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Princípio da legalidade e infrações de trânsito

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3. O artigo 161 do CTB e o princípio da legalidade:

Sedimentada a primeira etapa, podemos concentrar nossa atividade intelectiva para o cerne deste trabalho que é outra questão que desperta atenção, inclusive, provocando discussões no universo jurídico, vez que envolve a previsão legal do artigo 161 e seu parágrafo único, no sentido de se permitir que um ato administrativo formalmente consolidado numa resolução possa impor deveres para abrigar direitos que, caso sejam violados, constituirá infração de trânsito. Isso equivale a dizer que uma norma de posição hierarquicamente inferior à lei pode criar modificar, extinguir e direitos, bem como estabelecer obrigações e deveres. Referido entendimento é impiedosamente rechaçado no mundo jurídico, por força do princípio da legalidade insculpido no artigo 5º, inciso II da Constituição da República Federativa do Brasil:

Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Deveras, numa interpretação literal do sobredito artigo, infere-se mesmo que o legislador atribuiu à resolução uma posição privilegiada, tratando-a é certo, como se pudesse amoldurar bens jurídicos em seus preceitos, sem precedente legal que lhe fosse a causa determinante, tornando-se imprescindível sancionar atos que os violassem, semelhantemente ao que ocorre com a lei.

Entretanto, o âmago dessa controvérsia não diz respeito à possibilidade de outra fonte normativa, de peso político inferior, disciplinar as relações jurídicas de natureza pública, tomando o lugar que era destinado apenas à lei – em sentido amplo[19] –, eis que, sem sombra de dúvida, compete-lhe, com exclusividade, o papel de inovar a ordem jurídica.

O que ocorre é uma situação sui generis, inacessível aos olhares de alguns que não enxergam que o próprio Código reservou à resolução a incumbência de regulamentar determinadas matérias relevantes, mormente as que se reportam aos variados campos técnicos, cuja menção é expressamente feita em uma pluralidade de dispositivos de seu texto legal, conferindo ao direito de trânsito o caráter de ciência interdisciplinar [20].

Alias, o nosso vigente diploma cria o regime jurídico sobre trânsito com auxílio da legislação complementar[21], demonstrando avidez para que as engrenagens de seu microssistema funcionem[22].

A mesma assertiva vale para a norma do parágrafo único do artigo 161, eis que a singularidade que lhe dá destaque é exatamente a de que o ato administrativo não é visto como um forasteiro pela lei, pelo contrário, além de lhe reservar competência, deseja ansiosamente o seu eficaz aparecimento.

Feitas tais considerações, resta-nos perguntar: A resolução pode restringir o direito das pessoas quando a própria lei concede tal autorização?

Para responder a essa indagação, buscamos a precisa lição do gênio de Celso Antônio Bandeira de Mello que preleciona:

Nos termos do art. 5º, II, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Aí não se diz “em virtude de” decreto, regulamento, resolução, portaria ou quejandos. “Diz-se em virtude de lei”. Logo, a Administração não poderá proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou impor algo a quem quer que seja. Vale dizer, não lhe é possível expedir regulamento, instrução, resolução, portaria ou seja lá que ato for para coartar a liberdade dos administrados, salvo se em lei já existir delineada a contenção ou imposição que o ato administrativo venha a minudenciar[23].

Concluímos, então, que a dificuldade não está em se afirmar que à lei é conferido o privilégio de ditar as regras jurídicas, podendo, inclusive, instituir diretrizes que sacrifiquem parte de sua competência em prol de um sistema mais dinâmico não condizente com a lentidão de seu procedimento parlamentar, desde que à luz das limitações constitucionalmente estabelecidas. O que realmente se mostra como um desafio ao hermeneuta é saber quando a norma inferior usurpou do poder concedido pela lei ou quando a lei lhe conferiu competência não autorizada, ingressando no campo da inconstitucionalidade. De acordo com abalizada doutrina invocada, não basta dizer, de forma genérica, que aos atos normativos de natureza administrativa cabe miseravelmente regulamentar às leis nos exatos limites de seus termos. Imprescindível é a análise in concreto para se asseverar que a norma infralegal rompeu com as fronteiras estabelecidas pela lei.

