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Trânsito X dolo eventual: o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC nº 107801, não encerrou a discussão

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Ao contrário do que se vem divulgando nos sites jurídicos e nas redes sociais, o STF não decidiu que em acidentes de trânsito não pode existir a figura do dolo eventual.

No dia 06 de setembro de 2011, o Supremo Tribunal Federal, por intermédio de sua Primeira Turma, no julgamento do HC n.º 107801, concedeu a ordem para desclassificar conduta imputada ao acusado de homicídio doloso para homicídio culposo, ao entender, em síntese, que a conduta de produzir o resultado morte ao dirigir veículo no estado de embriaguez não caracteriza, por si, que o agente assumiu o risco de matar, ou seja, que o condutor tenha obrado com dolo eventual.

A partir da decisão, começaram a circular na internet matérias e artigos os quais, taxativamente, dão a entender que o STF pacificou o tema, dando a ideia que, de acordo com a Corte Suprema, em qualquer acidente de trânsito o dolo eventual estaria descartado.

No entanto, entendo que não tenha sido exatamente esse o teor do julgamento.

Vejamos a notícia veiculada no site da Corte1:

“Concedido HC para desclassificar crime de homicídio em acidente de trânsito

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu, na tarde de hoje (6), Habeas Corpus (HC 107801) a L.M.A., motorista que, ao dirigir em estado de embriaguez, teria causado a morte de vítima em acidente de trânsito. A decisão da Turma desclassificou a conduta imputada ao acusado de homicídio doloso (com intenção de matar) para homicídio culposo (sem intenção de matar) na direção de veículo, por entender que a responsabilização a título “doloso” pressupõe que a pessoa tenha se embriagado com o intuito de praticar o crime.

O julgamento do HC, de relatoria da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, foi retomado hoje com o voto-vista do ministro Luiz Fux, que, divergindo da relatora, foi acompanhado pelos demais ministros, no sentido de conceder a ordem. A Turma determinou a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba (SP), uma vez que, devido à classificação original do crime [homicídio doloso], L.M.A havia sido pronunciado para julgamento pelo Tribunal do Júri daquela localidade.

A defesa alegava ser inequívoco que o homicídio perpetrado na direção de veículo automotor, em decorrência unicamente da embriaguez, configura crime culposo. Para os advogados, “o fato de o condutor estar sob o efeito de álcool ou de substância análoga não autoriza o reconhecimento do dolo, nem mesmo o eventual, mas, na verdade, a responsabilização deste se dará a título de culpa”.

Sustentava ainda a defesa que o acusado “não anuiu com o risco de ocorrência do resultado morte e nem o aceitou, não havendo que se falar em dolo eventual, mas, em última análise, imprudência ao conduzir seu veículo em suposto estado de embriaguez, agindo, assim, com culpa consciente”.

Ao expor seu voto-vista, o ministro Fux afirmou que “o homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção perante a embriaguez alcoólica eventual”. Conforme o entendimento do ministro, a embriaguez que conduz à responsabilização a título doloso refere-se àquela em que a pessoa tem como objetivo se encorajar e praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.

O ministro Luiz Fux afirmou que, tanto na decisão de primeiro grau quanto no acórdão da Corte paulista, não ficou demonstrado que o acusado teria ingerido bebidas alcoólicas com o objetivo de produzir o resultado morte. O ministro frisou, ainda, que a análise do caso não se confunde com o revolvimento de conjunto fático-probatório, mas sim de dar aos fatos apresentados uma qualificação jurídica diferente. Desse modo, ele votou pela concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao acusado para homicídio culposo na direção de veiculo automotor, previsto no artigo 302 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro).

Da leitura da notícia colacionada, percebe-se que o julgamento se limitou a analisar a conduta de condutor que, embriagado, causa o resultado morte no trânsito.

Ou seja, não decretou a Primeira Turma do STF que em “todos” os acidentes de trânsito descartada está a hipótese da ocorrência do dolo eventual.

Aliás, no Voto-Vista emitido pelo Ministro Luiz Fux, ficou claro que a análise estava sendo realizada acerca do elemento volitivo, pelo que entendeu o eminente julgador e os colegas que o acompanharam que somente a existência da embriaguez (sem prova vontade do agente) não configura a ocorrência do dolo eventual. Vejamos:

“PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA.

1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus.

2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual.

3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.

4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte.

[...]

8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP [...]”

E com razão o Supremo, pois, como sabemos na análise de processos criminais não existem regras ou fórmulas a serem seguidas, devendo haver uma análise circunstancial caso a caso.

Ademais, é clara a ideia que o simples fato de se estar embriagado não configura a assunção do risco de matar, porquanto mesmo estando com elevado grau de álcool no organismo, pode o agente tomar cautelas necessárias (ex: dirigir em velocidade reduzida) a fim de evitar um desfecho trágico de sua condução.

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Nesse sentido, importante a lição de BELING, citado por SEBASTIÁN SOLER2:

“não só está em dolo quem diretamente quis o resultado, mas também quem não não o quis” (grifou-se)

Portando, evidente que o julgamento não encerra as discussões existentes acerca da existência do dolo eventual em acidentes de trânsito, tendo sido analisado caso concreto no qual não haveria prova de que o acusado assumiu o risco de matar.

Pensar o contrário é não concordar com a existência do dolo eventual em acidentes3 de trânsito, como no exemplo citado por SILVIO MACIEL4:

Em nossas aulas, fornecemos os seguintes exemplos aos alunos: em um caso real, ocorrido na cidade de Curitiba, o agente, revoltado com o fim do namoro, passou a efetuar manobras radicais com o automóvel na rua onde a ex-namorada residia; antes de entrar no automóvel ele avisou algumas mulheres para recolherem os filhos da calçada porque ele estava revoltado e não se importava se matasse alguma criança; durante as manobras radicais ele perdeu o controle do automóvel, avançou sobre a calçada, atropelou e matou uma criança; desceu do automóvel e disse “eu avisei”. Nesse caso, diante das circunstâncias do caso concreto, evidenciado ficou o dolo eventual

Ou discordar de precedentes oriundos do Superior Tribunal de Justiça e até mesmo do próprio Supremo Tribunal Federal, que reconhecem a existência do dolo eventual em “acidentes” de trânsito, como, por exemplo, quando ocorridos na realização de “racha”:

“HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO E LESÃO CORPORAL EM CONCURSO FORMAL NO TRÂNSITO (ARTS. 121, § 2o., I E 29, CAPUT, C/C 70, TODOS DO CPB). FUNDAMENTAÇÃO ADEQUADA DA DECISÃO DE PRONÚNCIA E INEXISTÊNCIA DE EXCESSO DE LINGUAGEM NO ACÓRDÃO QUE A CONFIRMOU. DECISÃO QUE SE LIMITOU A NOTICIAR O CRIME SUPOSTAMENTE PRATICADO PELO PACIENTE E APONTAR AS PROVAS QUE CORROBORAM A TESE ACUSATÓRIA. EXISTÊNCIA OU NÃO DE DOLO EVENTUAL NA CONDUTA A SER AFERIDA PELO TRIBUNAL DO JÚRI. QUESTÃO INVIÁVEL DE ANÁLISE EM HC, ANTE A INDISFARÇÁVEL NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. PRECEDENTES DO STJ. DECISÃO DE PRONÚNCIA MANTIDA EM TODOS OS SEUS TERMOS. INEXISTÊNCIA DE NULIDADE DO ACÓRDÃO PELA ALTERAÇÃO DO VOTO DE UMA DESEMBARGADORA. DECISÃO PROFERIDA POR UNANIMIDADE. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM DENEGADA. 1. Na sentença de pronúncia, o Magistrado não pode proferir colocações incisivas e considerações condenatórias pessoais em relação ao réu nem se manifestar de forma conclusiva ao acolher o libelo ou rechaçar tese da defesa a ponto de subtrair a valoração do Jurados, sob pena de substituir-se ao Júri no julgamento do litígio [...] 3. In casu, o douto Magistrado, ao pronunciar o ora paciente, atentou-se aos limites de sobriedade impostos a fim de legitimar a segunda fase do processo, visto que apenas houve a notícia do delito pelo qual o paciente fora pronunciado, bem como indicação das provas existentes nos autos a dar suporte ao pleito acusatório e as qualificadoras apontadas. Também assim o fez o Tribunal ao avaliar, e confirmar, a retidão do decisum de primeiro grau. [...] 5. A hipótese, não se mostra evidente, como pretende a impetração, de ausência de dolo eventual, existindo elementos probatórios nos autos aptos a sustentar a tese acusatória, qual seja, de que o paciente estava em alta velocidade e participando de competição automobilística não autorizada (racha); dessa forma, concluir, desde logo, em sentido contrário implicaria dilação probatória incompatível com o mandamus, além de usurpação da competência do Tribunal do Júri.” (HC 136809 / RJ HABEAS CORPUS 2009/0096409-5 Relator(a) Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO (1133) Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA - STJ Data do Julgamento 17/11/2009 Data da Publicação/Fonte DJe 14/12/2009)(grifou-se)

“DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. "RACHA" AUTOMOBILÍSTICO. HOMICÍDIO DOLOSO. DOLO EVENTUAL. NOVA VALORAÇÃO DE ELEMENTOS FÁTICO-JURÍDICOS, E NÃO REAPRECIAÇÃO DE MATERIAL PROBATÓRIO. DENEGAÇÃO. 1. A questão de direito, objeto de controvérsia neste writ, consiste na eventual análise de material fático-probatório pelo Superior Tribunal de Justiça, o que eventualmente repercutirá na configuração do dolo eventual ou da culpa consciente relacionada à conduta do paciente no evento fatal relacionado à infração de trânsito que gerou a morte dos cinco ocupantes do veículo atingido. 2. O Superior Tribunal de Justiça, ao dar provimento ao recurso especial interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, atribuiu nova valoração dos elementos fático-jurídicos existentes nos autos, qualificando-os como homicídio doloso, razão pela qual não procedeu ao revolvimento de material probatório para divergir da conclusão alcançada pelo Tribunal de Justiça. 3. O dolo eventual compreende a hipótese em que o sujeito não quer diretamente a realização do tipo penal, mas a aceita como possível ou provável (assume o risco da produção do resultado, na redação do art. 18, I, in fine, do CP). 4. Das várias teorias que buscam justificar o dolo eventual, sobressai a teoria do consentimento (ou da assunção), consoante a qual o dolo exige que o agente consinta em causar o resultado, além de considerá-lo como possível. 5. A questão central diz respeito à distinção entre dolo eventual e culpa consciente que, como se sabe, apresentam aspecto comum: a previsão do resultado ilícito. No caso concreto, a narração contida na denúncia dá conta de que o paciente e o co-réu conduziam seus respectivos veículos, realizando aquilo que coloquialmente se denominou "pega" ou "racha", em alta velocidade, em plena rodovia, atingindo um terceiro veículo (onde estavam as vítimas). 6. Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente. 7. O dolo eventual não poderia ser descartado ou julgado inadmissível na fase do iudicium accusationis. Não houve julgamento contrário à orientação contida na Súmula 07, do STJ, eis que apenas se procedeu à revaloração dos elementos admitidos pelo acórdão da Corte local, tratando-se de quaestio juris, e não de quaestio facti. 8. Habeas corpus denegado.(HC 91159, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, STF julgado em 02/09/2008, DJe-202 DIVULG 23-10-2008 PUBLIC 24-10-2008 EMENT VOL-02338-02 PP-00281)(grifou-se)

Concluindo, a intenção da presente explanação é demonstrar que, ao contrário do que se vem divulgando nos sites jurídicos e nas redes sociais, o Supremo Tribunal Federal não proferiu palavra final no assunto, ou seja, não decidiu que em acidentes de trânsito não pode existir a figura do dolo eventual.


Notas

  1. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=188535&caixaBusca=N
  2. SOLER, Sebastian. Derecho penal argentino. Vol 2. Buenos Aires: Tipográfica Editora Argentina, 1992.
  3. Tenho que o termo acidente já explicita a inexistência de qualquer vontade. Desse modo, ocorrências de trânsito nas quais esteja configurada a presença de dolo, ainda que eventual, ao meu ver, não podem ser chamadas de acidentes.
  4. http://atualidadesdodireito.com.br/silviomaciel/2011/09/09/acidentes-de-transito-dolo-eventual-ou-culpa-consciente-stf-respondeu/
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Sobre o autor
Flávio Augusto Oliveira Karam Júnior

Assessor de Juiz de Direito - TJRS. Pós-graduando em Ciências Penais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KARAM JÚNIOR, Flávio Augusto Oliveira. Trânsito X dolo eventual: o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC nº 107801, não encerrou a discussão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3072, 29 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20518. Acesso em: 22 dez. 2024.

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