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Iter criminis: o caminho do crime

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4. Cogitação

A cogitação é a fase inicial do iter criminis. Desenvolve-se no foro íntimo do agente e é de grande interesse para o estudo da personalidade, desenvolvido pelas ciências do pensamento, notadamente a psicologia e a psiquiatria. [53]Nessa esteira, ensina Becker:

"É caracterizado, muitas vezes, por uma profunda e conflituosa batalha que se desenvolve entre impulsos contraditórios e ambivalentes, provindos do consciente e do inconsciente do agente. É o momento de confronto entre forças opostas, entre a spinta e a contro spinta criminosa, entre Eros e Tanatos, entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, como se refere parte da psiquiatria, ou entre a virtude e o pecado, como aponta a teologia [54]".

Nesta etapa o agente apenas pensa em praticar o delito, num momento de reflexão e imaginação que, geralmente, está envolto em indecisão e indefinição [55]. Segundo Nucci, "é o momento de ideação do delito, ou seja, quando o agente tem a idéia de praticar o crime" [56].

Em alusão à cogitação, Bitencourt ensina que "Como em todo ato humano voluntário, no crime a idéia antecede a ação. É no pensamento do homem que se inicia o movimento delituoso, e a sua primeira fase é a ideação" [57]. Nesse diapasão:

"É a elaboração mental da resolução criminosa que começa a ganhar forma, debatendo-se entre os motivos favoráveis e desfavoráveis, e desenvolve-se até a deliberação e o propósito final, isto é, até que se firma a vontade cuja concretização constituirá o crime. São os atos internos que percorrem o labirinto da mente humana, vencendo obstáculos e ultrapassando barreiras que porventura existam no espírito do agente [58]".

4.1. Impunidade da cogitação

Os princípios cogitationis poenam nemo patitur e de internis non curat praetor são regras gerais, advindas da mais conhecida tradição jurídica romana [59]. A fase de cogitação é absolutamente impune, uma vez que se desenvolve no campo impenetrável do "claustro psíquico". [60]Nessa esteira, destaca Becker:

"Os fundamentos deste princípio provém de várias fontes, tendo sido lembrado inclusive por Beccaria. O grande pensador alertava para as limitações do julgamento humano, com seus imperfeitos recursos, o que impossibilita a correta interpretação dos pensamentos e das intenções dos homens [61]".

O reconhecimento de tais princípios decorre, igualmente, da dificuldade de controlar os pensamentos [62]. Como bem aponta Jakobs, o os pensamentos pertencem à esfera constitutiva da pessoa e controlá-los destruiria a pessoa livre [63]. Já advertia Carrara que castigar o pensamento é a fórmula comum com que se designa o apogeu da tirania [64]. Sobre o assunto, oportuna a advertência de Bitencourt:

"Mas, nesse momento puramente de elaboração mental do fato criminoso, a lei penal não pode alcançá-lo, e, se não houvesse outras razões, até pela dificuldade da produção de provas, já estaria justificada a impunibilidade da nuda cogitatio [65]".

Nesse diapasão, assevera Capez que o crime, na fase de cogitação, é impunível porque cada um pode pensar o que quiser [66]. No mesmo sentido, asseveram Zaffaroni e Pierangeli que as etapas que se desenvolvem no âmbito subjetivo não podem ser atingidas pela tipicidade [67].

4.2. Relevância penal da cogitação

Não obstante seja a cogitação impunível, não se pode concluir, como pretende Capez [68], que ela não interessa ao Direito Penal. Sua análise é de fundamental importância científica e prática, sobretudo no que diz respeito às circunstâncias judiciais e à possibilidade de induzimento.

A personalidade do agente, como ensina Mirabete [69], é circunstância judicial a ser levada em conta pelo magistrado na primeira das três fases da dosimetria da pena. É relevante, nesta etapa, a fase de cogitação, conforme frisa Becker:

"No caso de consumação do delito, a intensidade desta luta interior, eventualmente manifestada na conduta do sujeito nas etapas que antecederam a execução, pode ser considerada na apreciação da personalidade do agente. Não se pode afirmar, portanto, que esta fase seja sempre juridicamente irrelevante [70]".

A esse respeito, assevera Dotti:

"...uma vez praticado o crime, a cogitação é examinada pelo juiz para estabelecer a pena adequada ao fato, declarando que a culpabilidade é mais ou menos reprovável em função da atitude psicológica do autor. Na redação original do CP, o art. 42 determinava que o magistrado, ao individualizar a pena, considerasse a intesidade do dolo [71]".

Já o induzimento, consoante escólio de Fragoso, pressupõe a iniciativa na formação da vontade de outrem. Remete-nos ao fato de plantar a idéia onde esta ainda não exista [72], de tal sorte que, se o agente já cogitava agir de tal ou qual forma, não haverá induzimento.

Sobre o tema, cabe trazer à baila a lição de Mirabete, em alusão ao crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, tipificado pelo artigo 122, caput, do Código Penal [73]:

"Embora o induzimento e a instigação sejam situações semelhantes, pode-se distinguir o ato de induzir, que traduz a iniciativa do agente, criando na mente da vítima o desejo do suicídio quando esta ainda não pensara nele, do ato de instigar, que se refere à conduta de reforçar, acoroçoar, estimular a idéia preexistente de suicídio (RT 410/88) [74]".

Destarte, não se pode concluir que a cogitação, porque absolutamente impunível, é irrelevante para o Direito Penal. Interessa não só à dogmática, como também aos intérpretes e operadores do Direito na análise de casos concretos que envolvam a induzimento ou a valoração das circunstâncias judiciais.


5. Decisão

Na esteira dos ensinamentos de Welsel, a decisão ocorre quando o autor determina, com base no seu saber causal, os fatores requeridos para colocar em prática a causalidade, considerando os efeitos concomitantes e avaliando as eventuais variáveis [75].

Ou seja, quando já superada a cogitação e tendo prevalecido a vontade criminosa, o agente se decide pela prática do delito. Nesse sentido, aponta Becker:

"É o desígnio criminoso que vai assumindo contornos mais definidos na forma de um plano ou de um projeto, no qual são esboçados os detalhes, representados os resultados pretendidos, previstas as dificuldades e antecipadas as alternativas de superação das mesmas. É o momento da seleção de meios para a consecução do fim pretendido [76]".

Poder-se-ia concluir que a decisão é, em verdade, mera conseqüência da cogitação, pois todo aquele que cogita agir de tal ou qual modo termina decidindo algo, ainda que conclua por não agir de forma nenhuma e manter-se inerte.

Entretanto, conforme apontam Zaffaroni e Pierangeli, o desenvolvimento do crime é um processo ininterrupto em que se pode distinguir diversos momentos, uma vez que não existem limites preestabelecidos ou demarcados [77].

Nessa esteira, mostra-se possível considerar a decisão como uma fase autônoma do iter criminis. Isso porque não se trata apenas da opção pelo agir ou não agir, mas também do como agir, no que tange aos detalhes, perspectivas, dificuldades e alternativas.

Na esteira do escólio de Becker acima declinado, nota-se que o agente, nesta fase, necessita tomar não uma, mas diversas decisões antes de passar para os atos preparatórios. Essa é a razão pela qual consideramos a decisão como uma fase autônoma do caminho do crime, assim como Becker [78], Zaffaroni e Pierangeli [79].

5.1. Impunidade da decisão

A decisão, também chamada de desígnio, ainda se desenvolve na esfera íntima do agente e, assim como a cogitação, é impunível. Sua exteriorização através de quaisquer manifestações, verbais, gestuais ou escritas, não configura sequer tentativa, se não for além da inócua manifestação do pensamento [80].

"As manifestações orais ou escritas de um desígnio criminoso ou de uma opinião só são incriminadas quando, por si mesmas, criam uma situação de lesão ou perigo para um bem jurídico, constituindo condutas típicas, por exemplo, de ameaça, injúria, calúnia, difamação, incitação pública de crimes [81]".

O desígnio criminoso, se não lesa ou ameaça bem jurídico nenhum, exaure-se na esfera do pensamento, razão pela qual é insuscetível de qualquer punição no âmbito penal. Nessa esteira, lembra Hungria que pensiero non paga gabella (o pensamento não paga imposto) [82]. A esse mesmo respeito, destaca Dias:

"A mera decisão de realização de um tipo de ilícito objectivo, independente de um começo de realização efectiva, não é punível. A esta conclusão conduz o princípio indiscutido cogitationes poenam Nemo patitur. A justificação deste princípio deriva da própria função do direito penal de proteção subsidiária de bens jurídicos, não de puros valores morais: se o direito penal não visa, ao menos directamente, contribuir para a modelação moral do indivíduo, mas proteger uma ordenação social, só a violação desta ordenação – e assim, a conduta externa do agente – pode constituir um ilícito. A decisão de realização analisa-se num puro processo interior, insusceptível, em si mesmo, de violar interesses socialmente relevantes [83]".

5.2. Relevância penal da decisão

Malgrado seja a decisão impunível, porque subjetiva, interessa, assim como a cogitação, ao Direito Penal e à sua dogmática. Diz respeito, mais especificamente, às hipóteses de instigação trazidas pela legislação penal pátria.

Instigar, segundo ensina Capez, é reforçar uma idéia já existente [84]. Somente após a decisão é que pode ocorrer, por parte de terceiros, a instigação, que já pressupõe a existência, na mente do agente, de uma cogitação criminosa [85].

De outro lado, se o agente já tiver decidido pela prática do delito, não há que se falar em induzimento, porque induzir, como destaca Capez [86], é fazer brotar a idéia na mente do agente.

Com efeito, assim como ocorre com a cogitação, não se pode afirmar que a fase de decisão é penalmente irrelevante. É evidente, do mesmo modo, a sua importância científica e prática.


6. Preparação

A preparação, que precede o início da agressão ao bem jurídico penalmente tutelado, consubstancia-se na prática dos atos indispensáveis à execução do delito [87]. São atos que se dirigem à conduta criminosa [88]. Conforme ensina Maurach:

"... é aquela forma de atuar que cria as condições prévias adequadas para a realização de um delito planejado. Por um lado, deve ir mais além do simples projeto interno (mínimo) sem que deva, por outro, iniciar a imediata realização tipicamente relevante da vontade delitiva (máximo) [89]".

Como espécies de atos preparatórios, é possível mencionar, dentre inúmeros outros, a aquisição de uma arma para a prática de um homicídio, o planejamento para a prática de um roubo e a observação da vítima para a prática de um seqüestro. Sobre o assunto, ensina Dotti:

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"Os atos preparatórios constituem atividades materiais ou morais de organização prévia dos meios ou instrumentos para o cometimento do crime. Tanto pode ser a aquisição ou o municiamento da arma para o homicídio, como a atitude de atrair a vítima para determinado lugar para ser atacada [90]".

Nesse sentido, destaca Garcia:

"Ninguém dirá que é começo de execução o ato, na verdade preparatório, de escolha da arma para perpetrar o homicídio. O indivíduo compra um revólver e municia-o. Não está tentando matar. Está apenas na fase preparatória. Esse mesmo indivíduo ajusta-se com um co-autor: ainda não se acha no início da execução, mas, somente, preparando o crime [91]".

6.1. Impunidade da preparação

A rigor os atos preparatórios são atípicos e não são alcançados pela punibilidade. Dotti assevera que "Em geral, os atos preparatórios não são puníveis, se o crime não chega a ser tentado" [92].

Becker atribui essa impunidade à ambigüidade que permeia a matéria, já que não se pode auferir com precisão o desígnio de cometer um delito específico [93].

"A aquisição e o municiamento de arma tanto pode ser ato preparatório de homicídio, como o apresto para a prática de um esporte de tiro. A aquisição de veneno pode indicar a preparação de um veneficio, mas pode sugerir, também, uma cogitação ou desígnio suicida, bem como a intenção de eliminar insetos. O ato de sair à rua munido de gazuas pode significar a preparação de um furto, como pode corresponder à necessidade de abrir a porta do próprio escritório, cuja fechadura apresenta problemas [94]".

O ato é sempre equívoco e não representa, de per si, um dano ou perigo de dano a um bem jurídico [95]. Há exceções, todavia, em que o legislador, por razões de política criminal, tipifica atos preparatórios como delitos autônomos, como nos crimes de petrechos para falsificação de moeda e petrechos de falsificação [96].

Tal se dá porque as condutas configuram perigo para os bens jurídicos, sem que se exija a consumação dos delitos dos quais constituem atos preparatórios [97]. Nesse mesmo sentido, verificam-se as lições de Mirabete [98], Zaffaroni e Pierangeli [99].

6.2. Relevância penal da preparação

Os atos preparatórios, em que pese não sejam puníveis, ostentam evidente relevância para o Direito Penal, mormente no que se refere às circunstâncias do crime, a serem sopesadas quando da dosimetria da pena [100], e à configuração da tentativa [101].

Deve o magistrado, na fixação da pena-base, levar em consideração todas as circunstâncias que envolveram a prática criminosa, inclusive os atos preparatórios, que podem indicar menor ou maior grau de periculosidade do agente [102].

De outro lado, para que se possa falar em tentativa criminosa é necessária a identificação do exato momento em que findam os atos meramente preparatórios e iniciam-se os atos de execução. É fundamental, pois, bem delinear o limite que separa os atos preparatórios dos atos de execução.

Como observam Zaffaroni e Pierangeli, a distinção entre atos preparatórios e atos de tentativa é um dos problemas mais árduos da dogmática e, seguramente, o mais difícil da tentativa [103]. Mirabete também comunga desta opinião [104].

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Sobre o autor
William César Pinto de Oliveira

Advogado Criminalista. Graduado em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba. Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Paulista de Direito. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção Santa Bárbara d'Oeste/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, William César Pinto. Iter criminis: o caminho do crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3104, 31 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20752. Acesso em: 23 abr. 2024.

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