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A supremacia do interesse público sobre o privado e os conceitos jurídicos fundamentais de Wesley Hohfeld

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26/11/2011 às 12:55
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2 NOÇÕES GERAIS ACERCA DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SEGUNDO A DOUTRINA E A LEGISLAÇÃO

2.1 A supremacia do interesse público na doutrina de direito administrativo brasileira considerada tradicional

Nos tradicionais compêndios de direito administrativo, é recorrente a menção à ideia de que a supremacia do interesse público sobre o privado figura como um elemento presente em todas as funções do Estado e em todos os ramos do direito público, servindo de sustentáculo ao próprio exercício do poder estatal (DI PIETRO, 2009, p. 36).

Tal entendimento é acolhido por Hely Lopes Meirelles (2009, p. 105-107), que registra que a noção de supremacia do interesse público sobre o privado decorre da desigualdade entre a Administração e os administrados, constituindo um dos pressupostos do direito administrativo e da existência do próprio Estado.

Celso Antônio Bandeira de Mello ( 2007, p. 66), por sua vez, caracteriza a supremacia do interesse público sobre o privado como um princípio basilar de direito administrativo, o qual representa

verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último.

Segundo o referido autor, todo o sistema de direito administrativo se constrói com base no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado (MELLO, 2007, p. 29) e, em razão do referido princípio, é conferida aos órgãos públicos uma posição de supremacia ao se relacionar com os particulares, configurando-se tal relação em uma situação de “verticalidade”, diversa da que se forma com os particulares entre si, que seria marcada pela “horizontalidade”. Essa marcante diferença no relacionamento do Estado com os particulares decorre da situação de autoridade, de verdadeiro comando, de que se revestem os órgãos do Poder Público, como condição indispensável para gerir os interesses públicos postos em confronto (MELLO, 2007, p. 67).

Partilhando de entendimento semelhante, José dos Santos Carvalho Filho (2008, p.26) afirma que as atividades administrativas do Estado são realizadas para o benefício da coletividade e, por isso, o indivíduo não pode ser considerado destinatário da atuação estatal, mas sim o grupo social como um todo. Dessa forma, os particulares não podem pretender ter seus direitos equiparados aos direitos sociais, de forma que, ocorrendo um conflito entre o interesse público e o interesse privado, deve prevalecer o primeiro.

Em suma, observa-se que os autores mencionados comungam do entendimento de que a supremacia do interesse público sobre o privado é um pilar da atuação estatal e faz parte da própria estrutura do direito administrativo, na medida em que o Estado não pode se relacionar com os particulares da mesma forma que os particulares se relacionam entre si.

Em razão disso, a supremacia do interesse público sobre o privado é tida como um princípio que informa a atuação de todos os Poderes da República (DI PIETRO, 2009, p. 64), garantindo também ao Estado inúmeros privilégios e garantias (MEIRELLES, 2009, p. 107), como a sua atuação cogente e a consequente possibilidade de restringir direitos de forma unilateral, que serão a seguir exemplificados.


2.2 A supremacia do interesse público sobre o privado na legislação e na Constituição Federal: desapropriação, poder de polícia, intervenção na economia, cláusulas exorbitantes nos contratos, etc.

A doutrina considerada tradicional, aludida no tópico anterior, afirma que os privilégios e as garantias especiais conferidas à Administração Pública pela legislação e pela Constituição Federal decorrem do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado (CARVALHO FILHO, 2008, p. 26).

Um exemplo comumente citado de privilégio ou de garantia especial conferida ao Estado, como sendo a demonstração da existência do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, é o instituto da desapropriação, previsto no art. 5º

, inciso XXIV da Constituição Federal, mediante o qual é facultado ao Estado restringir o direito de propriedade dos particulares de forma unilateral, mediante o pagamento de indenização (CARVALHO FILHO, 2008, p. 26). Outro exemplo clássico de ressalva ao direito de propriedade, apontado como decorrente da supremacia do interesse público sobre o privado, consiste na possibilidade de o Estado exigir tributos, na forma prevista no art. 145 da Constituição Federal.

Quanto à liberdade dos particulares, Maria Silvia Zanella Di Pietro (2009, p. 37) aponta certas restrições decorrentes da supremacia do interesse público sobre o privado, tais como as impostas pelo poder de polícia do Estado, bem como as decorrentes da atividade estatal de intervenção no domínio econômico.

