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A supremacia do interesse público sobre o privado e os conceitos jurídicos fundamentais de Wesley Hohfeld

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26/11/2011 às 12:55
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3.3 Em contraposição aos poderes estatais, os direitos fundamentais conferem imunidades aos indivíduos

Imunidade ou Immunity, para Hohfeld, é um conceito correlato à incompetência (ausência de poder). Assim, detém uma imunidade aquele sujeito que não se encontra sujeito a ter sua relação jurídica afetada por simples ato da outra parte, sendo, portanto, a “liberdade que um indivíduo possui de não sofrer o controle de outrem, sendo que este é detentor de um poder na relação jurídica” (FERREIRA, 2007, p. 60).

Tem-se, assim, que, em contraponto à atribuição de poderes ao Estado, a deferência ou o reconhecimento de direitos subjetivos do tipo immunities para os particulares funciona como uma espécie de proteção à massiva quantidade de powers invocados pelo Estado, em prol do interesse público.

Assim, quanto maior a possibilidade de se reconhecer imunidades aos particulares, menor será a noção de supremacia do interesse público no sistema jurídico.

No cenário brasileiro, tais imunidades podem ser apontadas pela interpretação dos direitos fundamentais.

De fato, o paradigma do Estado Democrático de Direito é marcado por uma significativa valorização dos direitos fundamentais, na medida em que estes representam a substantivação, no âmbito jurídico, do princípio da dignidade da pessoa humana, norteador dos regimes democráticos.

Segundo Ingo Sarlet (2005, p. 70-71), os direitos fundamentais, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais, integram uma espécie de núcleo substancial das decisões básicas próprias de um Estado democrático e têm um papel especial de materializar valores básicos como a igualdade, a liberdade e a justiça, em plena oposição a ideais totalitários e ditatoriais de regimes passados. Funcionam, assim, como um fundamento funcional da ordem democrática e, neste sentido, servem-lhe como parâmetro da legitimidade.

Importante destacar que os direitos fundamentais não devem ser considerados benesses ou favores do Estado, mas, muito antes disso, constituem a própria razão de ser do regime democrático. Nesse sentido, Ricardo Schier (2007, p. 223) aduz que um Estado democrático “legitima-se e justifica-se a partir dos direitos fundamentais e não estes a partir daquele. O Estado gira em torno do núcleo gravitacional dos direitos fundamentais”.

No Brasil, os direitos fundamentais passaram a gozar de grande prestígio com o texto da Constituição Federal de 1988, não sendo desarrazoada a afirmação de que, a despeito de possíveis críticas ao modelo implementado, os direitos fundamentais vivem o seu melhor momento na história do constitucionalismo pátrio, ao menos em sua feição normativa (SARLET, 2005, p. 80).

Os direitos fundamentais são também direitos subjetivos, e, nessa acepção, permitem que os particulares invoquem direitos enquanto immunities. Afirma textualmente Konrad Hesse que os direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos, protegem o indivíduo dos poderes estatais, o que se faz necessário ainda que se trate de um estado democrático:

Como direitos do homem e do cidadão, os direitos fundamentais são, uma vez, direitos de defesa contra os poderes estatais. Eles tornam possível ao particular defender-se contra prejuízos não autorizados em seu status jurídico-constitucional pelos poderes estatais no caminho do direito. Em uma ordem liberal constitucional são necessários tais direitos de defesa, porque também a democracia é domínio de pessoas sobre pessoas, que está sujeito às tentações do abuso de poder, e porque poderes estatais, também no estado de direito, podem fazer injustiça (HESSE, 1998, p. 235, grifo nosso).

Para tanto, amplo é o leque de direitos fundamentais que conferem imunidades aos indivíduos, principalmente os que considerados direitos de defesa ou de primeira geração, como os direitos relativos à liberdade, à vida, à propriedade, à manifestação, à expressão, ao voto, etc. É este o exemplo dado por Alon Harel:

Consagrados direitos constitucionais frequentemente incluem imunidades, que tolhem o poder legislativo dos poderes que, de outra maneira, manteriam. A legislatura que é inabilitada a tal poder, sujeita-se a uma “incapacidade”. Por exemplo, as pessoas têm direito à liberdade de expressão, o que impede o poder legislativo de editar leis que eliminem a liberdade de discurso.[2] (HAREL, 2003, p. 7)

Constata-se, portanto, que os indivíduos podem invocar, partindo especialmente dos direitos fundamentais assentes no ordenamento jurídico, immunities para contrapor os poderes arvorados pelo Estado ao utilizar a ideia de supremacia do interesse público sobre o privado.


3.4 Conveniência do estudo da eventual supremacia do interesse público a partir do contraponto entre poderes estatais e imunidades dos indivíduos

Partindo dos conceitos já expostos neste trabalho, tem-se que a supremacia do interesse público sobre o privado é uma evolução histórico dos próprios poderes do Estado, os quais mudam de figura com a chegada do Estado Moderno e, no paradigma do Estado Democrático de Direito, começam a ser revisitados.