No que diz respeito ao parágrafo único do artigo 161 do Código de Trânsito Brasileiro, evidenciada está à ousadia ou atecnia do legislador ao atribuir a resolução competência para criar infrações às condutas devidas no trânsito, espécies do gênero infração administrativa, cuja previsão abstrata cabe exclusivamente à lei em sentido formal[24]. Incorreu no mesmo equívoco o revogado Código Nacional de Trânsito ao prever em seu artigo 94 que, além do Código, o regulamento e a resolução poderiam estabelecer infrações[25].

Como toda a norma que restringe as liberdades públicas, a regra de conduta de trânsito que impõe sanção ao seu transgressor, submete-se, para ter validade, aos mesmos princípios que a infração administrativa, senão vejamos:

Princípio da legalidade: previsto nos artigos 5º, inciso II, 37 caput e 84, inciso IV da Constituição da República Federativa do Brasil[26], trata-se da viga mestra do Estado de Direito, ganhando nova conotação com a força normativa da maioria das Constituições das nações ocidentais que há mais de meio século passaram a não ser mais entendidas como uma mera carta de sugestões ao legislador, mas sim como diploma que efetivamente serve de vetor a formação, interpretação e a aplicação de outras normas, bem como pelo reconhecimento de sua imediata e direta aplicabilidade. Assim a legalidade impõe a fiel observância e obediência à lei (sentido amplo) e a Constituição também, das quais as pessoas, e o próprio Estado que as criou, não podem olvidar, eis que, irrefutavelmente, são as fontes formais que legitimamente criam direitos e lhes imputam deveres, não significando exceção a reserva legalmente feita para que atos normativos inferiores regulamentem avaliações e circunstâncias operacionais técnicas que sugerem mudanças súbitas em razão de avanços tecnológicos, progressos científicos e outras situações naturalmente objetivas que sofrem alterações em virtude de ocorrerem em determinado tempo e espaço, exigindo celeridade e minucias quando de suas respectivas feituras para que o sistema se auto sustente diuturnamente, a fim de não se tornar ineficaz[27]. Com efeito, restrições à garantia da legalidade são apenas as feitas constitucionalmente nos artigos 62 (medidas provisórias), 136 (estado de defesa) e 137 (estado de sítio). Se a legalidade é relevante no que se refere à criação e a modificação do direito, não é menos verdade que resta ainda mais afirmada a sua imprescindibilidade para servir de escudo ao administrado frente às imposições do Estado quanto às sanções emergentes dos deveres supostamente violados. Nessa relação contenciosa é que se afirma como sendo de vital importância para o cidadão o princípio da legalidade, vez que poda a aresta de qualquer forma normativa germinada a partir de um sopro de ilegitimidade formal ou material, aniquilando o ato que cresceu retorcido pela invalidade que fertilmente lhe nutriu. Portanto a garantia da legalidade limita o poder estatal reduzindo os riscos de arbitrariedades. Resta trazer à baila a menção feita pela doutrina acerca da diferença existente entre o princípio da legalidade e o da reserva legal, referindo-se este as hipóteses constitucionais em que é destinada exclusivamente a lei em sentido estrito[28] a disciplina de matérias específicas, ao passo que aquele significa submissão e respeito às espécies normativas estabelecidas constitucionalmente ou atuação dentro dos limites definidos pelo legislador. O princípio da legalidade é mais abrangente, pois estende a permissão de se criar o direito a todas as espécies normativas previstas no artigo 59 da Constituição Federal - desde que observados os limites formais e materiais - incidindo sobre o comportamento de todos os indivíduos que integram a população nacional; enquanto o da reserva legal fica circunscrito aos campos materiais instituídos constitucionalmente, onde não há espaço para outro tipo normativo senão a lei estritamente formal (lei ordinária e lei complementar), como assim o faz o inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil[29], referindo-se a comportamentos específicos (crimes), por isso, menos abrangentes;

