Artigo Destaque dos editores

Iter criminis: o caminho do crime

Exibindo página 1 de 4
Leia nesta página:

A presente monografia tem por objeto o estudo do iter criminis, o caminho do crime, identificando cada uma de suas etapas, justificando a sua impunidade ou punibilidade e destacando a sua relevância para o Direito Penal.

Resumo

A presente monografia tem por objeto o estudo do iter criminis, o caminho do crime, identificando cada uma de suas etapas, justificando a sua impunidade ou punibilidade e destacando a sua relevância para o Direito Penal.

Inicialmente tem-se a análise do crime à luz da teoria do delito, através de seus diferentes conceitos. Na seqüência, passa-se à conceituação do iter criminis, que vem acompanhada de uma análise histórica, da especificação de suas fases e da constatação de sua relevância.

Somente então é levada a efeito a análise minuciosa acerca de cada uma das etapas do caminho do crime, dando-se especial atenção à punibilidade e a relevância de cada uma delas. Por derradeiro, chegamos às conclusões do presente trabalho, alicerçadas na relevância do iter criminis como um todo.

Palavras-chave: Artigo. Direito Penal. Iter Criminis.


1. Introdução

O presente trabalho discorre sobre o caminho do crime, ou seja, sobre as etapas que se sucedem desde o foro íntimo do agente, na cogitação, até a plena realização do tipo penal, que se dá com a consumação. Trata também da punibilidade de cada um das fases do iter criminis e da relevância penal de cada uma delas.

O objetivo é identificar e delimitar as fases e etapas do iter criminis, apontando suas relações com outros institutos do Direito Penal. Tudo com vistas a demonstrar que o tema está longe de ser irrelevante, vez que sua compreensão erige-se como um importante instrumento na busca pelo aperfeiçoamento prático e teórico das ciências criminais, notadamente no que tange à teoria do crime.

De início tem-se a análise do crime através de seus variados conceitos, sob diversos aspectos, pois seria impossível tratar do iter criminis sem antes explicar o que se entende por crime. Abordamos a teoria do delito no que tange às diferentes definições possíveis, relacionando o iter criminis ao conceito estratificado de crime.

Após a análise das definições de crime, e amparados em seu conceito estratificado, passamos à análise do caminho do crime. Apresentamos o seu conceito, na esteira do escólio de Zaffaroni e Pierangeli, e apontamos a origem histórica da problemática.

Em seguida, tratamos de discriminar as diferentes e sucessivas fases do iter criminis, discorrendo acerca da punibilidade deste caminho como um todo e da relevância penal do instituto, antes de dar início ao estudo minucioso de cada etapa.

Dissertamos, então, acerca da cogitação, a primeira fase do caminho do crime, conceituando-a e explicitando a razão pela qual não é atingida pela punibilidade. Após, dedicamo-nos a comprovar a sua especial relevância para o Direito Penal.

Na seqüência tratamos da decisão, a segunda fase do iter criminis, descrevendo-a e esmiuçando os motivos pelos quais também não é atingida pela punibilidade. Não nos esquecemos, como se verá, de comprovar a sua relevância para o Direito Penal.

Dispusemo-nos, com especial afinco, à missão de comprovar a relevância penal da cogitação e da decisão, que costumam ser ignoradas por parte da doutrina pátria. Capez [01], por exemplo, chega a enfatizar que tais etapas são penalmente irrelevantes.

Feito isso, discorremos sobre a preparação, a terceira fase do iter criminis, conceituando-a e justificando, também, a sua impunidade. Tratamos, do mesmo modo, da relevância desta etapa do caminho delituoso para o Direito Penal.

Adentramos, em seguida, à execução, a quarta etapa do caminho do crime. Discutimos acerca da dificuldade existente em delimitar o término da preparação e o início da execução, apresentamos o seu conceito e dissertamos a respeito de sua punibilidade e de sua relevância.

Passada a fase de execução, à qual dedicamos especial atenção em virtude da dificuldade teórica em que está envolto o tema, tratamos da consumação, de seu conceito, da punibilidade e de sua relevância para o Direito Penal.

