SUMÁRIO INTRODUÇÃO; 1. A NOÇÃO DE SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO À LUZ DA TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA; 1.1. A importância da análise do tema à luz das transições paradigmáticas 8 1.2. A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Liberal; 1.3. A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Social; 1.4. A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Democrático de Direito 13 2. NOÇÕES GERAIS ACERCA DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SEGUNDO A DOUTRINA E A LEGISLAÇÃO; 2.1. A supremacia do interesse público na doutrina de direito administrativo brasileira considerada tradicional; 2.2. A supremacia do interesse público sobre o privado na legislação e na Constituição Federal: desapropriação, poder de polícia, intervenção na economia, cláusulas exorbitantes nos contratos, etc.; 2.3. Recente movimento pela desconstrução da noção de supremacia do interesse público sobre o privado; 3. A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO VISTA SOB O ENFOQUE DA TEORIA DOS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE WESLEY HOHFELD; 3.1. A teoria dos conceitos fundamentais de Hohfeld; 3.2. A supremacia do interesse público sobre o privado e as relações jurídicas entre o Estado e os particulares; 3.3. Em contraposição aos poderes estatais, os direitos fundamentais conferem imunidades aos indivíduos; 3.4. Conveniência do estudo da eventual supremacia do interesse público a partir do contraponto entre poderes estatais e imunidades dos indivíduos; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS
RESUMO: Propõe-se um estudo da noção de supremacia do interesse público sobre o articular sob o ponto de vista da passagem paradigmática do Estado Liberal para o Estado Social e deste para o Estado Democrático de Direito. Em seguida, afirma-se como, no atual paradigma, e considerando a doutrina e ordenamento jurídico atual, é conveniente que se estudem os conflitos entre interesses públicos e privados sob uma ótica diferenciada, proposta por Wesley Hohfeld, autor de uma teoria sobre os conceitos jurídicos fundamentais.
Palavras-chave: Direito Administrativo. Supremacia do interesse público sobre o privado. Paradigma. Estado Democrático de Direito. Direitos fundamentais. Wesley Hohfeld. Conceitos jurídicos fundamentais.
INTRODUÇÃO
Vários institutos que são tidos como alicerces do Direito Administrativo brasileiro vêm, nos últimos anos, sendo estudados sob um enfoque crítico, voltado para a investigação de sua conformação com o atual modelo de Estado Democrático de Direito, acolhido pela Constituição Federal de 1988.
Nesse contexto, surgiu a necessidade de submeter também a noção de supremacia do interesse público sobre o privado – uma ideia comumente abordada nos compêndios de direito administrativo – a um estudo de sua extensão e sentido, com o objetivo principal de averiguar se há compatibilidade entre essa ideia e o acima citado modelo de Estado constitucional.
Atualmente, a ideia de supremacia do interesse público sobre o privado é invocada para desempenhar, segundo a doutrina tradicional, o papel de guia da decisão do aplicador do direito quando há dúvida quanto a qual interesse deve prevalecer em caso de choque ou conflito. Contudo, a doutrina vem paulatinamente rechaçando a manutenção dessa concepção de supremacia do interesse público, atribuindo-lhe um caráter retrógrado e com vestígios de autoritarismo estatal.
No presente trabalho, pretende-se, em um primeiro momento, encontrar os elementos básicos que guiaram a conformação teórica da mencionada noção de supremacia, analisando a ideia de supremacia do interesse público sobre o privado em contraste com as recentes mudanças paradigmáticas, quais sejam, do Estado Liberal para o Estado Social e deste último para o Estado Democrático de Direito.
Em seguida, sem firmar posição acerca da necessidade de reconstrução ou desconstrução da citada noção, aborda-se como a supremacia do interesse público sobre o privado é vista no âmbito da doutrina do Direito Administrativo brasileiro, por meio do estudo do tratamento dispensado por alguns autores brasileiros de Direito Administrativo, cujos estudos compõem a doutrina clássica nacional, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Melo, Hely Lopes Meireles e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, bem como dos institutos existentes no ordenamento jurídico – legislação e Constituição Federal, que denotariam a presença da citada supremacia.