Princípio da anterioridade: decorrência lógica da legalidade, eis que não retrata a sensatez do justo exigir-se que as condutas passíveis de sanção devam ser criadas por lei, permitindo-se que ações tipicamente lícitas pudessem ser redefinidas como ilícitas no futuro por mero capricho do Estado para satisfazer o desiderato de penalizar alguém a título de vindita. Em virtude disso, é defeso ao Poder Público impor pena a conduta ocorrida antes do estabelecimento legal da infração, como também não lhe é permitido aplicar sanção mais severa agravada depois da execução do ato de autoria do administrado. Ponto de divergência é se a lei sancionadora de trânsito com penalidade mais branda possui retroatividade, no sentido de ser aplicada a fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor. Tal fenômeno só se apresenta com importância jurídica quando a conduta for praticada na vigência da lei mais severa e a decisão da autoridade de trânsito for prolatada quando já em vigor lei revogadora que traz uma sanção abrandada. Referido raciocínio pode ser projetado em forma da seguinte pergunta: Se uma conduta ilícita que era apenada com anotação de cinco pontos, passar, com a nova lei, a ser sancionada com três pontos, quando da ocasião de seu julgamento pela autoridade competente, qual a lei a ser aplicada? Existem opiniões de que, na ausência da lei que discipline a matéria, aplica-se por analogia, com base no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[30], o mesmo princípio estabelecido para a circunstância semelhante no âmbito penal[31]. Exemplificando: se um indivíduo embriagado conduzisse seu veículo antes de ser dada a nova redação ao artigo 165 do Código, modificado pela Lei Federal número 11.705/2008[32], estava sujeito a penalidade de suspensão de seu direito de dirigir determinável dentro das margens do prazo que variava de um mês a um ano[33]. Caso a autoridade de trânsito competente para presidir o processo administrativo estivesse na iminência de proferir a decisão, quando então vigente a sobredita lei 11.705/2008, que alterou o dispositivo agravando a sanção para penalidade absolutamente determinada de suspensão por 12 meses, não poderia aplicar esta, vez que mais severa. Imaginemos agora a situação invertida, dando a nova redação uma pena mais amena, seria o caso de se afastar a aplicação da lei que vigia e incidiu sobre a conduta quando realizada anteriormente? Para doutrina majoritária a resposta é afirmativa por força do mesmo fundamento antes invocado, buscando na analogia o suprimento da lacuna na ordem normativa de trânsito;

Princípio da tipicidade: a norma que estabelece à infração de trânsito para ver reconhecida validamente a sua existência, além de ter que ser criada por lei anterior à conduta encetada, deve abstratamente descrever com detalhes qual o comportamento proibido. Como no universo do direito de trânsito encontramos não só infrações que podem ser cometidas por condutores de veículos, como também por pedestres, por pessoas jurídicas e até mesmo por agentes públicos, a lei tem que deixar evidenciado a quem se dirige o dever a ser observado. Igualmente não satisfaz a tipicidade às sanções cujos extremos mínimos e máximos fiquem distantes a ponto de outorgar ao aplicador da norma uma discricionariedade absurdamente desproporcional, como é a hipótese exemplificativa de uma pena de multa que variasse de 1 UFIR a 180 UFIR. Neste caso a excessiva subjetividade da autoridade pública, no momento de aplicar a sanção, implicaria numa ausência completa de parâmetros legais objetivos, gerando insegurança jurídica em razão da inconstância do valor da multa atribuída, sem freios que pudessem evitar que se estendesse, injustamente, até o limite máximo, mesmo que sob um pálido e ineficaz critério correspondente a gravidade da infração;

