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O conceito de cidadania e as relações intersociais

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23/11/2011 às 06:30
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A cidadania diz algo a mais que ser membro de uma comunidade, mas diz que sendo parte dela, em sua plenitude, o cidadão tem direitos e deveres. A consciência jurídica desta condição e a disposição de encorajamento a fazê-la viva na ordem jurídica, ética e moral, poderá ser intitulada como civismo.

RESUMO:

O presente estudo tem por escopo apresentar os mais variados significados do termo cidadania, bem como demonstrar que só se pode falar em cidadania na medida em que houver relações intersocias e um formação adequada para o bem viver em comunidade.

Palavras-Chave: Cidadania, Relações Sociais, Sociedade

ABSTRACT:

The scope of this study is to present the most varied meanings of term citizenship, as well as demonstrating that one can speak of citizenship as where there is a relationship intersocietal and appropriate training for good living in community

Keywords: Citizenship, Social Relations, Society

Sumário: 1.Introdução; 2 Cidadania: Conceito e Etimologia; 3 As Individualidades e a Convivência Comunitária; 4 Os Diversos contextos do termo Cidadania; 5 Considerações Finais; 6 Bibliografia.


1 Introdução

Em nosso idioma, cidadania é um vocábulo equívoco, cujo conceito possui abrangência que o torna quase inesgotável, tantas lhes são as aplicabilidades e as situações em que se torna cabível: seus limites não definidos exaustivamente dificultam sua explicação por parte do ensinador, mas, por mais ambíguo que possa parecer, facilita o entendimento àquele que recebe o ensinamento.

Poderá o mestre sentir que a sua sapiência não se faz bastante para esgotar o termo, entretanto, sentir-se-á satisfeito ao perceber que o discípulo apreenderá, com exatidão, os conceitos transmitidos a respeito do que deverá saber para se comportar como cidadão capaz de exercitar e de exercer sua cidadania no seio da comunidade por ele habitada ou freqüentada.

Dessa forma, considerando a necessidade de uma elaboração do conceito, pretende-se com este estudo apresentar algumas considerações acerca do conceito de cidadania e sua abrangência epistemológica.

Neste âmbito, considerar-se-á a cidadania sob o seu aspecto sócio-comunitário, compreendendo-se, nessa conceituação, o viver, o conviver e o interagir de pessoas no seio de um ambiente em que a vida de cada qual se inter-relaciona com as vidas de outrem, situação essa que faz brotar normas de conduta limitadoras da liberdade individual, mas que possibilitam a vivência in comuna, razão pela qual, valorar-se-á, em muito, a lei constitucional, pois, adiante, será tratado o exercício da cidadania como direito fundamental do cidadão que vive no território da República Federativa do Brasil.


2 Cidadania: Conceito e Etimologia

A própria etimologia do vocábulo[1] remete à concepção de vida comunitária, de viver em sociedade, de levar a vida em conjunto com outros indivíduos e com outras comunidades, os quais ? indivíduos e comunidades ? certamente possuirão culturas (modus vivendi) próprias e diferenciadas.

Implícitas no conceito da palavra cidadania encontram-se as idéias de limitação à individualidade e à liberdade pessoal de agir, e também as noções basilares de aceitabilidade das diferenças, de solidariedade, de mútuo respeito, e, ainda, de consideração para com o ambiente e para com a natureza.

Nas relações interpessoais sobressaem outros aspectos subjacentes nos significados etimológicos da palavra: o subjetivo direito individual e coletivo ao exercício do poder político (escolher e ser escolhido); a prática da política em prol da comuna; o cuidado e a boa convivência com os demais concidadãos (aqueloutros que também vivem nas suas cercanias); o respeito aos aparelhos estatais (instituições, regramentos, bens materiais ou imateriais etc.); a cooperação para o bem estar alheio; o resgate daqueles indivíduos e grupos que (por razões econômicas, raciais, étnicas, físicas etc, geralmente alheias à sua vontade) são postos à margem do status que se convenciona denominar-se sociedade; e a consideração para com os valores que o grupo acredita devam ser aceitos e seguidos por todos os seus integrantes.