No que tange ao direito à igualdade, o ordenamento jurídico possui vários exemplos de tratamento diferenciado em razão da presença da figura estatal, como a admissão das cláusulas ditas exorbitantes, existentes nos contratos administrativos por força da Lei n. 8.666/93. Figuram como cláusulas exorbitantes a possibilidade de alteração e rescisão unilateral do acerto, a retomada do objeto do contrato em certos casos e as restrições ao uso do princípio da exceção do contrato não cumprido (isto é, o Estado pode exigir que o outro contratante cumpra a sua parte no contrato sem que ele próprio tenha cumprido a sua), entre outras.


2.3 Recente movimento pela desconstrução da noção de supremacia do interesse público sobre o privado

Recentemente, alguns autores[1] brasileiros de direito administrativo e constitucional buscaram voltar seus estudos para descobrir como se adequaria a noção de supremacia do interesse público e o Estado Democrático de Direito.

Tais estudos geraram conclusões tendentes a negar a existência da discutida supremacia na atualidade, em um movimento pela “desconstrução” da referida noção. Outros buscaram adequar as bases teóricos do princípio ao paradigma vigente, em uma linha direcionada para a “reconstrução” do referido princípio para as bases constitucionais atuais (BORGES, 2007, p.2).

De todo modo, concordam tais autores que a noção de supremacia do interesse estatal encontrava-se embebida na ideia de que os interesses entabulados pelo Estado Social possuíam equivalência com os interesses da coletividade, equivalência esta que não encontra necessária correlação com a realidade, tendo em vista as situações em que o interesse específico da Administração diverge do interesse dos grupos administrados.

Assim, compreende-se que, apesar do ocaso do Estado Social, certas categorias jurídicas do direito administrativo permaneceram sendo utilizadas como se ainda se estivesse sob a égide daquele paradigma. De fato, a emergência do Estado Democrático de Direito tornou claro o descompasso entre os antigos paradigmas e as reais necessidades e expectativas das sociedades contemporâneas em relação à Administração Pública (BINENBOJM, 2008, p. 5), a exemplo da mencionada ideia de supremacia do interesse público sobre o privado, que ainda permaneceria arraigada na doutrina nacional de direito administrativo com certos aspectos só justificáveis à época do Estado Social.

Todavia, compreende-se que há certos aspectos da governabilidade que não podem ser deixados de lado ou mesmo serem negados quando se discute a supremacia do interesse público sobre o particular, pois são inerentes à conformação constitucional do poder do Estado estabelecido no Brasil. Como afirma Alice Gonzales Borges,

Se a Administração Pública, no exercício de suas funções, não pudesse usar, por exemplo, de certas prerrogativas de potestade pública, tais com a imperatividade, a exigibilidade e a presunção de legitimidade dos seus atos, nem, em circunstâncias especiais perfeitamente delineadas pela lei, a auto-executoriedade de certas medidas urgentes, então teríamos verdadeiro caos. Ficaríamos com uma sociedade anárquica e desorganizada, e os cidadãos ver-se-iam privados de um de seus bens mais preciosos, que é o mínimo de segurança jurídica indispensável para a vida em sociedade. (BORGES, 2007, p. 2)

Assim, sem tomar partido para a necessidade de “desconstrução” ou de “reconstrução” da noção de supremacia do interesse público sobre o privado, pretende-se, neste texto, agregar ao debate sobre a referida noção de supremacia uma discussão acerca do cerne dos direitos envolvidos quando se travam conflitos entre o Estado e particulares sob a égide da supremacia do interesse público.

De fato, discute-se, atualmente, qual seria a verdadeira natureza da noção de supremacia do interesse público, isto é, se ela se comportaria como um princípio ou como uma regra jurídica, a fim de servir como base para a tomada de decisões judiciais, administrativas e legislativas.

Todavia, na referida discussão toma-se por base a tradicional ideia de direito subjetivo constituída do binômio direito-dever, a qual, como se verá a seguir, pode acabar por negar ao intérprete várias outras faces que um determinado direito pode assumir.

De fato, o binômio direito-dever, de tradição germânica, não esclarece várias situações nas quais o sujeito pode estar envolvido ao invocar um direito, tornando-o (o direito) uma palavra desnecessariamente ambígua (FERREIRA, 2007, p. 36).