Quase que derradeiramente, abordamos o exaurimento, a última fase do iter criminis. Assim como nas etapas anteriores, tratamos de conceituar o instituto, destacando as razões de sua impunidade e justificando a sua relevância.

Todo o trabalho tem por alicerce a doutrina penal, que está longe de ser vasta sobre o assunto. São poucos os autores que abordam com profundidade todas as etapas do iter criminis, vez que boa parte dele nos remete a outras áreas do conhecimento.

As fases de cogitação e de decisão, que se desenvolvem no foro íntimo do agente, porque extremamente subjetivas, costumam ser ignoradas pelos estudiosos do Direito, que optam por considerá-las, num juízo a priori, penalmente irrelevantes.

Ainda assim, encontramos na doutrina melhor lastro teórico que na jurisprudência. Optamos, portanto, por abalizar todo o trabalho na doutrina, traçando, sempre que possível, considerações a respeito de eventuais desdobramentos práticos.

Acreditamos que as divergências jurisprudenciais, antes de auxiliar em tão complexo tema, nos levariam a discussões que fugiriam ao objeto do presente trabalho. O que se considerou início de execução em um determinado caso, por exemplo, nem sempre o será noutro.

Trata-se de um trabalho teórico, de cunho eminentemente doutrinário, que pretende funcionar como apoio para que se possa, somente após, analisar com propriedade os problemas do cotidiano, abordando-se, aí sim, a jurisprudência.

Um trabalho que traz à baila aspectos pouco lembrados do Direito Penal, convidando ao debate e à reflexão, com a esperança de contribuir para o aperfeiçoamento desta memorável ciência, que a cada dia que passa mais nos apaixona. Alicerçados em tão singelas pretensões, trazemos e deixamos as palavras de Darwin:

"Embora esteja plenamente convencido da verdade das concepções apresentadas neste volume [...], não espero, de forma alguma, convencer naturalistas experimentados cujas mentes estão ocupadas por uma multidão de fatos, concebidos através de anos, de um ponto de vista diametralmente oposto ao meu [...] (Mas) encaro com confiança o futuro – os naturalistas jovens que estão surgindo, que serão capazes de examinar ambos os lados da questão com imparcialidade [02]".

Com efeito, temos que tal objetivo somente será tangível após a análise minuciosa do caminho do crime, de cada uma as suas etapas, da sua punibilidade ou impunidade e de sua relevância para o Direito Penal. Passemos, pois, ao estudo do iter criminis.


2. Crime

2.1. A teoria do delito

À parte da ciência do direito penal que se ocupa de explicar o que é o delito em geral, ou seja, quais são as características que deve ter qualquer delito, dá-se o nome de teoria do delito, cuja menção se faz necessária para que se possa adentrar ao estudo do iter criminis.

Conforme destacam Zaffaroni e Pierangeli, a chamada teoria do delito consiste numa construção dogmática que tem por objetivo tornar mais fácil averiguar se há ou não crime em cada caso concreto. [03] Sobre o assunto, cabe destacar a oportuna lição de Toledo:

"O crime, além de fenômeno social, é um episódio da vida de uma pessoa humana. Não pode ser dela destacado e isolado. Não pode ser reproduzido em laboratório, para estudo. Não pode ser decomposto em partes distintas. Nem se apresenta, no mundo da realidade, como puro conceito, de modo sempre idêntico, estereotipado. Cada crime tem a sua história, a sua individualidade; não há dois que possam ser reputados perfeitamente iguais. Mas não se faz ciência do particular. E, conforme vimos inicialmente, o direito penal não é uma crônica ou mera catalogação de fatos, quer ser uma ciência prática [04]".

E continua o renomado autor:

"Para tanto, a nossa disciplina, enquanto ciência, não pode prescindir de teorizar a respeito do agir humano, ora submetendo-o a métodos analíticos, simplificadores ou generalizadores, ora sujeitando-o a amputações, por abstração, para a elaboração de conceitos, esquemas lógicos, institutos e sistemas mais ou menos cerrados [05]".