Por fim, introduz-se a teoria dos conceitos jurídicos fundamentais de Wesley Hohfeld, sugerindo como referido estudo analítico das relações jurídicas pode servir para compreender melhor os direitos subjetivos invocados tanto em prol do interesse público (mormente pelo Estado) como pelo interesse privado (movido pelos particulares).
Pretende-se, nesse sentido, demonstrar que a noção de supremacia do interesse público sobre o privado encontra nítida relação com determinada modalidade de direito concebida por Hohfeld, a qual pode ser contraposta por outra modalidade de direitos, os quais derivam, em grande parte, pela interpretação dos direitos tidos por fundamentais.
Decerto que não será possível exaurir um tema de tamanha abrangência, mas se espera que esse estudo represente uma contribuição para a discussão, aportando elementos hábeis para compreender as deficiências da teoria tradicional da supremacia do interesse público sobre o particular e, ao mesmo tempo, demonstrando ser oportuna uma mudança de perspectiva, permitindo que se analise de forma mais clara os direitos postos em jogo em eventual conflito entre interesse público e interesse privado.
1. A NOÇÃO DE SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO À LUZ DA TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA
1.1 A importância da análise do tema à luz das transições paradigmáticas
A noção de supremacia do interesse público sobre o privado constitui um marco do direito administrativo, construído ao longo de décadas de desenvolvimento da burocracia estatal e que tem seu papel posto em xeque na atualidade (BINENBOJM, 2008, p. 5).
Considerando, assim, que essa ideia não foi criada, como algo pronto, em determinado momento histórico, mas sim foi desenvolvida ao longo de séculos de história, convém abordar o conceito de paradigma jurídico, tal qual compreendido por autores como Menelick de Carvalho Netto e Cristiano Paixão Araújo Pinto, para melhor entender as nuances que permearam a consolidação dessa ideia no direito administrativo.
Para os referidos autores, um paradigma é espécie de marco interpretativo, um conjunto de ideias que, em certo momento histórico e lugar, ajustam a visão dos que praticam determinada ciência (CARVALHO NETTO, 2002, p. 74). A condição paradigmática, assim, predispõe e condiciona a forma de se ver determinado aspecto do mundo e de agir sobre ele. Essa noção, que é extraída da teoria da ciência de Thomas Kuhn (apud CARVALHO NETTO, 2000, p. 236), busca demonstrar como ocorre a evolução do conhecimento, a qual, segundo sua visão, não se daria pacificamente, de forma gradativa, mas por meio de saltos e rupturas, ocorrendo, então, a troca de um paradigma por outro.
É importante mencionar que, embora tenha se encontrado aplicação para seu conceito também nas ciências sociais, Kuhn deu enfoque, em seu estudo, às ciências tidas por exatas ou da natureza. A despeito disso, ao aplicar esse conceito ao direito, descobriu-se que nele também havia paradigmas, que operam da mesma forma que na proposição inicial de Kuhn, isto é, enquanto substrato da gramática social em uso por determinado grupo de pessoas em relação a certa área do conhecimento (CARVALHO NETTO, 2002, p. 74-75). Como afirma Jürgen Habermas (2003, p. 129-131), a doutrina e a prática do direito tomaram consciência de que existe uma teoria social que intervém na consciência de todos os atores, dos cidadãos e dos clientes, do legislador, da justiça e da administração.
O estudo paradigmático serve bem para contextualizar, de um ponto de vista temporal, a inserção da noção de supremacia do interesse público sobre o privado, revelando os esquemas gerais que se encontram por trás do conhecimento jurídico daqueles períodos históricos.
Para os fins do presente estudo, interessam mais os paradigmas correspondentes à organização política e jurídica da modernidade, isto é, do Estado Liberal (ou Estado de Direito), do Estado Social (ou Estado do Bem-Estar Social), e, por fim, do Estado Democrático de Direito, que serão, a seguir, abordados separadamente.
1.2 A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Liberal
O paradigma jurídico do Estado Liberal caracteriza-se pela consolidação do constitucionalismo clássico enquanto instrumento de proteção das liberdades dos indivíduos – sujeitos autônomos de direitos – em uma sociedade marcada pela diferenciação funcional, e não mais pela diferenciação por estratos, que marcava o regime anterior (PINTO, 2003, p. 33-36).