Pretende-se, portanto, examinar outro enfoque dado à teoria do direito, especialmente à dos direitos subjetivos, e pontuar como esse novo enfoque pode servir para explicar vários fenômenos atrelados à noção de supremacia do interesse público sobre o privado.


3 A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO VISTA SOB O ENFOQUE DA TEORIA DOS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE WESLEY HOHFELD

3. A teoria dos conceitos fundamentais de Hohfeld

Wesley Hohfeld é um autor norteamericano do início do século XX que mostrou, ao longo de sua obra, uma permanente preocupação com a prática e com a interpretação do direito.

Assim, em seu artigo mais comentado, intitulado “Some fundamental legal conceptions as applied to judicial reasoning”, o autor buscou traçar uma formulação da ideia de direito subjetivo mais precisa e que pudesse conferir maior objetividade na intepretação jurídica cotidiana, atestando a existência de novos conceitos jurídicos fundamentais que servem para explicar as relações jurídicas.

Afirmava o autor que um dos maiores obstáculos para uma compreensão clara dos problemas jurídicos seria a suposição (expressa ou tácita) de que todas as relações jurídicas pudessem ser reduzidas a direito e deveres (HOHFELD, 1968, p. 45). Segundo o próprio autor, tal conceituação de direito seria insuficiente para explicar, por exemplo, “os interesses de pessoas coletivas”, afirmação esta que ressoa diretamente no âmbito do direito público.

Assim, o autor estabelece a criação de mais três categorias de relações jurídicas, a fim de emprestar mais precisão à análise do fenômeno do direito. Segundo ele, os direitos poderiam ser divididos em: claim-rights (pretensões ou direitos em sentido estrito), liberty-rights (privilégios), powers (poderes) e immunities (imunidades).

Para cada uma das categorias, o autor propôs um termo correlato e um termo oposto. Para os primeiros, tem-se a seguinte relação: pretensão correlato a dever; privilégio correlação à ausência de pretensão; poder correlato à sujeição; e imunidade correlata à incompetência. Quanto aos conceitos opostos, enumeram-se os seguintes: pretensão, em contraposição à ausência de pretensão; privilégio, em contraposição à dever; poder, em contraposição à incompetência; e imunidade, em contraposição à sujeição (FERREIRA, 2007, p. 38).

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Para o autor, o direito que se opõe a dever jurídico é o direito em sentido estrito, isto é, uma pretensão. Para ele, os titulares de direitos violados pedem, através de ações judiciais, que o estado faça com que suas pretensões prevaleçam, exercendo, desse forma, um direito em sentido estrito. Privilégio, por sua vez, é uma posição na qual o sujeito se encontra sem dever algum para com a outra parte, isto é, é uma liberdade reconhecida e garantida pela lei dentro de uma relação jurídica. Poder representa, a seu turno, uma situação na qual o sujeito pode modificar algum elemento da relação jurídica independemente da vontade da outra parte (a exemplo do poder dos indivíduos de alienar sua propriedade). Imunidade, por fim, constitui a situação na qual o indivíduo se encontra protegido da ingerência de outrem na relação jurídica (FERREIRA, 2007, p. 45 e ss).

Vejamos, portanto, como tais conceitos podem ser aplicados à noção de supremacia do interesse público sobre o privado.


3.2 A supremacia do interesse público sobre o privado e as relações jurídicas entre o Estado e os particulares

Como visto, segundo Hohfeld, os direitos se apresentam no sistema jurídico de diversas formas, o que dificulta a compreensão do que efetivamente se dá em uma relação jurídica.

Ocorre que, ao se observar mais detidamente apenas os exemplos mencionados no tópico anterior, referentes às formas como se daria a citada supremacia do interesse público sobre o particular na legislação e doutrina brasileiras, pode-se verificar a existência marcante de uma modalidade específica de direitos, de acordo com o sistema de Hohfeld, titularizados pelo Estado: os powers.

De fato, no tópico anterior, foram analisados as normas que disciplinariam a desapropriação; a tributação; o exercício do poder de polícia; a intervenção estatal no domínio econômico e a presença de cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos.