2.2. Os conceitos de crime

Conforme ensina Nucci, a sociedade é quem cria o crime, definindo como tal as condutas ilícitas mais gravosas e merecedoras de maior rigor punitivo por parte do Estado. Somente após é que o legislador transforma esse intento em um tipo penal, criando a lei que permitirá a aplicação da vontade social aos casos concretos [06]. Nesse sentido:

"Quando a sociedade entende necessário criminalizar determinada conduta, através dos meios naturais de pressão, leva sua demanda ao Legislativo, que, aprovando uma lei, materializa o tipo penal. Assim sendo, respeita-se o princípio da legalidade (ou reserva legal), para o qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem lei anterior que a comine [07]".

Com o escopo de identificar o delito surgiram conceitos unitários, que não admitem divisões e subdivisões, e estratificados, que as admitem [08]. Dentro da concepção unitária, o crime pode ser conceituado sob os aspectos material e formal, e dentro da concepção estratificada, de acordo com as teorias bipartida e tripartida.

2.2.1. Os conceitos unitários

Segundo o aspecto formal, o conceito de crime resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal. Nessa esteira, considera-se infração penal toda conduta proibida por lei sob a ameaça de pena, pouco importando o seu conteúdo [09]. Para os partidários dessa definição, o crime nada mais é que uma "infração punível" [10]. A esse respeito, ensina Nucci:

"É a concepção do direito acerca do delito, constituindo a conduta proibida por lei, sob ameaça de aplicação de pena, numa visão legislativa do fenômeno. Cuida-se, na realidade, de fruto do conceito material, devidamente formalizado [11]".

O aspecto material, por sua vez, é aquele que busca estabelecer a essência do conceito. Sob essa ótica, como aponta Capez, crime pode ser definido como toda ação ou omissão humana, consciente, voluntária e dirigida a uma finalidade, que lesa ou expõe a perigo bens jurídicos considerados essenciais para a existência da coletividade e da paz social [12]. Nesse mesmo sentido tem-se o escólio de Toledo [13], complementado pelos ensinamentos de Nucci, que destacamos:

"É a concepção da sociedade sobre o que pode e deve ser proibido, mediante a aplicação de sanção penal. È, pois, a conduta que ofende um bem juridicamente tutelado, merecedora de pena. Esse conceito é aberto e informa o legislador sobre as condutas que merecem ser transformadas em tipos penais incriminadores [14]".

2.2.2. Os conceitos estratificados

Como bem apontam Zaffaroni e Pierangeli, os conceitos unitários trazem consigo alguns inconvenientes práticos. Isso porque nem toda conduta proibida por lei sob a ameaça de pena pode, num juízo a priori, ser considerada criminosa. Tal problemática também afeta o conceito material de crime, tornando-o insuficiente. Nesse sentido:

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

"Tudo isto é certo, mas o que nos interessa – ao menos para nossos objetivos práticos – é saber que características deve ter uma conduta para ser considerada uma infração punível. Toda a vez que os supostos "conceitos unitários" se esgotam no formal e, em definitivo, não são nenhum conceito, sendo tremenda a sua ineficácia em termos de conseqüência práticas, não costumam ser sustentados por penalistas, mas de preferência por jusfilósofos [15]".

A respeito, assevera Toledo:

"Da exposição feita sobre o bem jurídico protegido e das conclusões a que então se chegou, extrai-se, sem muito esforço, que, substancialmente, o crime é um fato humano que lesa ou expõe a perigo bens jurídicos (jurídico-penalmente) protegidos. Essa definição é, porém, insuficiente para a dogmática penal, que necessita de outra mais analítica, apta a pôr à mostra os aspectos essenciais ou os elementos estruturais do conceito de crime [16]".

A concepção estratificada, ou analítica, busca estabelecer os elementos estruturais do crime, com a finalidade de propiciar a correta decisão sobre o crime e seu autor, fazendo com que o intérprete desenvolva o seu raciocínio em etapas [17].

Surgem, dentro da concepção estratificada, duas teorias, a bipartida e a tripartida. Sustentam os defensores da teoria bipartida, dentre os quais se destacam Dotti, Damásio de Jesus e Julio Fabbrini Mirabete, que crime é o fato típico e ilícito.

Dentro dessa perspectiva, a fim de constatar se um fato concreto pode ser considerado criminoso, cabe ao intérprete observar se o fato é típico e, em caso positivo, se é ilícito. A partir daí, basta verificar se o autor foi ou não culpado pela sua prática, ou seja, se merece sofrer um juízo de reprovação pelo crime que cometeu [18].

