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Iter criminis: o caminho do crime

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7. Execução

Conforme destaca Antolisei, citado por Becker [105], um dos temas mais debatidos no Direito Penal é a fronteira que separa os atos preparatórios do início de execução. É somente com o início da execução que se pode falar em punibilidade, porque os atos preparatórios permanecem impunes, por mais inequívocos que sejam. Nesse sentido:

"A grande dificuldade reside em precisar, através de uma fórmula geral, em que momento do iter criminis o agente, ultrapassando o campo da volição e da preparação, deu início, efetivamente, à execução do delito. Trata-se de uma questão de fundamental importância teórica e prática, porque representa a delimitação da fronteira entre atos puníveis e atos impunes [106]".

Em que pese os avanços havidos na tentativa de melhor traçar este limite, a doutrina admite que é impossível a elaboração de uma fórmula precisa, mas com um grau de generalização que não permita a existência de qualquer dúvida [107].

Isso porque não há como precisar, de forma taxativa, o momento exato em que termina a preparação e se inicia a execução, de modo que se possa aplicar tal fórmula a todos os casos concretos. Reside nisso a dificuldade encontrada pela doutrina.

Não obstante, temos que é perfeitamente possível, e até necessário, que se estabeleçam critérios genéricos com o escopo de resolver a problemática, que não pode permanecer sem solução. Nessa esteira, tem-se o escólio de Becker:

"A indistinção gera insegurança jurídica, levando a que o limite entre atos puníveis e impunes permaneça numa zona sombria e insondável, comprometendo a necessária certeza do direito. Identificadas as imensas dificuldades para o reconhecimento preciso do início de execução, originárias das ilimitadas possibilidades dos casos particulares, maiores são os subsídios requeridos à doutrina, de forma a garantir ao máximo a segurança jurídica, restringindo o arbítrio na aplicação da lei, praticamente inevitável quando se trata de esquemas especialmente amplos e gerais [108]".

Conforme destacam Zaffaroni e Pierangeli, a respeito do tema, as teorias subjetivas negam a distinção entre atos preparatórios e executivos, enquanto as teorias objetivas, por outro lado, enfatizam-na [109], sempre com o escopo de melhor delimitá-la.

Dentre as inúmeras teorias desenvolvidas com o objetivo de resolver a questão, destaca-se a teoria objetivo-individual, com uma especial contribuição de Welzel [110]. Segundo essa teoria, o início de execução só pode ser apontado se considerado o grau de desenvolvimento da conduta, dentro do plano traçado pelo autor [111].

Para que se possa falar em início de execução, exige-se o início da ação típica, sem esquecer os atos imediatamente anteriores, tomando-se em conta, para tanto, o plano concreto do autor. Nesse diapasão, têm-se os ensinamentos de Zaffaroni e Pierangeli:

"Para determinar a imediatidade da conduta em relação à realização típica de maneira alguma se apresenta como suficiente a mera consideração do tipo in abstracto, porquanto há necessidade de apelar-se para a modalidade particular de considerar a aproximação típica no caso concreto, o que obriga a tomar-se em conta, de maneira iniludível, o plano concreto do autor [112]".

Zaffaroni e Pierangeli consideram que a teoria objetivo-individual é a que mais se aproxima do cerne do problema, mas admitem, entretanto, que não resolve a questão, devendo servir, segundo afirmam, como um princípio geral orientador [113], para que se possa continuar em busca do aperfeiçoamento da segurança jurídica. Nesse mesmo diapasão, oportuno destacar a lição de Becker:

"Embora não exista a possibilidade da elaboração de uma fórmula suficientemente genérica e precisa, capaz de abarcar as infinitas possibilidades no âmbito do tema, a construção teoria tem avançado, de forma indiscutível, na necessária busca da segurança jurídica, mantendo viva e atual a discussão sobre o tema [114]".

De outra banda, Mirabete argumenta que os critérios mais aceitos são os do ataque ao bem jurídico, quando se verifica que houve risco ao bem jurídico, e o do início da realização do tipo, quando tem início a realização do verbo núcleo do tipo [115]. Todavia, destaca que:

"O Código Penal adotou a teoria objetiva (formal) e exige que o autor tenha realizado de maneira efetiva uma parte da própria conduta típica, penetrando, assim, no ‘núcleo do tipo [116]".