Nesses grandes grupos de instituições jurídicas, vê-se que se destacam, em face do Estado, os direitos considerados como powers, isto é, isto é, faculdades de produzir determinados efeitos jurídicos em relação aos particulares, inserindo-o em uma situação jurídica, a despeito de sua vontade.

O Estado, por exemplo, ao exigir e cobrar um tributo, possui o direito-poder de constituir o seu crédito em dívida ativa independentemente da aquiescência do contribuinte, cobrando-o judicialmente mediante processo executivo especial (rito da execução fiscal).

Quando se utiliza do poder de polícia, o Estado pratica atos autoexecutórios, como os referentes à aplicação de penalidades, que independem da vontade dos particulares, exercendo, da mesma forma, powers.

Na desapropriação, o traço marcante e distintivo é o da ausência de intervenção do particular no processo expropriatório (que ocorre por interesse público ou social), cabendo-lhe apenas discutir o preço a ser pago, traço característico do exercício de um direito-poder titularizado pelo Estado.

Na intervenção estatal na economia, da mesma forma, o Poder Público pratica atos que interferem nas relações negociais sem que os particulares tenham qualquer ingerência, a exemplo do controle de preços, caracterizando, mais uma vez, direitos enquadrados como powers.

Por fim, nas cláusulas exorbitantes nos contratos, percebe-se a possibilidade de o Estado praticar atos que independem da vontade do particular e que podem lhe ser prejudiciais, a exemplo da possibilidade de alteração e rescisão unilateral do acerto ou a assunção do objeto contratado, utilizando-se equipamentos e pessoal do particular para a execução do serviço.

Vê-se que abundam os exemplos de poderes (powers), no sentido hohfeldiano, exercidos pelo Estado quando em relações jurídicas com particulares.

Daí poder se concluir que, intrinsicamente à noção de supremacia do interesse público sobre o particular, existe a ideia do exercício, pelo Estado, de direitos subjetivos com características de powers, posto que estes permitem a modificação da situação jurídica da outra parte da relação jurídica independentemente de sua aquiescência.

Prosseguindo nesta linha de raciocínio, tem-se que, quanto mais powers forem conferidos ao Estado pelo sistema jurídico (normas constitucional e infraconstitucionais), mais forte será a noção de supremacia de interesse público sobre o particular que se verificará na praxe jurídica.

E, de fato, quando se utiliza, no discurso jurídico, a ideia de supremacia do interesse público sobre o particular, seja no âmbito judiciário (para julgar determinado caso), no legislativo (produzir determinada norma legal) ou executivo (editar determinado ato administrativo), o que se busca é afirmar que, na relação jurídica estabelecida entre o particular e o Estado, este último detém a capacidade de agir, de atuar, independentemente da vontade da outra parte, e isto se dá, mais das vezes, por meio do exercício de powers.

Com efeito, pela sucinta análise histórica que se iniciou neste artigo, já se observa que a própria noção de supremacia do interesse público por muitas vezes se confundiu com a ideia de supremacia do próprio Estado, dada a confusão existente entre o “público” e o “estatal”, mormente no paradigma do Estado Social.

No antigo regime o Estado se confundia com o próprio governante e detinha poder absoluto, poder este que se minimiza durante o paradigma do Estado Liberal, voltando a ganhar força no Estado Social.

Ora, o engrandecimento do papel do Estado se reflete justamente no maior arcabouço de competências que lhe são atribuídas, aumentando, por conseguinte, a gama de direitos subjetivos que prestigiem seu poder de alterar relações jurídicas dos indivíduos a despeito de sua vontade, a exemplo da concepção de power que agora se discute.

Conclui-se, assim, que a noção de supremacia do interesse público sobre o particular encontra nítida relação com a quantidade de regras que atribuem ao Estado direitos subjetivos que Hohfeld classificaria como sendo powers, isto é, que admitem a alteração unilateral da relação jurídica.

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Sobre o autor
Carlos Henrique Costa Leite

Advogado da União. Coordenador Geral de Ações Estratégicas da Procuradoria-Regional da União da 1ª Região. Especialista em Direito Administrativo pela UnB. Especialista em Direito Processual Civil pela UNISUL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Carlos Henrique Costa. A supremacia do interesse público sobre o privado e os conceitos jurídicos fundamentais de Wesley Hohfeld. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3069, 26 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20509. Acesso em: 4 nov. 2024.

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