Princípio da voluntariedade: Ingressamos agora no campo anímico do infrator, eis que não basta que a conduta realizada no mundo real se subsuma a descrição abstrata da lei para se concluir que a infração existiu. Como pode ser punido o condutor subitamente acometido por um enfarte do miocárdio que perde o controle da direção de seu veículo, culminando em atravessar o cruzamento de ruas com o sinal vermelho do semáforo, indicativo de parada obrigatória[34]! Observamos neste caso, a ausência de vontade de realizar a conduta, o que se trata de um elemento essencial para se concluir sobre a ocorrência da infração de trânsito. Aqui não falamos sobre dolo e culpa como se vê no direito penal, muito embora, nada obsta a legislação de trânsito de fazer tal exigência, cuidando-se de um plus em relação à voluntariedade. Aliás, cabe ressaltar que a doutrina discute acerca de se exigir no mínimo a culpa para o fim de caracterizar ou não a infração administrativa, posicionando-se parcela considerável de juristas - dentre eles o notável Celso Antônio Bandeira de Mello - no sentido de que basta apenas a mera voluntariedade para configuração da conduta típica[35]. A distinção entre a voluntariedade, a culpa e o dolo é sensivelmente constatada quando permeamos as atividades mentais do ser humano, por isso que às vezes se torna difícil a produção desse tipo de prova. Tentemos compreendê-los: A “voluntariedade”: O indivíduo pode realizar a conduta tendo como única força motriz a vontade de executá-la, sem pretensão de cometer uma infração de trânsito ou de alcançar determinado resultado prático decorrente de sua ação ou omissão. A título de exemplo, sirvamo-nos da hipótese em que o aparelho de telefone celular alerta para a chamada, ocasião em que, reflexamente, o condutor atende a ligação, iniciando um diálogo enquanto dirige[36]. Nesta circunstância a sua vontade é dirigida tão somente para a conversa travada com quem lhe fez a chamada, conduzindo, concomitantemente, o veículo. Não há o animus de realizar todos os elementos contidos na regra do inciso VI do artigo 252 do Código de Trânsito Brasileiro. O “Dolo”: A última frase bem retrata o conceito de dolo. Trata-se da atividade psíquica consciente, que é dirigida voluntariamente a efetivação prática das partículas que consagram o tipo normativo previsto no texto legal. É o querer executar o que está disposto na lei como infração. Exemplo: avançar com carro estando o sinal vermelho no semáforo de trânsito, restando certa a intenção de transgredir a norma. A “Culpa”: Dá-se a conduta culposa quando o indivíduo age voluntariamente, mas não desejando alcançar o resultado prático produzido que, em última análise, configura o ilícito administrativo, cuja realização se opera por meio da inobservância do dever de cuidado objetivo, consistente na imprudência (atitude afoita), negligência (ausência de precaução) ou imperícia (falta de aptidão técnica para o exercício de arte, ofício ou profissão). Acertadamente ilustra o exemplo de culpa a conduta daquele que entrega veículo automotor a pessoa não habilitada, acreditando que se trata de pessoa dotada de tal capacidade pelo simples fato de ser adulta, quando em verdade deveria indagar-lhe acerca de seu documento de permissão ou habilitação.

Princípio da proporcionalidade: O professor Humberto Ávila classifica a proporcionalidade como uma meta-norma, denominando-a de postulado normativo[37], cujo fim é “estabelecer a estrutura de aplicação de outras normas” que, efetivamente, condensam e tutelam diretamente os valores sociais. No plano administrativo, refere-se mais a sanção do que a infração administrativa propriamente dita. A sanção há de ser proporcional à infração praticada, dentro do que medianamente se tem por razoável. É óbvio que nem sempre é tarefa fácil avaliar-se o que é razoável para se concluir que a penalidade é proporcional ao ato realizado. Em virtude de tal entrave é que o direito sempre teve como desafio situações em que uma lei formalmente válida se mostra incapaz de dirimir um conflito de interesses, seja porque a sua aplicação conduz a um resultado injusto ou por ser a sanção extremamente severa, em consideração ao ato praticado. Esse tipo de norma se apresenta com o espírito antagônico, homiziado na perfeita forma da lei, porquanto apenas aquele se revela contrário ao ordenamento jurídico, enquanto esta se expõe publicamente, envolta num manto de tênue validade. Para restaurar o sistema jurídico, afastando a aplicação dessa espécie de lei, a doutrina buscou ressaltar a existência de princípios constitucionais implícitos, nascendo assim à proporcionalidade e a razoabilidade, no sentido de se ponderar sobre os bens jurídicos que estão em embate na arena processual, decidindo em prover aquele de maior peso jurídico, considerando-se o caso in concreto. O desenvolvimento doutrinário acerca do assunto galgou aceitação jurisprudencial, visto que, de forma lógico-jurídica, atribuiu-se ao judiciário à possibilidade de afastar a aplicação da lei injusta sem arranhar o verniz do princípio republicano da separação dos poderes. No entanto, a proporcionalidade não é instrumento normativo utilizado exclusivamente pelo judiciário quando da decisão de querelas judiciais. Objetivamente proporcionais devem ser as hipóteses abstratas previstas em lei com relação a sanções que lhe são cominadas. Portanto, é dever do legislador a fiel observância da proporcionalidade quando da criação do texto legal. Exemplo de desproporcionalidade da sanção que parte da doutrina menciona é a lavratura do auto de infração com fulcro no inciso XVII do artigo 181 do Código de Trânsito Brasileiro, gerador da penalização que impõe anotação de pontos desfavoráveis ao condutor inadimplente à taxa correspondente à utilização de estacionamento rotativo denominado “área azul ou zona azul”, eis que em nada prejudica a fluidez do tráfego, razão pela qual o ilícito praticado apenas diz respeito a ordem tributária, revelando-se, sobremaneira, excessiva e descabida a aplicação de multa pecuniária cumulada com o lançamento de pontos no cadastro do condutor habilitado[38];