Cabe frisar que Mirabete, em que pese aponte para critérios distintos, reconhece, assim como Zaffaroni, Pierangeli e Becker, que nenhum dos critérios é definitivo, podendo, somente, auxiliar a distinção nos casos concretos [117].

Se o início da execução verifica-se com o início da ação típica, levando-se em consideração, também, os atos imediatamente anteriores, de acordo com a intenção do agente, pode-se concluir que a execução consiste na própria ação típica, ou seja, na realização do tipo penal incriminador pelo sujeito ativo da infração penal.

7.1. Punibilidade da execução

Na cogitação, na decisão e na preparação ainda não há, inequivocamente, lesão ou ameaça de lesão a qualquer dos bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal. É com o início da execução que o agente passa a colocar em risco o bem jurídico tutelado pela norma [118], justificando, pois, a punibilidade nesta fase do iter criminis.

"Entre a primeira manifestação do desígnio delituoso e a consumação, não é possível encontrar outro limite, que satisfaça às exigências de segurança jurídica, que não seja o representado pelo princípio de execução [119]".

Quando iniciada a execução é que o fato passa a ser punível, podendo o agente responder pelo crime em sua forma tentada, consumada ou até mesmo exaurida, como se verá adiante. A forma com que os acontecimentos se darão após a o início da execução é que delimitará, nos termos da lei penal, a pena a ser aplicada ao agente.

Se o crime não se consumar por circunstâncias alheias à sua vontade, o agente responderá pela pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços, nos termos do artigo 14, parágrafo único, do Código Penal [120]. Caso o agente, voluntariamente, desista de prosseguir na execução ou impeça a produção do resultado, responderá pelos atos já praticados, nos moldes do artigo 15 do mesmo Diploma Legal [121].

Cabe frisar que todos os institutos supracitados somente podem se verificar após o início da execução. Regra geral, o agente será, em qualquer das hipóteses, alcançado pela punibilidade, em virtude da exposição do bem jurídico a risco.

7.2. Relevância penal da execução

A execução do crime é tema relevante para a dogmática penal, em especial, como se viu, para a delimitação entre o término dos atos preparatórios e o seu início. Mas não é este o único ponto importante no que tange à execução.

Consoante exposto acima, a execução abrange os institutos da tentativa, da desistência voluntária e do arrependimento eficaz, relacionando-se diretamente com eles. Isso porque só se poderá falar em tais institutos quando evidente o início de execução.

O crime impossível também é tema afeto à execução. Há, no crime impossível, início de execução, mas o crime não se consuma por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, nos termos do artigo 17 do Código Penal [122].

Se o artigo supracitado determina que a tentativa não será punida em caso de crime impossível, é evidente que houve início de execução e que o crime não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do agente. Caso contrário não se falaria em tentativa. Veja-se:

"Art. 17. Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime [123]".

Podem os meios empregados na execução do crime ser levados em consideração quando da aplicação da pena como circunstâncias do crime, nos moldes do artigo 59, caput, do Código Penal [124], podendo funcionar também como circunstâncias qualificadoras, agravantes genéricas ou causas de aumento de pena [125], desde que não haja bis in idem. Nessa esteira, oportuna a lição de Mirabete:

"A referência às circunstâncias e conseqüências do crime é de caráter geral, incluindo-se nelas as de caráter objetivo ou subjetivo não inscritas em dispositivos específicos. As primeiras podem referir-se à duração do tempo do delito, que pode demonstrar maior determinação do criminoso; ao local do crime, indicador, por vezes, de maior periculosidade do agente; à atitude durante ou após a conduta criminosa (insensibilidade e indiferença ou arrependimento" etc [126]".

De todo o exposto, denota-se que a fase de execução é das mais relevantes no iter criminis. Isso se deve, em especial, pela enorme discussão doutrinária acerca do limite que marca o esgotamento dos atos preparatórios e o seu início.


8. Consumação

A consumação do crime, segundo o artigo 14, inciso I, do Código Penal, opera-se quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal [127]. Verificada a presença de todos os elementos objetivos, subjetivos e normativos do tipo penal, tem-se a consumação do delito. Nessa esteira, o escólio de Mirabete:

"Está consumado o crime quando o tipo está inteiramente realizado, ou seja, quando o fato concreto se subsume no tipo abstrato descrito na lei penal. Preenchidos todos os elementos do tipo objetivo pelo fato natural, ocorreu a consumação [128]".

