para deixar os bens abandonados sem dar uma destinação econômica e social, pois tal conduta não se harmoniza com o sistema que se coloca no ordenamento atual a respeito da posse e da propriedade.


b.2) A interpretação dos artigos 1208 e 1203 do Código Civil de 2002

Como visto acima, posse e propriedade não podem mais ser vistos como no Código Civil de 1916 tendo em vista o fenômeno da funcionalização da posse e da propriedade, isso influencia a interpretação de alguns artigos que estão no CC de 2002 e que merecem interpretação adequada.

Inicia-se pela interpretação do art. 1208 do CC de 2002. O dispositivo não trata do vício da precariedade, mas isso não pode ser encarado como um motivo para desqualificar a existência de posse nos casos de existência desse tipo de vício.

Essa interpretação teria justificativa se fosse analisado o sistema de aquisição de propriedade e do exercício da posse consagrado no Direito Brasileiro antes mesmo do CC de 1916.

Naquela época não havia a modalidade de usucapião extraordinária. A usucapião ficava condicionada ao exercício de posse de boa-fé e isso era inviável no caso de precariedade[64].

Ao contrário do que ocorria no ordenamento anterior o CC de 1916 previa a possibilidade de reconhecimento de usucapião extraordinária, desvinculada do exercício de posse com boa-fé. Mas, mesmo assim, a realidade vivida antes de sua vigência acabou fundamentando o aparecimento de uma interpretação de que a precariedade jamais cessaria (alguns doutrinadores ainda hoje consideram como requisito indispensável para o reconhecimento de usucapião a posse justa – sob o argumento de que a posse deve ser mansa e pacífica, – o que inviabilizaria o reconhecimento de usucapião nos casos de cessação de violência e clandestinidade. Mas, mansa e pacífica é aquela exercida sem oposição).

Houve na vigência do CC de 1916 a consagração de um dogma trazido na doutrina de que a precariedade, por ser um vício tão nefasto jamais cessaria[65].

Essa interpretação calcada em um sistema anterior ao próprio CC de 1916, embora não fosse autorizado pela interpretação literal dos dispositivos legais, interessava à preservação da propriedade como um direito absoluto e por isso foi vencedora no Direito das Coisas da época.

Porém, o que se vislumbra hoje é uma realidade diferente. E por isso a interpretação não se sustenta mais.

O art. 1208 merece interpretação mais adequada. O dispositivo trata de aquisição de posse, por isso os vícios que estão definidos ali são os de violência e clandestinidade que uma vez cessados dão início à posse injusta. Tal posse pode ser usada para a atribuição dos efeitos da posse, inclusive para fins de usucapião.

No que se refere à precariedade, havendo desdobramento da posse o possuidor direto a possui a título precário, pois sabe que não tem posse plena sobre o bem, deve restituir a coisa ao proprietário. Uma vez implementado o termo para restituição da coisa, se o possuidor direto não restitui a coisa, incide o vício da precariedade. Com isso haverá a mudança do caráter da posse pela incidência do vício da precariedade[66].

Essa mudança do caráter da posse, a qual se dá o nome de intervessio possessionis, está prevista no art. 1023 do cc de 2002, que é o próximo artigo a ser interpretado de forma sistemática.

O art. 1203 é cópia fiel do art. 492 do CC de 1916. Ou seja, sempre houve a possibilidade de interpretar o caso, de acordo com mutabilidade do exercício de um poder sobre a coisa. Porém, essa não era a opção da doutrina e da jurisprudência na vigência do CC de 1916, que estavam vinculadas com um sistema de posse e propriedade voltado a consagrar o direito de propriedade como um direito absoluto.

Tal interpretação já não tem mais lugar no CC de 2002. O artigo usado para justificar o aproveitamento da posse nos casos de vício de precariedade será o mesmo que já estava na legislação de 1916, mas agora receberá outra conotação, fundada em um sistema de Direito das Coisas constitucionalizado.

Assim, segundo o que determina a própria lei, a posse presume-se manter o mesmo caráter com que foi adquirida, mas se houver mudança de comportamento das partes o seu caráter poderá ser mudado, é o que se vislumbra, por exemplo, nos casos em que o possuidor direto passa a possuir sem reconhecer ou se submeter a domínio alheio, porque tendo que restituir a coisa se nega a fazê-lo e o seu proprietário não negligencia a sua proteção. Nesse caso a posse de ad interdicta passará a receber a feição de ad ucapinonem, e uma vez cumpridos os requisitos para uma das modalidades específicas de usucapião haverá a possibilidade de seu reconhecimento.

Esse tem sido o posicionamento da jurisprudência atual que embora não seja unânime, tem crescido de maneira considerável nos últimos anos, e através de uma visão dinâmica da propriedade e não estática da propriedade que admitia a figura do proprietário inerte.