Princípio do devido processo legal: São várias as citações feitas em que é invocado o princípio do devido processo legal ou devido processo constitucional jurisdicional (denominação dada por Calmon de Passos), cujas definições, às vezes, de forma equivocada, o restringe, miseravelmente, ao contraditório e a ampla defesa. Em verdade, o referido princípio se trata de um arcabouço jurídico que vem sendo preenchido, historicamente, por meio da experiência vivenciada no mundo do direito. Isso significa dizer que o processo legalmente devido é àquele que cumpre com todas as metas legais à luz das garantias fundamentais instituídas constitucionalmente. Por isso é que, além da ampla defesa e do contraditório, também integram o conteúdo normativo do devido processo legal outros princípios explícitos e implícitos, como a duração razoável do processo, a motivação das decisões, o juiz natural, a inafastabilidade da jurisdição, o duplo grau de jurisdição, a publicidade, enfim, todos os que servem de vetores para se assegurar um processo que valorize a dignidade humana. A Constituição Federal o menciona expressamente no artigo 5º, inciso LIV ao dispor ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Princípio da motivação: Muito embora não expressamente mencionado pela Constituição da República quanto aos atos da administração pública, tem dito a doutrina que lá está contido de forma implícita, mesmo porque há uma referência indireta no inciso X do artigo 93 que diz respeito aos atos administrativos praticados pelo judiciário e que devem ser motivados, possibilitando o controle e assegurando a publicidade[39], o que irrefutavelmente se estende, interpretativamente, ao executivo e ao legislativo. Já a Constituição Paulista, objetivando espantar qualquer dúvida, expressamente estabeleceu no seu artigo 111 a exigência de se motivar os atos da administração, que não corresponde a só se fazer menção ao fundamento normativo que os sustentam no universo jurídico, como também se devem traçar os contornos fáticos que ganham formato específico sob a ótica do administrador público, encaixando-se à moldura definida na norma invocada. Isso implica em dizer que o Poder Público deve mencionar a norma jurídica que foi violada, o comportamento encetado pelo infrator e a razão pela qual entende que houve a subsunção da regra à conduta. Ausente a motivação, a aplicação da sanção é passível de ser anulada.

Ainda cabe dentro do campo de análise da legalidade, no que concerne a possibilidade das resoluções do CONTRAN estabelecer infrações e cominarem, abstratamente, as respectivas sanções, fazer certas ponderações a fim de não se condenar todo o sistema que, malgrado as críticas, há muito vem sendo construído e é o único que dispomos para disciplinar o direito de trânsito.

Preliminarmente, sem ingressar na vastidão em que se assenta o tema das classificações das infrações administrativas, desenvolvidas pela doutrina frente ao inesgotável supedâneo normativo, ousamos resumir as infrações constantes na legislação de trânsito em três espécies principais, levando-se em consideração o momento da ação ou omissão ilícita, com a finalidade de facilitar a compreensão do instituto em comento:

As que são cometidas no trânsito: A nota distintiva desta espécie é o prejuízo ou perigo iminente à segurança do trânsito, visto que a infração se dá em meio ao seu fluxo viário. A maioria das infrações previstas no capítulo XV é dessa estirpe, sendo, regra geral, executadas por pessoas físicas quando na direção de veículo automotor (condutores)[40], em vias terrestres abertas à circulação. Todavia, há previsão de infrações que podem ser cometidas por quem conduz bicicleta[41] e até mesmo pelo pedestre[42]. O proprietário do veículo também pode ser sujeito ativo de várias infrações ocorridas no trânsito, eis que sua conduta negligente pode gerar situações que comprometam o trânsito seguro, conforme dispõe o artigo 257, parágrafo 2º: Ao proprietário caberá sempre a responsabilidade pela infração referente à prévia regularização e preenchimento das formalidades e condições exigidas para o trânsito do veículo na via terrestre, conservação e inalterabilidade de suas características, componentes, agregados, habilitação legal e compatível de seus condutores, quando esta for exigida, e outras disposições que deva observar. Inclusive, se o proprietário do veículo for pessoa jurídica, não cumprindo com a determinação de indicar o condutor infrator para ser promovida a anotação de pontos em seu prontuário informatizado, terá em seu desfavor mais uma autuação, sem prejuízo de ter que pagar a multa originária. Assim, restará duplamente punido[43]. O embarcador e o transportador de cargas têm suas responsabilidades definidas no Código, porquanto àquele será imputada a infração do inciso V do artigo 231, quando em operação de pesagem se verificar que o resultado da soma do peso da carga é maior do que foi declarado na nota fiscal pelo embarcador[44]. Já o transportador será o responsável quando recebendo a carga de diversos embarcadores – que respeitaram os limites legais de peso estabelecidos – constatar na operação de pesagem que a soma de todas ultrapassa o limite legal imposto[45]. Ambos serão solidariamente responsáveis quando o embarcador emitir a nota declarando peso superior ao permitido e o transportador realizar o transporte em nítido desrespeito à lei[46]. Por fim, consigne-se que há previsão de infração de trânsito deslocada do capítulo XV, cujo autor pode ser até mesmo um servidor público quando inicia obra ou evento, sem a permissão prévia do órgão ou entidade de trânsito com circunscrição sobre a via, perturbando ou interrompendo a livre circulação de veículos e pedestres ou colocando em risco sua segurança[47];

As que não são cometidas no trânsito, mas repercutem imediatamente no direito de trânsito: Neste caso, a infração não é cometida em meio ao trânsito, contudo, a ocorrência da transgressão gera efeitos imediatos sobre a ordem jurídica que disciplina o trânsito. Como exemplo, podemos citar a infração gravíssima prevista no artigo 242 do Código de Trânsito Brasileiro que estabelece uma penalidade de multa de 180 UFIR e sete pontos deméritos incidentes no cadastro de habilitação quando se faz falsa declaração de domicílio para fins de registro ou licenciamento de veículos ou habilitação;

As que não são cometidas no trânsito e repercutem mediatamente no direito de trânsito: Esta categoria de infração, também denominada de irregularidade, geralmente é instituída por meio de ato normativo infralegal que, igualmente, comina uma sanção in abstrato. O que a difere da infração descrita no item anterior, é o fato de ter como pressuposto um ato administrativo in concreto, como uma autorização, licença ou concessão de prestação de serviço público conferida pela administração pública a uma pessoa jurídica (entidade ou instituição), cujo descumprimento de alguma de suas cláusulas gera o ciclo processual de apuração e punição, podendo ser imposta como penalidade máxima a cassação do ato administrativo autorizador da prestação de serviço público. Portanto, somente reflexamente causa impacto no direito de trânsito, eis que apenas a pessoa jurídica prestadora do serviço público é que sofrerá perda em seu patrimônio jurídico. Exemplos desta modalidade de infração são as previstas no anexo da Resolução CONTRAN número 232 do dia 30 de março do ano de 2007, que descreve as irregularidades que podem ser cometidas pelas Instituições Técnicas Licenciadas (ITL) e as Entidades Técnicas Públicas e Paraestatais (ETP) trazendo as correspondentes sanções de acordo com os três incisos de seu artigo 21.

Forçoso é reconhecer que se rechaçarmos absolutamente a possibilidade de ser criado algum dever administrativo de trânsito por norma outra que não a lei, fadado estará o sistema a ruir por ausência de disciplina técnica específica não acomodada na generalidade legal. Portanto, para o fim de salvaguardar a cadeia normativa que constitui um dos elementos formadores do ordenamento jurídico de trânsito brasileiro, cabe ao jurista antes mesmo de declará-lo, irremediavelmente, inválido, buscar soluções interpretativas para se evitar que, por conta de um artigo de lei, não naufrague todos os microssistemas que lhes são derivados.