A vida em sociedade é condição necessária à sobrevivência da espécie humana. Desde o início os homens têm vivido juntos, formando agrupamentos, como as famílias, por exemplo. Para o sociólogo Karl Mannheim, os contatos e os processos sociais que aproximam ou afastam os indivíduos provocam o surgimento de formas diversas de agrupamentos sociais, de acordo com o estágio de integração social. Tais formas são os grupos sociais e os agregados sociais. [...]. Grupo social é a reunião de duas ou mais pessoas, associadas pela interação, e por isso, capazes de ação conjunta, visando atingir um objetivo comum. [...]. Existem, além dos grupos sociais, formas diferentes de agrupamentos sociais, chamados em Sociologia de agregados sociais. Agregado social é uma reunião de pessoas frouxamente aglomeradas que, no entanto, mantêm entre si um mínimo de comunicação e de relações sociais. O agregado social não é organizado e as pessoas que dele participam são relativamente anônimas.[2]

A noção de cidadania, transpostos os cercos etimológicos, possui diversos e amplos aspectos sob os quais poderá ser explorada, explicada, estudada e compreendida, mas, sempre iniciando da noção de que se refere à relação social que põe, frente-a-frente (lado-a-lado), pessoas humanas vivendo em comunidade (entendendo-a como todo e qualquer agrupamento de pessoas que espontaneamente, ou por razões sócio-históricas, ocupe o mesmo espaço geográfico, não se olvidando, no entanto, dos muitos conceitos comportados pelo termo comunidade, inclusive o atualíssimo termo comunidade virtual, o qual evoca os grupos que se comunicam e se inter-relacionam por meio da rede mundial de computadores) e em sociedade. “A sociedade é o conjunto das relações “horizontais” dos indivíduos e dos grupos. Sua estrutura específica é a organização do trabalho da comunidade, a rede das funções sociais”[3].

Não há que se falar em cidadania quando se referir, hipoteticamente, a um só indivíduo humano sobrevivendo isoladamente em um recanto qualquer deste vasto mundo, por mais bem cuidado que seja esse tal recanto, e por mais esmiuçados e bem comportados que sejam as rotinas e os afazeres com que esse tal hipotético indivíduo viva seu cotidiano.

Não existirá qualquer ato ou atitude desse indivíduo que o conduzirá ao contexto de cidadania no conceito que ora se pretende tê-lo. Poderá haver, em alto grau e de forma inegável, a consciente (se lá fôra deixado após conhecer do convívio com outros homens) ou inconsciente (se nascido só, ou se lá largado sem conhecer do convívio com outros semelhantes) noção possuída por esse ser sobre estética, higiene, preservação do meio, segurança pessoal, respeito à natureza, conhecimentos esses que alguns poderão entender (acertadamente ou não) como inatos, ou a priori, a todo humano, e que poderão exteriorizar-se mesmo nas ações e nas rotinas diárias de qualquer ermitão que viva ao largo.

A relação social eu-tu[4], e a interação eu/tu-meio, é imanente à noção de cidadania, pois que sem a vivência comunitária e sem os respeitos de um e de outro para consigo mesmo e para com a natureza (aqui entendida abarcando o ambiente físico no qual os indivíduos e as comunidades habitam e convivem), não haverá como se falar em cidadania, pois que lhe faltará um pressuposto básico, o qual se trata da própria relação social entre as pessoas.