Nesse novo paradigma o indivíduo se vê voltado contra a estrutura anterior, “pré-moderna” no dizer de Menelick Carvalho Netto (2000, p. 237), na qual o direito e a organização política
encontravam tradução, em última análise, em um amálgama normativo indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam. O direito é visto como a coisa devida a alguém, em razão de seu local de nascimento na hierarquia social, tida como absoluta e divinizada.
O direito, assim, passou a ser considerado um sistema mínimo de regras que garantam, ao mesmo tempo, a liberdade dos indivíduos e o não retorno ao absolutismo, estabelecendo, ainda, seus limites (CARVALHO NETTO, 2000, p. 239). É um direito formal, no sentido de que previa, de forma genérica, liberdades subjetivas iguais aos indivíduos, sem considerar as diferenças materiais existentes entre eles.
Se, de um lado, estabelecem-se certas proibições, as quais, em última instância, pretendem delimitar os espaços de liberdade dos indivíduos como o mínimo então considerado para possibilitar a vida em sociedade (não matar, não roubar, etc) (CARVALHO NETTO, 2000, p. 240), por outro, o Estado, nesse momento, assume uma função minimalista, de estado-policial, que busca tão somente garantir a autonomia privada, protegendo os interesses econômicos particulares – essencialmente a propriedade e a liberdade contratual – manipulados no âmbito da autonomia de cada indivíduo (HABERMAS, 2003, p.138). Daniel Sarmento (2007, p. 35) sintetiza de forma clara essa situação, ao afirmar que
o Estado Liberal baseou-se numa rígida separação entre Estado e sociedade. O Estado deveria cuidar da segurança interna e externa, protegendo a propriedade privada, mas não lhe cabia intervir nas relações travadas no âmbito da sociedade. Nestas, indivíduos, formalmente igualizados após a abolição dos privilégios estamentais, perseguiriam livremente os seus próprios interesses privados, ao abrigo das interferências do poder público.
Há, portanto, uma nítida assimetria entre as noções de público e de privado, pois o domínio do privado de então é de tal forma agigantado que a ideia de público se relaciona apenas com o dever (estatal) de proteger o campo das relações privadas (PINTO, 2003, p. 36). A seara do público, assim, se confunde com a atuação do Estado, essa criação política feita apenas para garantir o curso da sociedade civil, isto é, dos interesses privados dos indivíduos (CARVALHO NETTO, 2002, p. 77).
Dessa forma, observa-se que a defesa do interesse privado é a força motriz do direito criado sob o paradigma do Estado Liberal, e seu elemento-chave é o contrato (PINTO, 2003, p. 37), enquanto símbolo da radical liberdade conferida aos indivíduos de regerem suas próprias vidas.
Portanto, se, nessa ótica, o campo do público se confunde com o que é estatal, um eventual choque entre o interesse público-estatal e o interesse dos particulares acabaria por ser resolvido em favor desses últimos, pois o Estado apenas propiciaria regras gerais e abstratas, não podendo se imiscuir no livre jogo de vontades dos atores sociais de então.
Não se fala, assim, em relação àquele paradigma, de uma noção de supremacia do interesse público sobre o privado como a que é comumente discutida nos dias de hoje. Essa noção, como se verá, só ganha força e sentido com a ascensão de um novo modelo paradigmático, o do Estado Social.
1.3 A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Social
A igualdade formal que compunha o direito sob a égide do paradigma do Estado Liberal foi posta em xeque por uma série de eventos que, ganhando força na segunda metade do século XIX (PINTO, 2003, p. 38), possibilitaram a formação de outro paradigma jurídico.
Dentre esses eventos, destacam-se “a eclosão de movimentos revolucionários na Europa (a partir, principalmente, de 1848), o surgimento e crescimento de doutrinas de feição socialista ou anarquista (que tinham como ponto comum a forte rejeição ao Estado Liberal então vigente) e a organização de setores da sociedade em novos grupos de pressão (sujeitos coletivos de direito, como associações ou sindicatos profissionais)” (PINTO, 2003, p. 39).