Por sorte contamos com a renomada sapiência de juristas do patamar de Celso Antônio Bandeira de Mello[48], cuja inesgotável busca científica o levou a se aprofundar no direito administrativo estrangeiro, com especial destaque para a doutrina europeia, donde se iniciaram e se desenvolveram estudos acerca dos diferentes institutos jurídicos denominados “supremacia geral” e “supremacia especial”.

A administração pública, calcada na lei, faz valer a supremacia geral, exercendo seus deveres-poderes (exigibilidade, autoexecutoriedade e autotutela dos atos administrativos) sobre a generalidade dos administrados. A extensão e os limites para tanto são legalmente estabelecidos, o que corresponde a dizer que os poderes da supremacia geral são diretamente extraídos da lei.

No que concerne à supremacia especial ou relação especial de sujeição – nomeação dada pela doutrina alemã ao referido instituto – existiriam poderes outros não sacáveis diretamente da lei, mas assentados em relação específica capaz de criar norma individual entre seleto grupo e a administração pública que, por força das peculiaridades de tal situação jurídica, se apresentaria em posição privilegiada exigida para disciplinar o seu funcionamento interno, podendo então, impor certos deveres e restringir alguns direitos pertinentes àquela relação específica, inclusive, com a imposição de sanção pela violação de seus preceitos. Exemplificando: Os indivíduos cadastrados em uma biblioteca pública, caso venham a retirar alguma obra, descumprindo o prazo para sua devolução, serão sancionados com multa; O horário estabelecido para visitas em hospitais e asilos públicos, cuja insistência em desrespeitar a regra por parte de algum familiar acarrete a sua expulsão do interior do prédio institucional; Os alunos matriculados em determinada faculdade pública, que devem se submeter ao exame em data previamente agendada, vez que a inobservância pode levar a ausência de nota de aprovação naquela disciplina.

Duas observações evidenciam as matizes que diferenciam essas situações da grande gama em que o Estado atua com base na supremacia geral. A primeira é que em todos os casos, o vinculo construído pela supremacia especial alcança o circulo de pessoas que nele se insere, e não a comunidade como um todo. Outro ponto distintivo é que seria impossível, impróprio e inadequado se exigir que disposições desta ordem recebessem o verniz parlamentar para serem válidas como normas jurídicas de conduta. Nos dizeres do professor Celso Antônio Bandeira de Mello:

Exigência dessa ordem simplesmente estaria a pretender do Legislativo uma tarefa inviável, qual seja, a de produzir uma miríade de regras, ademais extremamente particularizadas, dependentes de situações peculiares, e muitas vezes cambiantes, cuja falta, insuficiência ou inadaptação literalmente paralisariam as atividades públicas ou instaurariam o caos. Deveras, não se vê como o legislativo, afora preceptivos gerais, poderia estatuir todas as disposições minuciosamente regedoras do funcionamento das mais variadas Faculdades, Museus, Bibliotecas, Teatros, Hospitais, Asilos e outros estabelecimentos, bem como o regime condicionador ou repressor das condutas de quaisquer pessoas que com eles mantivessem os contatos necessários ao desfrute das utilidades que proporcionam, sem criarem uma autêntica balbúrdia e sem instaurarem uma série de contra-sensos ou de regras visivelmente inadaptadas às circunstâncias.

Mutatis mutandis, temos que o poder conferido ao Conselho Nacional de Trânsito para criar deveres, descrevendo hipóteses normativas que consubstanciam irregularidades passíveis de sanção, advêm não diretamente da lei, mas sim do vinculo jurídico estabelecido entre a administração e as entidades a quem é outorgada a licença ou autorização para prestarem serviços públicos necessários ao funcionamento da sistemática implantada para o trânsito brasileiro.

Importante lembrar que no Brasil o instituto da relação especial de sujeição não foi necessariamente desenvolvido, não havendo positivação em nosso ordenamento jurídico.

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Sobre o autor
Gustavo Steffen de Azevedo Figueiredo

Delegado de Polícia Titular do Município de Pindorama/SP e Diretor da 201 CIRETRAN, acumulando as funções de Delegado de Polícia do Município de Paraíso/SP, leciona a disciplina de Hermenêutica Jurídica no IMES/FAFICA em Catanduva/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, Gustavo Steffen Azevedo. Princípio da legalidade e infrações de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3073, 30 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20533. Acesso em: 29 mar. 2024.

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