Entre seres humanos poderá se falar em relação social, em convívio/convivência, e em amor/razão; entre seres humanos e seres da natureza somente haverá relação de posse, de propriedade, de uso/conservação, ou de abrigo/abandono. Por maior que seja o sentimento que um humano nutra para um animal (ou para com qualquer outra coisa animada ou inanimada), não se poderá dizer que haja amor entre eles. Que haja sentimentos recíprocos entre humanos e alguns outros seres animados é até aceitável, mas que haja amor é de se questionar, pois o amor é um sentimento que se acredita ser próprio dos seres humanos para com outros seres humanos, e significa, em termos simplistas, que uma pessoa deseja a outra pessoa para que, juntas, sigam uma vida comum e possam compartilhar seus momentos e seus tempos. Quando uma pessoa humana deseja um animal (ou deseja qualquer outra coisa animada ou inanimada) não se pode dizer que a natureza (a fonte, a origem, a motivação emocional) do sentimento seja a mesma do amor, o máximo que se pode entender é que a pessoa deseja tal coisa para tê-la (posse/propriedade) por prazo indeterminado; nessa relação, o outro ser pode possuir, em relação ao seu possuidor/proprietário, reflexos que lhe induzam instintos de segurança, de proteção, de alimentação, ou de carinhos sobre sua pele (penas, pelos).

Não é lúcido entender e partilhar do entendimento de que uma pessoa humana possa amar (em sentido estrito) um animal ou um bem inanimado qualquer, ou que essa tal pessoa possa encontrar-se perdidamente apaixonada por essa tal coisa; pode-se, perfeitamente, aceitar que tal pessoa nutra afeição demasiada pelo objeto do seu querer em grau e em intensidade até mesmo maiores que o sentimento que possa sentir em relação a qualquer outro semelhante da espécie humana, mas, aí, entrar-se-á em discussões psíquico-sociológicas e comportamentais que extrapolam a razão e motivação deste trabalho.

O sentimento do amor, para existir, necessita de, ao menos, dois seres humanos que se conheçam e que, por mínimo tempo, tenham convivido em tempo e espaço aproximados. Da convivência (relação social) havida entre ambos irá sobressair – ou se terá sobressaído ? normas elementares e não formais de partilhamento dos próprios sentimentos e das condições materiais e imateriais – emocionais - de vida comunitária, das quais a urbanidade e a cidadania estarão se materializando e se constituindo.

Essa digressão se fez necessária para reforçar a convicção de que, ao se tratar de cidadania, por mais ilimitada que seja a abrangência do vocábulo, no mundo fático não se deve afastar de quaisquer de suas interpretações as inter-relações sociais e as interações homem-natureza, sejam consideradas entre indivíduos, sejam inter e entre comunidades, pois a própria palavra se correlaciona com a vivência e convivência das pessoas no meio social e no meio-ambiente em que vivem.

Quando se afirma que cidadania está direta e umbilicalmente afeta às relações sociais entre humanos, a remissão ao meio-ambiente e à natureza não se situa fora do contexto, haja vista que as pessoas se relacionam e convivem em um espaço físico (meio-ambiente, natureza) que lhes fôra legado pelos seus antecedentes, e que elas possuem a responsabilidade de bem legá-lo aos descendentes, razão pela qual, no conceito de cidadão, também se encontra subentendido o respeito e a preservação do espaço físico terrestre e das condições ambientais que sejam propícias à continuidade da vida na Terra.

Ao se deixar ao largo as questões etimológicas e conceituais da palavra cidadania, partindo-se para um estudo a respeito daquilo que se entende por, e como se pode praticá-la na vida real, também será possível notar que são incontáveis as circunstâncias e os aspectos em que se poderá inseri-la, sem fugir da sua gênese etimológica latina.

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3 As Individualidades e a Convivência Comunitária

Independentemente da corrente filosófica que se professe, o certo é que as pessoas são individuais. Mesmo quando em turba, cada uma das pessoas que formam a multidão age por razões próprias, mesmo que a motivação seja coletiva. Essa individualidade, essa pessoalidade característica do ser humano, se mostra e se ressalta em vários aspectos da vida cotidiana, mas pode ser melhor visualizada (e até mesmo melhor entendida e estudada) no ambiente familiar: não quantos filhos nascidos e criados em uma mesma família, em condições sociais, econômicas e emocionais assemelhadas, que estudaram e freqüentaram lugares também assemelhados, e que possuíram amizades com as quais também conviveram assemelhadamente, possuem e desenvolvem personalidades díspares, algumas díspares em tal intensidade que não raro se verifica o descaminho de algum dos irmãos para além da própria legalidade jurídico-social.

Essa peculiaridade se torna ainda mais aguçada quando se verifica que o mesmo acontece quando se trata de famílias com irmãos gêmeos univitelinos, os quais, muito embora aparentem fisionomia em tudo semelhante, podem, também, ser dotados de personalidades totalmente diferentes: sociável/retraído, afável/brusco, fraternal/celerado.

Muitos foram os cientistas e pensadores que gastaram seus saberes na tentativa de demonstrar como? e por que? cada um possui essa pessoalidade que o torna único e diferenciado, muito embora oriundo e vivendo no mesmo meio – na mesma comunidade – que tantos outros. Existem correntes de conhecimento que tentam explicar a personalidade humana pela genética, pela gênese/essência do homem, ou como sendo produto do próprio meio, mas o certo, mesmo não se sabendo tudo, é considerar que nada é por total, nem nada deve ser excluído. A pessoa humana é individual não por uma ou outra causa, nem por um ou outro fator, tampouco por um ou outro aspecto considerado isoladamente, mas o é pelo somatório de cada momento em que sua história foi sendo construída por ela própria e pelas circunstâncias (pessoais, familiares, sociais, políticas etc) passadas e presentes que, direta ou indiretamente, a afetaram, ou ainda estejam a afetá-la, tanto física quanto emocionalmente. A individualidade humana é um eterno devir.

Essa força individual é tão marcante na vida de cada indivíduo humano que mesmo que o Estado ofereça e empreenda aparato, treinamento e doutrinação voltados à uniformização de pensamento e de procedimentos do seu povo, haverá sempre um querer pessoal que se sobreporá ao desejo estatal e às normas uniformes estabelecidas. A literatura e a filmografia de ficção estão repletas de obras que tratam da tentativa vã do Estado de aparelhar sua população com um jeito único de pensar e de agir: porém, em determinado momento, o cordão se rompe por ato de alguém que se conscientiza e se contraria com aquele modus et forma vivendi, e termina por desmantelar toda a organização estatal, fazendo com que todos os demais se revoltem e se voltem para as díspares vidas que cada qual poderá viver doravante. Pode-se concluir, sem a necessidade de estudos sócio-antropológicos mais aprofundados, que o homem, muito embora seja voltado para a vida social, possui sua própria individualidade, a qual é única, pois cada um é individualmente diferente de seu próximo e de seu par. O subjacente a essa individualidade é aquilo que caracteriza e se denomina dignidade da pessoa humana.

É ela, a dignidade, o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. [...] A dignidade humana é um valor já preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato já de ser pessoa. Se ? como se diz ? é difícil a fixação semântica do sentido de dignidade, isso não significa que ela possa ser violada. Como dito, ela é a primeira garantia das pessoas e a última instância de guarida dos direitos fundamentais. Ainda que não seja definida, é visível sua violação, quando ocorre. Ou, em outros termos, se não se define a dignidade, isso não impede que na prática social se possam apontar as violações reais que contra ela se realizem.[5]

Para estudar e tentar oferecer explicativas sobre as individualidades humanas e sobre as forças que exercem no proceder de cada um, muitos já se debruçaram e já trouxeram à luz diversas teorias, as quais se encontram expressas em obras de cunho antropológicas ou sócio-filosóficas que mostraram o entendimento de cada estudioso a respeito. Aqui não se tem o intuito de voltar às raízes desse tema, mas abordar, superficialmente, os limites que se impõem a essas individualidades em prol da convivência social e da vida em sociedade, derivando, por lógica, para as noções de cidadania, a qual será entendida e estudada como o viver individual responsável pela harmonia da vida sócio-comunitária e para o respeito, preservação e conservação do meio ambiente saudável como direito inalienável das gerações futuras. Nesse sentido, encontra-se previsão expressa na Constituição da República Federativa do Brasil, contida no Título VIII, Da Ordem Social, no Capítulo VI, dedicado ao Meio Ambiente:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

(...)

§ 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

§ 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

§ 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais [...].

O homem, desde que se tem memória, sempre viveu em bandos, até mesmo quando de seus ancestrais ainda não sapiens. Não se tem notícias, nem grafismos em paredes de cavernas nem restos mortais (fósseis) que permitam afirmar que, em alguma época – mesmo nos seus primórdios mais longínquos – o homem tenha sido um animal solitário, a viver isolado e apenas se agrupando em épocas específicas; mesmos fósseis encontrados aleatoriamente em diversos cantos do planeta não induzem à certeza da vida solitária da espécie humana, sendo muito mais coerente o entendimento de se tratarem, tais fósseis, de um ou outro indivíduo que por motivos diversos tenha se desgarrado do seu bando, ou preferido se isolar. O homem, pela sua história conhecida, pode ser considerado com um animal voltado ao convívio com seus semelhantes: a vida em grupo lhe é peculiar.

Sobre o homem e o seu estado natural muitos já escreveram (Jean-Jacques Rousseau – 1712/1778; Thomas Hobbes – 1588/1679; John Locke – 1632/1704; dentre tantos), com cada pensador propondo sua teoria sobre como, quando, e por qual razão o homem voltou-se à vida em sociedade. Por ora, importa que por qualquer que tenha sido sua primeva motivação, os seres humanos preferem viver comunitariamente, pois se sentem inexistentes, diminuídos, enfraquecidos e inseguros se isolados dos seus pares. A presença e a proximidade com seus iguais são fatores para sua vontade de viver: a relação social eu-tu insere-se e não se dissocia do viver humano. Cada pessoa humana possui a individualidade que a torna única, no entanto, essa pessoalidade não lhe é suficiente para viver a sós e isolada consigo mesma, necessitando, para a complementação da sua própria vida, do contato e do convívio com seus semelhantes.

A contradição dialética que se apresenta ao se ter juntos e convivendo socialmente tantos seres humanos possuidores de características e personalidades próprias e individualizadas é a seguinte: se cada um é conforme sua história, e se todos o são por direito, como (e por qual régua) delimitar para cada ser os limites da liberdade individual que poderão permitir a harmonia na convivência comunitária interpessoal, sem que se firam os direitos e as individualidades pessoais, e sem que se torne a vida em comunidade extremamente egoísta, a ponto de inviabilizar a própria convivência comunitária?

Pode-se entender que nos tempos primevos a convivência grupal foi determinada também pela fragilidade física do indivíduo primitivo em comparação com as agressividades do meio natural em que vivia, seja em vista de outros animais predadores daquela pré-história, seja pelas próprias intempéries da natureza então reinante.

É óbvio que os seres viventes naquele ambiente hostil foram induzidos a se adaptarem àquele meio, adaptando suas condições individuais de autopreservação e de preservação da própria espécie (daí o valor da teoria evolucionista, na qual Charles Darwin e seguidores teceram o pano de fundo da seleção natural que, segundo seus defensores, possibilitou o aperfeiçoamento e a adaptação de cada espécie devido ao aperfeiçoamento e adaptação dos indivíduos dessa espécie ao meio[6]).

O homem, por necessidade e também por instinto, e como uma das formas de se adaptar para sobreviver, decidiu por se agrupar em bandos. Naqueles tempos iniciais, a força física bruta impôs os primeiros limites à individualidade de cada qual. Ao se dar um salto na história, transpondo as épocas em que o homem não passava de simples animal, para se pousar em tempos em que ele já se encontrava formado como hoje se o conhece – homo sapiens – também se verifica que apesar de nômade, ainda assim o era em grupo de indivíduos ligados, ao menos, pela consangüinidade.

Ao deixarem a suas condições de vagantes para deitarem raízes em determinados locais (por já terem dominado as técnicas do plantio agrícola, da domesticação de animais, do fabrico de armas e de instrumentos), os indivíduos se viram então com novos problemas a lhes fazer frente: se antes, quando nômades, a cata diária de alimentos e a fuga constante dos predadores eram-lhes os acontecimentos cotidianos mais preocupantes da sua vivência, a partir de enraizados em espaços geográficos delimitados e definidos, outras foram as preocupações que lhes achegaram: as noções rudimentares de propriedade (da terra, do abrigo, das colheitas, da animália, dos instrumentais e ferramentais); de intimidade (com os seus companheiros/as, descendentes e ascendentes), internando os fundamentos iniciais de família; da convivência diária com os demais indivíduos e famílias do grupo (criando rusgas outrora inexistentes).

Ainda nessas primeiras épocas, o poder do líder de cada família ou de cada agrupamento pode ser tido como a fonte da limitação individual em razão da harmonia do viver comunitário. Entretanto, com o natural crescimento populacional proporcionado pela tranqüilidade de uma vida sedentária (somado com a fixação de várias famílias em determinadas áreas, formando os primeiros agrupamentos que evoluíram, com o tempo contado em séculos, para as aldeias e para as polis), a força física do líder familiar ou tribal já não era suficiente para se harmonizar as individualidades e as liberdades individuais. Algo mais forte que a própria força física bruta se fazia necessário para esse mister.

Intuitivamente, os próprios indivíduos se aperceberam de que a vida sedentária em grupo – e entre grupos – exigiria que cada um seguisse um padrão mínimo de comportamento público para o seu bem, para o bem do grupo, e para o bem da própria liberdade individual de agir. Por paradoxal, o indivíduo mais livremente poderia agir quanto mais agisse em conformidade com o padrão médio das regras sociais propostas e aceitas pelos costumes do grupo – ou dos grupos – no qual convivia. Têm-se, então, que a liberdade individual de agir delimita-se pelo padrão das normas sociais de comportamento aceitas pela comunidade então referenciada.

Tais normas de condutas sociais, conforme a época histórica e faceta estudadas, poderão ser entendidas como normas jurídicas, ou como valores/princípios, ou como simples normas sociais lato sensu.

Entre as comunidades de viventes humanos, várias instituições foram se formando e se “materializando” com o contar do tempo em centenas e milhares de anos, e se encarregaram de normatizar a convivência comunitária; cada uma dessas instituições se formou por motivos distintos e com finalidades distintas, mas cada qual procurou, a seu modo e para seus fins, tranqüilizar a vida intra e extra comunitária (a Família – a perpetuação dos grupos pela descendência, a moradia-lar, a disciplina e a harmonia entre os consangüíneos; o Estado – o poder, as instituições públicas e o direito positivado; a Igreja – a salvação espiritual e a moral religiosa; a Política – as agremiações e o acesso ao poder; a Sociedade – as classes e as divisões sociais, a propriedade, o direito privado, a divisão social do trabalho e a acumulação de bens materiais).

Nesse contexto, pode-se entender cidadania como o conjunto de normas e de regras de condutas individuais que se projetam para a boa e harmônica convivência em sociedade, considerada a harmonia não somente em relação às relações interpessoais, mas também em face do ambiente saudável. Essas normas e regras poderão advir de instituições ou dos costumes do povo da terra.

As condições sociais não permitem, muitas vezes, dar livre vazão à liberdade; assim, a melhor solução para este problema é oferecida pela visão de que a sociedade não é uma mera soma de indivíduos, senão algo assim como uma síntese, uma unidade dinâmica, determinada pelo processo de interação do todo com suas partes constituintes[7].

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Sobre o autor
Douglas Aparecido Bueno

Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2010). Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2005). Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba (2011). Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem experiência nas áreas de Direito e Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: bioética, cultura, filosofia, direito, ética, educação e cidadania.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUENO, Douglas Aparecido. O conceito de cidadania e as relações intersociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3066, 23 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20478. Acesso em: 24 abr. 2024.

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