Para a teoria bipartida crime é o fato típico e ilícito, sendo a culpabilidade apenas um pressuposto para a aplicação da pena. Já os defensores da teoria tripartida, dentre os quais podemos citar Zaffaroni, Toledo e Fragoso, sustentam que crime é o fato típico, ilícito e culpável.

Sob a ótica da teoria tripartida deve-se perquirir se o fato é típico e, em caso positivo, se é ilícito e, finalmente, se é culpável. A culpabilidade é entendida como reprovabilidade da conduta ao autor, sem a qual não há crime, mas mero injusto penal [19]. Nessa esteira, oportunamente consignam Zaffaroni e Pierangeli:

"Delito é uma conduta humana individualizada mediante um dispositivo legal (tipo) que revela sua proibição (típica), que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico (causa de justificação) é contrária à ordem jurídica (antijurídica) e que, por ser exigível do autor que agisse de maneira diversa diante das circunstâncias, é reprovável (culpável) [20]".

Sobre o tema, Nucci assevera que o conceito analítico "É a concepção da ciência do direito, que não difere, na essência, do conceito formal. Na realidade, é o conceito formal fragmentado em elementos que propiciam o melhor entendimento da sua abrangência" [21].

2.3. O conceito estratificado e o iter criminis

Independentemente da existência de posições consideradas mais ou menos corretas acerca da teoria do crime, levaremos a efeito o estudo do caminho do crime em função da relação que se estabelece entre cada uma de suas etapas e os elementos do crime segundo a concepção analítica, que melhor se aplica ao objeto do presente trabalho.

É dentro dos elementos que compõe o conceito estratificado de crime que melhor se pode analisar o caminho do crime, que se reflete, em especial, na configuração do fato típico e na verificação da culpabilidade do agente. Tudo isso sem deixar de lado um dos objetos principais do Direito Penal, a proteção de bens jurídicos.

Nesse tocante, vale frisar que o risco ou a lesão ao bem jurídico podem nos remeter ao conceito material de crime. No entanto, temos que o risco ou a lesão ao bem jurídico, com amparo na teoria da imputação objetiva, também integram, de forma implícita, o fato típico [22].

Tratar da teoria da imputação objetiva certamente nos levaria a fugir do que se propõe com o presente trabalho, mas fica o destaque para que não se olvide de que optamos, porque mais conveniente, pelo conceito estratificado de crime, e não o material, quando mencionarmos o risco ou a lesão a bens jurídicos penalmente tutelados.

Essa é a razão pela qual não se busca aprofundar acerca das diferentes teorias existentes, mas apenas identificar suas principais feições e traçar os conceitos predominantes na doutrina, com o escopo de dar mínimo amparo teórico ao estudo do iter criminis.


3. Iter criminis

O caminho do crime, também denominado iter criminis, consubstancia-se num processo que tem seu início ainda no foro íntimo da pessoa, com o surgimento da idéia criminosa na mente do agente [23], e que culmina na consumação do delito, quando da reunião de todos os elementos do tipo penal. [24]

Nesse mesmo sentido, assevera Mirabete: "Na realização do crime há um caminho, um itinerário a percorrer entre o momento da idéia de sua realização até aquele em que ocorre a consumação. A esse caminho se dá o nome de iter criminis". [25] Também nesse diapasão, pode-se destacar a lição de Garcia:

"Para chegar à fase de consumação, o delinquente transita por uma série de etapas, que constituem o iter criminis – o caminho do crime, o desenvolvimento da ação delituosa. Assim procede em busca da meta optata – o seu escopo, o resultado final [26]".

De outro lado, Zaffaroni e Pierangeli sustentam que esse caminho, ou processo, não se esgota na consumação, mas sim no exaurimento [27]. Cabe frisar, por oportuno, que o exaurimento, como se verá adiante, nem sempre ocorre, de modo que o iter criminis pode perfeitamente findar com a consumação do delito.