No mesmo sentido, destaca Becker:

"Para que se considere o delito consumado não é necessário que o agente tenha atingido sua meta, mas apenas que estejam presentes os elementos do tipo. A consumação se rege, como observa Maurach, por pontos de vista de política criminal, sem que deva coincidir com a meta proposta pelo autor [129]".

As diversas espécies de delito, como bem consignam Mirabete [130] e Capez [131], contam com diferentes formas de consumação. Nos crimes materiais e nos crimes omissivos impróprios a consumação se dá com a produção do resultado naturalístico, ou seja, com a modificação no mundo exterior provocada pela conduta.

Nos crimes formais verifica-se a consumação com a simples atividade; o resultado é possível, mas não necessário para que haja consumação. Já nos delitos de mera conduta a consumação opera-se com a ação ou omissão criminosa, o que também se aplica aos crimes omissivos impróprios, em que basta a omissão. Não há, nestas modalidades de crime, resultado previsto pela legislação penal.

A consumação, nos crimes qualificados pelo resultado, dá-se com a produção do resultado agravador, e nos crimes habituais, com a reiteração de atos. Nos crimes permanentes o momento consumativo se alonga no tempo, enquanto perdurar a conduta do sujeito ativo. Nos crimes complexos a consumação ocorre quando os crimes componentes estejam integralmente realizados.

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Há estudiosos, dentre os quais se destacam Bettiol e Reyes, a sustentar que é necessária para a consumação, também, a lesão efetiva ao bem jurídico, em harmonia com a noção teleológica do delito. Entretanto, conforme destaca Becker, em alusão aos ensinamentos de Liszt, "a maioria da doutrina adota a concepção formal, para a qual basta a correspondência do fato ao tipo abstrato" [132]. Nesse diapasão:

"Antolisei, defendendo a concepção formal, afirma que, para que se tenha o crime consumado, basta a constatação da completa realização da figura ou modello Del reato descrita pelo legislador. Considera que qualquer indagação ulterior é, além de supérflua, suscetível de conduzir a conclusões erradas, especialmente porque a pesquisa do bem protegido e a determinação da sua lesão, na prática, dão lugar, freqüentemente, a graves incertezas [133]".

8.1. Punibilidade da consumação

Com a consumação, o agente responde pela pena prevista in abstracto para o delito, na medida de sua culpabilidade, nos termos do artigo 5.º, inciso XLVI, da Constituição Federal [134], dentro dos critérios individualizadores da sanção penal.

Realizado o tipo penal e superada a fase de persecução penal, e desde que não haja excludentes de ilicitude ou de culpabilidade, chega-se à pena in concreto, que será aplicada ao sujeito ativo da infração penal. A fixação da reprimenda, conforme ensina Mirabete, obedecerá aos critérios previstos no Código Penal [135].

8.2. Relevância penal da consumação

O momento consumativo é fundamental para determinar a quantidade da pena a ser aplicada, para a fixação do foro competente para processar e julgar a infração [136], bem como para determinar o termo inicial do prazo da prescrição da pretensão punitiva, nos termos do artigo 111, inciso I, do Código Penal [137]. Com a consumação já não há que se falar em tentativa criminosa, desistência voluntária ou em arrependimento eficaz [138].

A tentativa verifica-se quando o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente, nos termos do artigo 14, inciso II, do Código Penal [139]. Em havendo consumação, impossível o reconhecimento da tentativa [140].

O mesmo se aplica à desistência voluntária, que ocorre quando o agente, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução, em etapa que antecede a consumação. No arrependimento eficaz o agente, também voluntariamente, impede que o resultado se produza, obstando a consumação. É o que se extrai do artigo 15 do Código Penal [141].

Nessa mesma esteira, destaca Dotti que "Sua ocorrência torna inviáveis tanto a desistência voluntária (de prosseguir na execução) como o arrependimento eficaz (de voltar ao status quo ante). Tais condutas poderão somente influir na individualização da pena" [142].

Com efeito, nota-se que a fase de consumação é amplamente relevante para o Direito Penal, gerando efeitos até mesmo no âmbito do Direito Processual Penal. A consumação pode ser considerada o apogeu do iter criminis, já que o exaurimento do delito, consoante se demonstrará adiante, nem sempre ocorre.

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Sobre o autor
William César Pinto de Oliveira

Advogado Criminalista. Graduado em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba. Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Paulista de Direito. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção Santa Bárbara d'Oeste/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, William César Pinto. Iter criminis: o caminho do crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3104, 31 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20752. Acesso em: 28 mar. 2024.

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