Nesse novo paradigma, torna-se claramente necessário garantir não apenas de forma geral e abstrata uma igualdade entre os indivíduos perante o direito. O conteúdo jurídico decorrente dessa ideia de igualdade precisava ser especificado, criando-se uma nova categoria de direitos com fins a viabilizar uma distribuição mais justa da riqueza produzida, bem como proteger os indivíduos dos perigos gerados pela produção dessa riqueza (HABERMAS, 2003, p. 139-140).
Os direitos individuais, tal qual a liberdade e a igualdade, foram redimensionados de forma a abranger também os direitos chamados de coletivos e sociais. A liberdade e a igualdade, sob essa ótica, não são garantidas apenas pela ausência de leis, mas pela internalização, na legislação, do reconhecimento das diferenças materiais existentes entre os indivíduos, criando-se privilégios aos que detém posição social ou econômica de desvantagem (CARVALHO NETTO, 2000, p. 242). De fato, como menciona Habermas (2003, p. 154),
a crítica do Estado social contra o direito formal burguês concentra-se na dialética que opõe entre si a liberdade de direito e a liberdade de fato dos destinatários do direito, portanto, em primeira linha, na implantação de direitos sociais fundamentais.
A inserção desses direitos sociais no panorama de direitos fundamentais traz para o Estado uma grande responsabilidade, que é a de lhes dar concretude. O Poder Público sai da função de mero espectador para assumir as rédeas das relações econômicas, balizando-as por intermédio de regras cogentes, normas de ordem pública que passar a ser respeitadas a despeito da autonomia da vontade das partes (SARMENTO, 2007, p. 39).
Em razão disso, o Estado se agiganta, tanto do ponto de vista físico como em relação ao seu poder social, pois, como afirma Cristiano Paixão Araújo Pinto (2003, p.40), ele passa a ter como finalidade a compensação e a inclusão de setores da sociedade numa determinada rede de proteção. Ocorre que tal fenômeno é circular, pois novas demandas de compensação e inclusão continuam surgindo, ocasionando o contínuo crescimento do aparato técnico-burocrático no interior do Estado e, daí, o gigantismo logo acima mencionado.
Importante mencionar, ainda, que é sob o paradigma do Estado Social que o Direito Administrativo aparece como disciplina autônoma no seio da dogmática jurídica (PINTO, 2002, p. 41), fato que tem relação direta com a já mencionada expansão das missões governamentais e a intensificação da sua atuação regulamentar, impondo ao Estado o dever de disciplinar juridicamente os mais variados campos da vida social.
Nesse paradigma, as noções de público e de privado permanecem semelhantes às do paradigma do Estado Liberal, isto é, a ideia de público continuava reduzida ao que dizia respeito ao Estado, e o privado se relacionava com os anseios dos indivíduos. Contudo, essa mudança paradigmática trouxe uma inversão de valor no que diz respeito à dicotomia público-privado, pois, se sob o paradigma do Estado Liberal a dimensão privada encontrava realce, no Estado Social ela será vista com desconfiança, identificada com o egoísmo e com a própria negativa do exercício da vida pública (PINTO, 2003, p. 40).
Vê-se, assim, que a nova posição ocupada pelo Estado na sociedade era propícia para a formação da ideia de que existia uma verdadeira supremacia entre os interesses públicos – confundidos, aí, com os interesses do Estado – e os interesses privados. Se o liberalismo anterior era visto como representação do egoísmo da vida particular, os interesses privados eram consequentemente confundidos com interesses egoísticos, que se contrapunham aos interesses públicos, representativos da coletividade e que alcançariam concretude por meio da atuação estatal.
Assim, o sacrifício dos interesses individuais em prol da concretização da atuação estatal era, mais do que tolerada, plenamente justificada pela noção paradigmática correspondente ao Estado Social, que havia avocado para si a missão de guiar a coletividade rumo à plena cidadania por meio da concretização dos direitos sociais (MENELICK, 2002, p. 78), não podendo ter esse rumo desviado para atender a anseios particulares.
