7.3.3.3. Princípio da moralidade
Tal princípio determina a adoção de conduta pautada em princípios éticos por parte da Administração e de seus agentes.
Os fundamentos morais em que se baseiam as atividades administrativas não são os mesmos da moral comum. Ao contrário, eles se enquadram na modalidade jurídica da moral, “um conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração” (SOBRANE, 2010, p. 71).
Nesse sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto define a moral jurídica como
um sistema de moral fechada, próprio da Administração Pública, que exige de seus agentes absoluta fidelidade à produção de resultados que sejam adequados à satisfação dos interesses públicos, assim por lei caracterizados e ao Estado cometidos[162].
Portanto, o princípio da moralidade deve ser considerado como pressuposto de validade dos atos da Administração, que devem ser praticados a partir da noção de probidade, honestidade e imparcialidade[163].
Sendo assim, não basta que a conduta do agente público esteja alinhada aos preceitos legais. A atividade administrativa deve, da mesma forma, expressar os valores morais da Administração[164].
8. Improbidade administrativa ilustrada: casos do STJ.
Passada a análise geral dos principais aspectos da improbidade administrativa, faz-se mister uma abordagem mais específica da matéria, a partir do estudo de casos que envolvem a improbidade administrativa e que tramitaram (ou tramitam) no STJ.
Dessa forma, de agora em diante se fará uma breve viagem a parte da jurisprudência daquele Tribunal, selecionada a partir de pesquisa nos últimos informativos jurisprudenciais sobre o tema.
Vale destacar que esse resumo de parte da vasta jurisprudência do STJ tem como finalidade, apenas, ilustrar os aspectos gerais da improbidade administrativa trazidos no trabalho.
8.1. SUSPENSÃO DE PROCESSO DE INSCRIÇÃO DE CANDIDATO NOS QUADROS DA OAB. DENÚNCIA ANÔNIMA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. IMPOSSIBILIDADE. REsp 1.074.302/SC.
Esse é um recurso especial interposto pela Ordem dos Advogados do Brasil Seccional de Santa Catarina - OAB/SC.
Como começo da causa, Francisco Xavier Medeiros Vieira impetrou mandado de segurança, com pedido de liminar, visando a sua inscrição definitiva nos quadros da OAB/SC. Relatou que, após ter sido aposentado compulsoriamente em virtude de sua idade, em 26/11/2001, no cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, requereu junto ao órgão de regulamentação profissional seu registro como advogado.
Todavia, a autoridade responsável, tendo como base carta-denúncia anônima, determinou a suspensão do processo de inscrição e instaurou procedimento de inidoneidade em desfavor de Francisco sob o fundamento de que contra ele havia indícios de irregularidades cometidas no exercício do cargo de Presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Houve o deferimento da liminar em juízo singular, antes mesmo da manifestação da autoridade impetrada, sob a justificação de que a carta denúncia dirigida à OAB não menciona em qualquer oportunidade o nome do impetrante, citando, de outro lado, o nome de Aldo Luiz Eickhoff, servidor do Tribunal de Justiça catarinense, como envolvido na irregularidade anunciada.
A liminar foi concedida para determinar a extinção do incidente de inidoneidade e determinar o imediato prosseguimento do processo de inscrição do impetrante nos quadros da OAB/SC.
Da aludida decisão, a OAB/SC apelou, alegando que Francisco autorizou, quando Presidente do Tribunal de Justiça, a contratação de servidor do próprio Tribunal para prestar serviços à empresa contratada para construção do edifício anexo do Tribunal.
Sustentou que tal situação resultaria em admitir que o agente público que deveria fiscalizar o projeto fosse, também, remunerado pela empresa contratada para executar a obra, situação vedada pela Lei n° 8.666/93. Entretanto, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina negou provimento à apelação.
Após oposição de embargos de declaração pelo Ministério Público Federal, na qualidade de custos legis, e pela OAB/SC, ambos rejeitados, e outros caminhos perseguidos pelo processo, não relevantes para o trabalho em questão, esse mesmo órgão de regulamentação profissional interpôs Recurso Especial ao STJ, sustentando, dentre outras coisas, ofensa aos artigos 8º, VI, e § 3º, e 44, II, da Lei 8.906/94 (Estatuto dos Advogados do Brasil), alegando ser necessário, quando da inscrição do bacharel em direito nos quadros da OAB, que se comprove a idoneidade moral do requerente.
Em resumo, a questão central importante para o trabalho está na discussão sobre a possibilidade de a OAB, sob o fundamento de averiguar o preenchimento de requisitos para inscrição de candidato nos seus quadros, realizar processo investigatório baseado em denúncia anônima que relatou suposto cometimento de ato de improbidade administrativa pelo bacharel.