A esse respeito o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu a possibilidade de inversão do caráter da posse em situação na qual o início do poder sobre a coisa se dera em virtude de contrato de trabalho, ou seja, o poder exercido sobre a coisa era inicialmente subordinado ao interesse de terceiro, em virtude da detenção. Depois de terminado o contrato de trabalho, e tendo em vista a inércia do proprietário em retomar o bem, iniciava a posse que perdurou por 50 anos e seria apta a fins de reconhecer usucapião[67].

Outra importante decisão foi proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais que reconheceu a possibilidade de inversão do caráter da posse iniciada na permissão do proprietário, ou no contrato de comodato. No caso concreto haveria a transformação da posse pelo comportamento do possuidor que deixou de exercer um poder subordinado ao proprietário, passando a exercer um poder desvinculado, em nome próprio[68].

A matéria também foi enfrentada no STJ que também reconheceu a possibilidade de transformação da posse nos casos de transformação da posse de imprópria, decorrente de compromisso de compra e venda, para posse própria[69].

Posição semelhante foi tomada pelo STJ em outro julgamento, no qual se discutiu a possibilidade de reconhecimento de usucapião de imóvel que havia sido locado. O Tribunal Superior entendeu viável a transformação da posse nos casos em que ocorre a mudança do caráter da posse (subordinada para própria) quando extinto o contrato de locação o proprietário fica inerte, não toma as medidas cabíveis para a retomada do bem ou para a execução dos aluguéis vencidos, podendo o prazo de posse ser contato para fins de usucapião a partir do momento em que se inverte o caráter da posse[70].

Interessante mencionar que essa decisão foi proferida antes da entrada em vigor do CC de 2002, mas faz uma leitura integrada da legislação, operando a interpretação sistemática. A decisão trata de um caso que doutrina tradicional costumava considerar como ‘exemplo clássico de precariedade, vício nefasto não sujeito ao convalescimento’. Se não fosse por essa visão integrada, a interpretação continuaria sendo nos moldes de preservação da propriedade estática.

A título meramente ilustrativo pode ser referido o Código Civil Português que preferiu tratar da matéria de forma expressa nos artigos 1290 e 1263, d, autorizando o reconhecimento de usucapião do detentor ou nos casos de vício da precariedade desde que haja a aquisição da posse através da inversão do título da posse[71].

Embora não tenhamos uma legislação expressa nesse sentido, a solução a ser dada no Direito brasileiro pode ser a mesma do Direito português, desde que feita uma interpretação harmonizada da legislação com os princípios constitucionais que regulam a matéria.

Não é demasia considerar ainda, que o CC de 2002 ao estabelecer limitações ao direito de propriedade, também dispõe sobre o abandono como uma das formas de perda da propriedade. No art. 1275 do cc de 2002 há a previsão perda da propriedade pelo abandono, e no art. 1276 trata da viabilidade de caracterizar a arrecadação do bem abandonado para o poder público, vinculada ao ato do proprietário de não ter mais a intenção de conservar a coisa como sua e de que o bem não esteja na posse de outrem. A redação do artigo conduz à interpretação de que o proprietário perde a propriedade pelo abandono, para outrem, pelo exercício de sua posse e para o poder público se o bem for arrecadado como vago.

Disso conclui-se que a perda da propriedade pelo abandono é a que ocorrerá se o proprietário não diligenciar a coisa. A propriedade deixa de ser um direito perpétuo, podendo sofrer com os efeitos da inércia do proprietário[72].

Além das considerações tecidas acima, serve para corroborar a possibilidade de mutabilidade do caráter da posse, a análise do art. 1198 do cc de 2002. Esse artigo será referido neste estudo como a finalidade de demonstrar o quanto o Direito das Coisas mudou. Tal artigo refere em seu parágrafo único, de forma expressa, a mudança do caráter de um poder exercido sobre a coisa. Se considerarmos viável a alteração de um poder nos casos de detenção, em que não há posse, há poder exercido com subordinação, com mais razão deve ser considerado o caso de mudança do caráter de posse no caso de precariedade que conta com a inércia do proprietário. Por isso, muito embora seja uma posse com o vício da precariedade, pode se considerar posse para fins de atribuição de seus efeitos, inclusive no que se refere ao reconhecimento de usucapião.

Assim, embora ainda minoritária, é crescente a corrente que acredita não se sustentar mais a proteção absoluta ao direito de propriedade, a qual estaria condicionada ao cumprimento da função social da posse e da propriedade, autorizando a alteração do caráter de um poder exercido sobre a coisa, sem que fosse necessária uma ação positiva do proprietário, podendo a conversão da posse decorrer de uma omissão (como se vislumbra de forma expressa através do art. 1198, parágrafo único do CC de 2002).

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Sobre a autora
Tula Wesendonck

Advogada em Porto Alegre (RS). Professora Universitária no UNIRITTER e na ULBRA. Mestre em Direitos Fundamentais e Doutoranda em Direito na PUCRS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WESENDONCK, Tula. A possibilidade de transformação do caráter da posse e da detenção.: Interpretação constitucional dos efeitos da posse. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3066, 23 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20477. Acesso em: 24 abr. 2024.

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