Mostra-se coerente, portanto, a absorção dessa ideia de supremacia do interesse público pelo privado pelo Direito Administrativo, ramo do direito que acabara de adquirir sua autonomia. Cria-se, assim, em torna dessa ideia, a perspectiva de que há um princípio de direito que determina o sacrifício dos interesses privados em prol dos interesses públicos/estatais. É essa a noção de supremacia do interesse público que se consolidou no âmbito do direito positivo brasileiro e na jurisprudência dos tribunais nacionais, como será ainda demonstrado.
Ocorre que a mudança paradigmática sentida com a chamada crise do Estado Social e a introdução do paradigma do Estado Democrático de Direito alterou o conteúdo das noções de público e de privado, demandando, assim, uma nova abordagem da ideia de supremacia do interesse público sobre o privado.
1.4 A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Democrático de Direito
Embora os fatores que contribuíram com a crise desse modelo de Estado Social ainda seja objeto central de estudo da teoria política contemporânea, é certo que alguns dentre eles podem ser destacados como motivos determinantes para a derrocada do paradigma social e a ascensão do modelo de Estado Democrático de Direito.
Com efeito, é no início da década de 1970 que a crise do paradigma do Estado Social se manifesta em toda a sua dimensão. Os dois choques do petróleo e a crise econômica deles decorrente, a globalização dos meios de produção, a criação de normas de cunho jurídico por fontes privadas, o endividamento do setor público, entre outros fatos históricos, colocaram em xeque o Estado e seu papel de provedor do bem-estar social e de planejador das economias nacionais (SARMENTO, 2004, p. 395-399).
Entretanto, como afirma Cristiano Paixão Araújo Pinto (2002, p. 41), “é fundamental assinalar que a crise do Estado Social não é exclusivamente fiscal ou administrativa. Ela é, antes de tudo, uma crise de déficit de cidadania e de democracia”.
É que, como visto, no paradigma do Estado Social há uma identificação entre o público e o estatal, em um processo que tende a simular a participação efetiva da sociedade no meio político tão somente por meio do instrumento do voto. Com a crise do Estado Social, fica nítido o distanciamento entre os anseios da sociedade e as pretensões do poder público interventor, em uma verdadeira crise de cidadania e de identidade social.
Alia-se a isso uma nova demanda por direitos até então ignorados, como os de caráter difuso ou coletivo, referentes à tutela das relações de consumo, do meio ambiente, do patrimônio histórico, artístico, cultural e paisagístico, como também os direitos atribuídos a parcelas excluídas da sociedade, a exemplo dos portadores de necessidades especiais e das minorias raciais, sexuais e religiosas.
São, pois, esses os fatores que servem de substrato para a construção do paradigma do Estado Democrático de Direito, caracterizado por um direito participativo, pluralista e aberto (CARVALHO NETTO, 2000, p. 244).
A mudança paradigmática em comento afeta de forma direta a relação público-privado. Se, antes, o privado era visto como egoísmo individualista e o público encontrava-se diluído no que era estatal, a emergências dos novos direitos e a (re)descoberta da sociedade que não se sentia representada pelo Estado – na já mencionada crise de cidadania – agrega novos valores à esfera privada, abrindo-lhe espaços de atuação antes reservados apenas à seara pública. O público passa, então, a não mais se identificar com o que é estatal, assumindo uma dimensão totalmente diferente. A dicotomia público-privada é rompida, permitindo que essas esferas sejam vistas como complementares, com a participação crescente dos indivíduos no debate político e no núcleo da atuação estatal. A redescoberta da esfera pública figura, desta forma, como tema central no paradigma do Estado Democrático de Direito, pois, como corretamente afirma Cristiano Paixão Araújo Pinto (2002, p. 46),
a emancipação de uma esfera pública independente dos comandos estatais e que viabilize a redefinição da relação entre a dimensão privada da existência e o aspecto público da organização social constitui o maior desafio a ser enfrentado por sociedades que se pretendam democráticas.
Nesse novo paradigma, atribui-se nova significação às ideias de público e de privado, refletindo especialmente na conceituação do interesse público, que não pode mais ser visto apenas como interesse estatal, mas, sim, como o fruto da participação da sociedade no debate político, podendo redundar, muitas vezes, na satisfação de interesses privados e na consequente proteção de direitos individuais.