O iter criminis pode ser conceituado, portanto, com respaldo nos ensinamentos de Becker, Mirabete, Zaffaroni e Pierangeli, como um caminho que tem seu início ainda no foro íntimo do agente, e que culmina na consumação ou no exaurimento do crime.

Nesse mesmo sentido, têm-se as lições de Estefam, segundo o qual "Por iter criminis entende-se o itinerário, o caminho do crime, isto é, as etapas da infração penal, desde o momento em que ela é uma idéia na mente do agente até a sua consumação" [28].

3.1. Histórico

Os glosadores e comentadores italianos do final da Idade Média é que deram início ao estudo do iter criminis, em atenção ao conturbado cenário político-social da época, com a preocupação de estabelecer critérios que permitissem a defesa da segurança social. [29]

"

Esta preocupação surge num momento de desorganização político-social, com a sobreposição confusa de leis e costumes de origens diversas. A caótica realidade social exigia respostas, tornando inafastável o problema da extensão da punibilidade a um momento anterior à consumação do delito [30]".

Já se mostrava imperioso, na época, estabelecer critérios que propiciassem a defesa da sociedade, tutelando, ao mesmo tempo, os direitos e liberdades individuais. Nota-se, portanto, que a distinção entre os atos puníveis e atos que devem permanecer impunes encontra suas origens em exigências de cunho político-social [31].

3.2. Fases do iter criminis

Neste cenário, quando fracionado o instituto, foram identificadas quatro etapas seqüenciais: o desígnio, a externação, o ato remoto e o ato próximo. E nessa esteira prosseguiram os estudos realizados nos séculos posteriores, sempre na busca por critérios para o estabelecimento de limites que justificassem a impunidade ou a punição. [32]

Os estudos mais modernos, ainda amparados nos mesmos objetivos, identificam não apenas quatro, mas seis etapas no iter criminis: a cogitação, a decisão, a preparação, a execução, a consumação e o exaurimento [33]. Nesse diapasão, mostra-se oportuna a lição de Zaffaroni e Pierangeli:

"Tenhamos em consideração que o delito se inicia, cronologicamente, com uma idéia na mente do autor, que através de um processo que abrange a concepção (idéia criminosa), a decisão, a preparação, a execução, a consumação e o exaurimento chega a afetar o bem jurídico tutelado na forma descrita pelo tipo". [34]

Em sentido distinto, Mirabete sustenta que o caminho do crime é composto de uma fase interna, que abrange apenas a cogitação, e de uma fase externa, que compreende os atos preparatórios, os atos de execução e a consumação [35], excluindo a decisão e o exaurimento. É esse também o entendimento de Capez [36].

Optamos pela posição mais abrangente, defendida por Becker, Zaffaroni e Pierangeli, uma vez que, como se demonstrará adiante, não há como não considerar a decisão como uma fase autônoma do iter criminis. O mesmo se aplica ao exaurimento que, malgrado nem sempre ocorra, quando presente, mostra-se como verdadeira fase desse caminho.

3.3. Punibilidade do iter criminis

Segundo o critério material, o iter criminis torna-se punível quando se verifica que houve perigo ao bem jurídico. De acordo com o critério formal a punição pode se verificar com o a realização do tipo, quando se inicia a realização da conduta nuclear. São esses, segundo Mirabete, os critérios mais aceitos [37].

Em regra, o iter criminis começa a ser punível quando tem início a fase de execução, por serem atípicos os atos preparatórios e as fases que os antecedem [38]. As lições de Mirabete, Capez e Becker também convergem nesse sentido. Nessa esteira, ensina Garcia:

"Instaura-se a eventualidade da pena tão-só quando o agente penetra no campo dos atos executivos, passando a concretizar o seu desígnio no fato penalmente proibido. Nem podia deixar de ser assim, porquanto larga margem de atividade lhe sobraria até a consumação, sendo bem possível que desistisse em meio ao iter criminis. Ora, a desistência, como adiante veremos, anula a tentativa. Como, pois, alçar ao grau de tentativa punível a mera preparação? " [39]

Diz-se em regra porque o legislador, às vezes, transforma atos meramente preparatórios em tipos penais autônomos, como ocorre com os crimes de conspiração para a prática de motim e de quadrilha ou bando, destacados por Zaffaroni e Pierangeli [40], e de falsificação de moeda, lembrado por Mirabete [41].