Quando o Estado invoca a supremacia do interesse público sobre o particular, busca-se, em verdade, afirmar a existência de um direito estatal qualificável como power, na acepção de Hohfeld, isto é que permite a alteração unilateral de relações jurídicas.

Vê-se, assim que, não é a existência de prerrogativas em favor da Administração Pública nas leis e na Constituição Federal que comprovam a existência de um princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Na verdade, é a interpretação dessas prerrogativas como powers, isto é, como direitos do Estado a alterar unilateralmente as relações jurídica que este possui com os particulares, que ensejam a utilização da máxima da supremacia do interesse público.

Assim, diante de uma situação de conflito, propõe-se que seja realizado um estudo analítico do direito invocado pelo Estado para averiguar se há, em contraposição a esse direito, uma imunidade (immunity) atribuída ao particular, na forma proposta por Hohfeld.

Ao minudenciar o tipo de direito que é invocado em determinada relação jurídica, aclara-se a forma como o problema pode ser resolvido, inclusive ao se perceber que o Estado, mesmo invocando a supremacia do interesse público sobre o particular como cláusula geral do Direito Administrativo, acaba por violar immunities dos particulares, o que não pode ser admitido.


CONCLUSÃO

O paradigma do Estado Democrático de Direito é caracterizado pelo fim da dicotomia entre público e privado, existente à época dos paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social. De fato, referido paradigma modela um Estado que não se pretende totalmente inerte em relação à vontade dos indivíduos, nem tampouco paternalista e visionário, a ponto de podar a liberdade de agir das pessoas. O direito no Estado Democrático se caracteriza por ser construído por meio da participação dos interessados e por ser alentado por um ideal de justiça material, afastando, assim, a antiga dicotomia entre as noções de público e privado, que passam a ser não mais opostas, mas sim complementares.

Nesse contexto, contesta-se a noção de que há um princípio de Direito Administrativo que impõe a supremacia do interesse público sobre o privado, tido até bem pouco tempo como ponto pacífico na doutrina brasileira e elevado ao status de fundamento do regime jurídico-administrativo.

De fato, em que pese o surgimento de um movimento de crítica à noção de supremacia do interesse público sobre o privado, vários autores de renome do direito administrativo, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Mello, apontam, ainda hoje, para a existência, no ordenamento jurídico brasileiro, de um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado de natureza axiomática, isto é, que prescinde de comprovação, constituindo um fundamento do regime jurídico-administrativo e que deve sempre orientar a atuação dos poderes públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário).

De acordo com essa linha de pensamento tradicional, o tratamento desigual conferido por certos dispositivos constitucionais e legais ao Poder Público em desfavor dos particulares decorre do referido princípio da supremacia do interesse público, a exemplo dos institutos da desapropriação, do exercício do poder de polícia, das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos, dentre outros.

Todavia, ao se observar o fenômeno com base na teoria dos conceitos fundamentais proposta por Wesley Hohfeld, acaba-se por constatar que, ao invocar a supremacia do interesse público sobre o particular, pretende-se, na realidade, afirmar a existência de powers, isto é, de direitos subjetivos que conferem a uma parte o controle sobre a relação jurídica, afetando a esfera jurídica da outra parte independentemente da sua aquiescência.

Assim, quanto mais powers se atribui ao Estado, mais forte será a noção de supremacia do interesse público sobre o particular, uma vez que o interesse público, na maioria das vezes, é um conceito jurídico indeterminado utilizado pelo Estado na sua atuação.

Em contraposição aos powers, segundo Hohfeld, há direitos que representam imunidades ou immunities. Tais direitos subjetivos, que são embasados em grande parte por direitos fundamentais, podem ser invocados pelos particulares para se contraporem aos poderes estatais.

Dessa forma, entende-se que o estudo analítico das relações jurídicas, na forma proposta por Hohfeld, confere instrumentos para o intérprete averiguar se os direitos subjetivos postos em conflito se tratam, na realidade, de conceitos jurídicos contrapostos, especialmente se os invocados em prol do interesse público são powers e se os aduzidos pelos particulares são immunities. Partindo dessa análise, facilita-se a resolução dos conflitos de interesses ao tratar de forma mais coerentes os diversos tipos de direitos invocados, sabendo de antemão quais são as consequências de cada uma delas para a relação jurídica.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. A exemplo de Alexandre Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm, Humberto Ávila, Paulo Ricardo Schier e Marçal Justen Filho.
  2. Enshrined constitutional rights often include immunities, which deprive the legislature of powers, which it would otherwise have. The legislature, which is incapable of exercising power, is subject to a “disability”. For instance, one has an immunity-right to freedom of expression, which bars the legislature from enacting legislation that extinguishes one’s liberty to speak.
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Sobre o autor
Carlos Henrique Costa Leite

Advogado da União. Coordenador Geral de Ações Estratégicas da Procuradoria-Regional da União da 1ª Região. Especialista em Direito Administrativo pela UnB. Especialista em Direito Processual Civil pela UNISUL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Carlos Henrique Costa. A supremacia do interesse público sobre o privado e os conceitos jurídicos fundamentais de Wesley Hohfeld. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3069, 26 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20509. Acesso em: 25 abr. 2024.

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