O Ministro Relator afastou tal possibilidade. Segundo ele, não se discute que a OAB tem o dever de zelar pelo exercício da classe, competindo-lhe, em caso de dúvida sobre irregularidade supostamente praticada por qualquer um de seus integrantes, tomar providências de acordo com seu Estatuto.
Completa o Ministro que por idoneidade moral entende-se o conjunto de qualidades que recomendam o indivíduo à consideração pública, tais como honra, respeitabilidade, seriedade, dignidade e bons costumes.
Foi concedida, pelo Estatuto dos Advogados do Brasil, a atribuição à autarquia do poder-dever de averiguar o preenchimento do requisito em questão pelo candidato. Não há que se questionar, nesse momento, segundo o Ministro Relator, os procedimentos administrativos a serem adotados pelo órgão para buscar elementos necessários à formação de sua decisão.
Entretanto, em nosso ordenamento jurídico há a prevalência do princípio da presunção de inocência, que preceitua que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal que o tenha condenado (art. 5º, inciso LVII, da CF/88). Essa presunção de idoneidade, para ser afastada, exige elementos mínimos a justificar o início de procedimento administrativo próprio visando excluir tal presunção.
Nesse sentido, exige-se um motivo legal, ou suporte probatório mínimo em que se baseie a acusação, não servindo uma simples carta-denúncia anônima na qual se baseou a instauração do procedimento, principalmente porque o ordenamento jurídico do País veda a prática do anonimato, nos termos do inciso IV do art. 5º da Constituição Federal.
Sob esses argumentos, o Relator entendeu não haver justa causa para a instauração do incidente de inidoneidade contra Francisco
A Primeira Turma, por maioria, vencido em parte o Ministro Teori Albino Zavascki, deu parcial provimento ao recurso especial, adotando o entendimento do Ministro Relator quanto à questão com importância para o trabalho, ou seja, posicionando-se contra a possibilidade de a OAB, sob o fundamento de averiguar o preenchimento de requisitos para inscrição de candidato nos seus quadros, realizar processo investigatório com base em denúncia anônima que noticiou suposto cometimento de ato de improbidade administrativa pelo bacharel.
8.2. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. SUJEITO ATIVO. REsp 1.138.523/DF.
O Ministério Público Federal ajuizou ação por ato de improbidade administrativa contra Ricardo Sérgio de Oliveira, Paulo César Ximenes Alves Ferreira, Roberto Giannetti da Fonseca, Sílex Trading SAI, o Banco do Brasil, o Banco Central do Brasil, a União Federal, e outros, em decorrência de favorecimentos prestados pelo Banco do Brasil à empresa Silex Trading, de propriedade de Roberto Giannetti da Fonseca, ex-integrante da equipe econômica do governo Fernando Henrique Cardoso, através empréstimos e benefícios, em prejuízo do erário.
Cuida-se, em seu início, de agravo de instrumento interposto por Ricardo Sérgio de Oliveira e Paulo César Ximenes contra decisão que, nos autos de ação civil pública por ato de improbidade administrativa, recebeu a petição inicial e determinou a citação dos mesmos. Da decisão do agravo de instrumento veio a determinação de que a ação de improbidade só pode ser ajuizada contra agentes públicos, com ou sem a cooperação de terceiros, não podendo, o particular, figurar sozinho na ação.
Portanto, concluiu o Tribunal Regional Federal da 1ª região que não deveria prosseguir a ação de improbidade, visto que só figuravam como réus particulares e uma sociedade de economia mista – Banco do Brasil.
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público Federal interpôs Recurso Especial alegando violação dos arts. 1º, 2º e 3º da Lei 8.429/92 (naquilo que diz respeito, portanto, ao sujeito ativo e passivo da improbidade administrativa, conforme já desenvolvido no trabalho)
Em síntese, o Ministério Público defendeu que a União é acionista majoritária do Banco do Brasil S/A e teve seu patrimônio lesado em virtude de empréstimos e benefícios realizados pelo próprio Banco à empresa Silex Trading, de propriedade de Roberto Giannetti da Fonseca, ex-integrante da equipe econômica do governo Fernando Henrique Cardoso.
Ao administrar os recursos repassados ao Banco do Brasil, os réus teriam agido como agentes delegados sui generis do Poder Público, pois a sociedade de economia, cuja acionista majoritária é a União, é beneficiada com verbas públicas federais e, dessa forma, deve se submeter aos princípios que regem a Administração Pública.
Ademais, O Ministério Público também sustentou estar o Banco do Brasil sujeito à Lei 8.429/92, o que tornaria incabível a tese quanto à ação de improbidade administrativa proposta contra particulares.
A Ministra Relatora do Recurso Especial, Eliana Calmon, afirmou que a interpretação dos arts. 1º, 2º e 3º da Lei 8.429/1992 permite concluir que o legislador pautou sua atuação a partir de um conceito de grande abrangência no que diz respeito à qualificação de agentes públicos submetidos a aludida legislação, com o intuito de incluir na sua esfera de responsabilidade todos os agentes públicos, servidores ou não, que pratiquem ato de improbidade administrativa.
Além disso, a Ministra trouxe uma passagem do posicionamento do Ministro Luiz Fux a respeito do tema:
Da análise conjunta e teleológica de tais dispositivos legais, verifica-se que o alcance conferido pelo legislador quanto à expressão "agente público" possui expressivo elastério o que faz com que os sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa não sejam apenas os servidores públicos, mas, também, quaisquer outras pessoas que estejam de algum modo vinculadas ao Poder Público[165].
Dessa forma, fundamentando sua opção a partir dos ensinamentos de consagrados doutrinadores pátrios como Helly Lopes Meirelles, Maria Silvia Zanella di Pietro e Celso Antônio Bandeira de Mello, a Ministra relatora adotou a posição de que os sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa não são somente os servidores públicos, mas todos que estejam abrangidos no conceito de agente público. Ela aproveitou a oportunidade para citar alguns precedentes[166] do STJ sobre o tema.
Com isso, a Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial para o prosseguimento do feito em relação aos ora recorridos Ricardo Sérgio de Oliveira e Paulo César Ximenes Alves Ferreira, nos termos do voto da Ministra Relatora.
8.3. IMPROBIDADE. PERMISSÃO DE USO DE IMÓVEL PÚBLICO. ABRIGO DE CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE RISCO. VIOLAÇÃO DA LEI NÃO CONFIGURADA. REsp 1.129.277/RS.
Em sua origem, o Município de Esteio moveu ação contra Getúlio Lemes Fontoura, ex-prefeito, por ter permitido o uso, a título precário, de imóvel público por Núbia Maria Machado Pfeifer, servidora municipal, durante o período de março/1994 a dezembro/1996. Sustentou que tal ato se deu sem a autorização de lei, ofendendo, dessa forma, a Lei Orgânica do Município.
Ressalte-se, de início, que o Juízo de 1º grau julgou improcedente o pedido, por constatar que o uso do imóvel foi permitido para realização de serviço voluntário da servidora, qual seja a assistência algumas crianças de rua durante a noite e nos finais de semana, em virtude da inexistência de Conselho Tutelar devidamente estruturado na época.
Trata-se, portanto, de Recurso Especial interposto pelo Município de Esteio/RS contra acórdão que manteve a mencionada sentença e definiu que nem todo ato administrativo ilegal caracteriza ato de improbidade administrativa, não configurando ato de improbidade administrativa outorgar a servidor público, sem a observância das formalidades legais, permissão de uso de bem imóvel público (Casa da Criança e Posto de Saúde), destinado a abrigar crianças sujeitas a situação de risco, com a finalidade de cuidar das crianças à noite e nos finais de semana.
O Município de Esteio utilizou-se como fundamento do Recurso Especial violação dos arts. 10, II, e 11, I, da Lei 8.429/1992. Sustentou estar configurada improbidade administrativa visto que o recorrido, enquanto gestor público, permitiu o uso de um bem público a uma determinada pessoa sem justificativa de interesse público e sem lei autorizadora para tanto.
No entanto, o relator Ministro Herman Benjamin ressaltou que da análise do acórdão recorrido não se infere violação dos arts. 10 e 11 da Lei 8.429/1992. Destarte, a servidora pública utilizou o imóvel com o intuito de abrigar crianças sujeitas a abusos e maus tratos, não existindo dano ao Erário ou ofensa aos princípios administrativos.
Ainda que a permissão – completa o Ministro - tenha se ressentido da lei autorizadora prevista na Lei Orgânica do Município, o ato destinou-se a garantir o direito absoluto e prioritário das crianças e dos adolescentes de obterem proteção especial, conforme preceituado pelo art. 227 da Constituição Federal.
A Turma, então, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do Ministro Relator, sob o argumento de que possível ilegalidade na formalização do ato questionado não seria suficiente para configurar improbidade administrativa, visto que a situação delineada afasta a existência de imoralidade, desvio ético e desonestidade na conduta.