Em outros casos o legislador tipifica como crimes independentes atos de externação a terceiros da cogitação ou da decisão, a exemplo do que ocorre nos crimes de ameaça, e de incitação ao crime, oportunamente destacados também por Mirabete [42], que também fogem à regra.

3.4. Relevância penal do iter criminis

Consoante escólio de Bitencourt, "O Direito Penal apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de segurança" [43]. O mesmo autor ainda destaca, de maneira oportuna, que:

"Esse conjunto de normas e princípios, devidamente sistematizados, tem a finalidade de tornar possível e convivência humana, ganhando aplicação prática nos casos correntes, observando rigoroso princípio de justiça. Com esse sentido, recebe também a denominação de Ciência Penal, desempenhando igualmente uma função criadora, libertando-se das amarras do texto legal ou da dita vontade estática do legislador, assumindo seu verdadeiro papel, reconhecidamente valorativo e essencialmente crítico, no contexto da modernidade jurídica [44]".

Em sentido análogo, ensina Toledo:

"Sob esse ângulo, o direito penal é realmente aquela parte do ordenamento jurídico que estabelece e define o fato-crime, dispões sobre quem deva por ele responder e, por fim, fixa as penas e medidas de segurança a serem aplicadas. Usa-se também a expressão como sinônimo de ‘ciência penal’. No último sentido, direito penal é um conjunto de conhecimentos e princípios, ordenados metodicamente, de modo a tornar possível a elucidação do conteúdo das normas penais e dos institutos em que elas se agrupam, com vistas à sua aplicação aos casos correntes, segundo critérios rigorosos de justiça [45]".

Como todo processo, o iter criminis compreende uma série de etapas que se sucedem de maneira coordenada com vistas a uma finalidade determinada [46]. Boa parte delas, porque extremamente subjetivas, costumam ser ignoradas pela doutrina. Nesse diapasão:

"Para o que desejamos, interessa-nos assinalar alguns desses momentos, aqueles que são o que o tiço considera, para abraçar, desde logo, o fato dentro do campo do que é proibido ou dele fazer depender uma conseqüência prática. Todos os demais momentos que se pode assinalar – que têm importância para outras disciplinas, como as Ciências da conduta, por exemplo – não possuem importância prática para nós [47]".

Regra geral, as etapas que se verificam no foro íntimo do agente não podem ser atingidas pela tipicidade, na conformidade do antigo e elementar princípio cogitationis poenam nemo patitur (ninguém pode sofrer pena pelo pensamento) [48], o que leva alguns doutrinadores a considerarem-nas irrelevantes para o Direito Penal. Assim entendem Capez [49], Zaffaroni e Pierangeli [50].

Ocorre que cada etapa do iter criminis, inclusive aquelas chamadas penalmente irrelevantes, está diretamente relacionada a outros elementos inerentes ao conceito analítico de crime, que podem nelas ser facilmente localizáveis.

Tem-se como exemplos o induzimento na fase de cogitação, a instigação na fase de decisão, a tentativa, a desistência voluntária e o arrependimento eficaz, nas fases de preparação e execução, o termo inicial da prescrição na consumação e o arrependimento posterior na fase de exaurimento do delito.

Nesse diapasão, oportunamente assevera Toledo que "Com esse sentido, atribui-se à ciência penal uma função criadora, não se limitando ela a repetir as palavras da lei ou a traduzir-lhes o sentido estático, ou a vontade histórica do legislador" [51].

Destarte, ainda que algumas fases não sejam atingidas diretamente pela punibilidade, não podem ser ignoradas pela dogmática penal ou relegadas apenas à psicologia, à psiquiatria ou à antropologia [52]. Contrariamente ao que sustentam os renomados doutrinadores citados, não há como negar a sua importância prática e científica, pois o Direito Penal, como se viu, não se resume ao conteúdo expresso na lei.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
William César Pinto de Oliveira

Advogado Criminalista. Graduado em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba. Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Paulista de Direito. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção Santa Bárbara d'Oeste/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, William César Pinto. Iter criminis: o caminho do crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3104, 31 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20752. Acesso em: 18 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos