O procedimento tributário, assegurado constitucionalmente por força do artigo 5º, incisos XXXIV, alínea “a” e LV, é considerado um dos elementos caracterizadores do Estado de Direito, motivo pelo qual, todos os seus atos devem respeitar os princípios afetos à Administração, bem como aqueles garantidores dos direitos dos contribuintes.
É, portanto, assegurado ao contribuinte o direito de tentar desconstituir a exação que lhe foi imposta, mediante a utilização do processo administrativo tributário, que é regido por legislação específica de cada ente da federação.
Assim, discordando da exigência tributária que lhe foi imposta, duas possibilidades de são abertas ao contribuinte: deduzir sua discussão diante dos contenciosos administrativos ou ingressar em Juízo.[1]
É vedado, portanto, nos termos do artigo 38, parágrafo único, da Lei n° 6.830/80, que o administrado submeta a discussão concomitantemente na esfera judicial e administrativa, sob pena de ensejar decisões contraditórias e afrontar o princípio da segurança jurídica.
Seguindo a teleologia da Lei de Execução Fiscal, a jurisprudência pátria é unânime no sentido de que a propositura de ação judicial com objeto idêntico de processo administrativo tributário implica em renúncia ao questionamento na esfera administrativa ou desistência de eventual recurso. Vejamos:
TRIBUTÁRIO - PROCESSO CIVIL - SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO - CERTIDÃO POSITIVA COM EFEITO DE NEGATIVA - EXCLUSÃO DE REGISTRO DO CADIN - MANDADO DE SEGURANÇA AJUIZADO - IMPUGNAÇÃO ADMINISTRATIVA CONCOMITANTE - ART. 38, PARÁGRAFO ÚNICO DA LEF - SUFICIÊNCIA DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL.
1. Inexiste omissão em acórdão que se pronuncia sobre as questões jurídicas debatidas no curso do processo.
2. O art. 38, parágrafo único da Lei 6.830/80 impõe a renúncia à instância administrativa pelo ajuizamento de ação na esfera judicial, de modo que a causa de suspensão da exigibilidade motivada pela impugnação administrativa deixa de existir, sendo inviável a concessão de certidão de regularidade fiscal (cf. art. 206 do CTN) e a retirada do nome do devedor do CADIN.
3. Recurso especial provido.
(RESP 200902026452, ELIANA CALMON - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:22/06/2010.)
TRIBUTÁRIO. INTERPOSIÇÃO DE RECURSO NA VIA ADMINISTRATIVA. PROPOSITURA DE AÇÃO JUDICIAL PARA DISCUSSÃO SOBRE O MESMO DÉBITO. NEGATIVA DE SEGUIMENTO DO RECURSO ADMINISTRATIVO.
1. A disposição normativa que prevê que "a propositura pelo contribuinte, contra a Fazenda Pública, de ação judicial - por qualquer modalidade processual - antes ou posteriormente à autuação, com o mesmo objeto, importa a renúncia às instâncias administrativas, ou desistência de eventual recurso" (Ato Declaratório Normativo - COSIT n. 3, de 14 de fevereiro de 1.996), não se mostra arbitrária, na medida em que prestigia a escolha feita pelo contribuinte de buscar a jurisdição para a solução definitiva do tema em debate na seara administrativa.
2. O não recebimento do recurso administrativo, em razão de aparelhamento de ação judicial voltada a discutir o mesmo tema, não é ato que mereça correção pela via do mandado de segurança.
3. Apelação a que se nega provimento.
(AMS 200103990229181, Relator: JUIZ CONVOCADO WILSON ZAUHY, TRF3, JUDICIÁRIO EM DIA - TURMA C, DJF3 16/11/2010)
Na hipótese em que a decisão administrativa final seja total ou parcialmente desfavorável ao sujeito passivo, este ainda poderá dirigir-se ao Judiciário com o escopo de modificá-la, uma vez que o artigo 5º, XXXV da Constituição Federal garantiu o direito de ação e a inafastabilidade da apreciação do Poder Judiciário.
Acerca da garantia constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, expõe com propriedade Almedario Araujo Castro:
Um das mais importantes garantias constitucionais, aplicável ao processo judicial tributário, é a inafastabilidade do controle judicial, consagrada na cláusula do art. 5º, inciso XXXV, da Carta Magna (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”).
Nestes termos, a lei, qualquer lei, não pode, direta ou indiretamente (mediante requisitos incongruentes ou desprovidos de razoabilidade) evitar que o Poder Judiciário, por seus membros, tome conhecimento e decida sobre lesão ou ameaça a direito do contribuinte.[2]
No entanto, persiste a celeuma acerca dos efeitos da decisão do órgão máximo administrativo favorável ao contribuinte: a decisão é vinculante para a Administração ou se esta pode buscar o Judiciário para invalidar ato proferido por órgão seu?
Neste passo, a doutrina não é unânime. O entendimento majoritário, defendido, dentre outros, por Hugo de Brito Machado[3] e Dejalma de Campos[4], é que a Fazenda não pode ir ao Judiciário contra a decisão de um órgão que integra a própria Administração, diante da sua falta de interesse processual para propor ação anulatória.
Para esta corrente doutrinária, entender de forma diversa, além de ferir o princípio da segurança jurídica, equivaleria a relegar a discussão administrativa do débito à ineficácia, uma vez que após todo curso procedimento administrativo tributário, poderia a Administração ingressar em juízo para anular ato de representante seu que lhe foi total ou parcialmente desfavorável.
Neste sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello defende que as decisões de última instância dos órgãos colegiais da Administração, em que há participação dos administrados, são dotadas do caráter de “coisa julgada administrativa”, a qual “compreende, além da irrevogabilidade, uma irretratabilidade que impede o questionamento do ato na esfera judicial, ao contrário da mera irrevogabilidade, que não proíbe à Administração impugnar em juízo um ato que considere ilegal e não mais possa rever na própria esfera.[5]
Outra corrente, no entanto, utilizando a teoria dos atos administrativos, defende que seria perfeitamente aceitável à Fazenda Pública buscar o Poder Judiciário para desconstituir as decisões da sua Administração Tributária quando contrárias à lei, eis que, nestes casos, os atos seriam nulo.
Primeiramente, cumpre registrar que as decisões oriundas dos órgãos que compõe a Administração Tributária, como o Conselho de Contribuintes no âmbito federal, revestem-se da natureza de ato administrativo, porquanto emanam da manifestação unilateral de vontade da Administração visando a constituir, resguardar, conservar ou extinguir direitos, e impor obrigações a si própria ou a terceiros.
Desta feita, a doutrina tem rechaçado veementemente a utilização do termo “coisa julgada administrativa”, uma vez que, nos termos do artigo 6º, § 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil, coisa julgada representa a imutabilidade das decisões judiciais.
Enquanto a coisa julgada representa “a imutabilidade da norma jurídica individualizada contida na parte dispositiva de uma decisão judicial”[6], a decisão final do processo administrativo tributário, por sua vez, nada mais é do que uma decisão que tramitou até a última instância administrativa, podendo ser modificada pelo Judiciário, diante da faculdade atribuída ao sujeito passivo de questioná-la em Juízo. Somente após a decisão judicial final é que se pode falar em coisa julgada, que poderá ser contra ou a favor do administrado.
Sobre o tema, leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
Não pode a Administração proferir decisões com força de coisa julgada, pois ninguém pode ser juiz e parte ao mesmo tempo ou ninguém pode ser juiz em causa própria. Aliás, é essa precisamente a distinção fundamental entre a função administrativa e a função jurisdicional.[7]
Assim, as decisões administrativas são dotadas do caráter de definitividade, o qual se encontra disciplinado no âmbito federal nos artigos 42 e 45, do Decreto nº 70.235/72 (Lei do Processo Administrativo Fiscal), significando apenas que a decisão se tornou irretratável pela própria Administração.
Seguindo este entendimento, ensina Hely Lopes Meirelles que “o que ocorre nas decisões administrativas finais é, apenas, a preclusão administrativa, ou a irretratabilidade do ato perante a própria Administração”[8].
Acontece, que, como espécies de atos administrativos, as decisões administrativas desfavoráveis ao Erário só serão dotadas de definitividade quando estiverem devidamente fundamentadas na legislação vigente. Se, no entanto, padecerem de vício de legalidade, poderá a Administração buscar o Judiciário para discutir a validade de tais decisões.[9]
Tal fato ocorre, pois os atos administrativos só serão válidos caso tenham emanado de agente competente, com finalidade pública, forma especifica prevista em lei, motivo e o objeto. Ausente qualquer destes elementos, a decisão se mostra viciada, sendo a invalidação o caminho a ser trilhado a fim de suprimir o ato administrativo ou a relação jurídica dele decorrentes.
Há, no entanto, que se diferenciar o ato contrário à lei do ato que a interpreta dentro da prerrogativa inerente à atividade julgadora. Neste caso, uma solução de mérito dada validamente pelo órgão julgador administrativo não pode ser submetida à reapreciação do Judiciário. Já a incompatibilidade do ato administrativo com a ordem jurídica é um evidente motivo de nulidade da decisão proferida pelo órgão máximo da Administração Tributária, podendo a Fazenda Pública socorrer-se ao Judiciário para invalidá-lo.
Sobre a possibilidade da Administração desconstituir decisão final administrativa expedida em desconformidade com a ordem jurídica, ensina Helenilson Cunha Pontes:
Outra hipótese que entendemos conferir à Administração Pública o interesse a pleitear judicialmente a anulação de decisão administrativa a ela contrária, pode ocorrer nas situações em que haja evidência de que tal decisão tenha sido proferida com dolo, má-fé ou fraude pelo agente que a proferiu. Enfim, a Administração poderá pleitear a anulação de decisão administrativa a ela contrária quando conseguir demonstrar vícios na formulação da mesma.[10]
A anulação dos atos administrativos pode ser realizada tanto pela Administração Pública, no exercício do seu poder de autotutela, quanto ao pelo Poder Judiciário. Contudo, não sendo mais possível a revisão administrativa do ato e quando as circunstâncias revelarem que a decisão foi claramente contrária às normas legais que regem a sua produção, seja por erro, culpa, dolo ou interesses escusos de seus agentes, é dever da Administração Pública submeter o ato ao crivo do Poder Judiciário, respeitado o prazo decadencial de 5 (cinco) anos. Isto porque, nenhum ato do Poder Público pode ser subtraído do exame judicial de legalidade e juridicidade, seja ele proveniente da Administração Tributária ou de qualquer órgão, agente ou Poder.
Conclui-se, pois, que em razão da garantia constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, as decisões finais da Administração Pública Tributária, desfavoráveis a qualquer um dos sujeitos da relação jurídico-tributária, comprovadamente prolatadas com infração à lei, sujeitam-se à análise do Poder Judiciário, a quem pertence o monopólio jurisdicional, de decidir com força de coisa julgada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, Dejalma de. Direito Processual Tributário. 4 ed. São Paulo, Atlas, 1996.
CAIS, Cleide Previtalli. O Processo Tributário. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
CASTRO, Aldemario Araujo. Primeiras linhas de direito tributário. 5 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, v. 2, 2007.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2002.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MACHADO, Hugo de Brito. Ação da Fazenda Pública para anular Decisão Administrativa Tributária, Revista Dialética de Direito Tributário nº 112. São Paulo, 2005.
MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. 2 ed. São Paulo: Dialética, 2004.
PONTES, Helenilson Cunha. Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coordenador). Processo Administrativo Tributário. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Notas
- CAIS, Cleide Previtalli. O Processo Tributário. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 249.
- CASTRO, Aldemario Araujo. Primeiras linhas de direito tributário. 5 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 309.
- MACHADO, Hugo de Brito. Ação da Fazenda Pública para anular Decisão Administrativa Tributária, Revista Dialética de Direito Tributário nº 112. São Paulo, 2005, p. 51.
- CAMPOS, Dejalma de. Direito Processual Tributário. 4 ed. São Paulo, Atlas, 1996, p. 52.
- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 452.
- DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, v. 2, 2007, p. 478.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 505.
- MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 589.
- NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. 2 ed. São Paulo: Dialética, 2004, p. 411.
- PONTES, Helenilson Cunha. Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coordenador). Processo Administrativo Tributário. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 615.