5 INTERNALIZAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL
5.1 Decretos e resoluções
A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (CQNUMC), instrumento internacional pioneiro na preocupação com os efeitos do aquecimento global, foi assinado pelo Presidente brasileiro no mesmo ano de sua concepção, em 1992. Tal documento foi referendado no Congresso Nacional via Decreto Legislativo nº 01, de 03.02.1994, tendo sido promulgado pelo Decreto Presidencial nº 2.652, de 01.07.1998.
O Brasil aderiu ao Protocolo de Quioto através da assinatura do documento pelo Presidente da República, em 29.04.1998, tendo sido referendado no Congresso pelo Decreto-Legislativo nº 144/02 e ratificado pelo Governo brasileiro em 23.08.2002. E, finalmente, o Protocolo foi promulgado através do Decreto nº 5.445, de 12.05.2005.
O Decreto (sem número) de 07.07.1999 criou a Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima (CIMGC), dando-lhe a responsabilidade deapreciar pareceres e aprovar projetos que resultem em redução de emissões e que sejam considerados elegíveis para o MDL, como a Autoridade Nacional Designada (AND) competente brasileira, prevista nos Anexos F e G da Decisão nº 17 da 7ª Conferência das Partes (COP-7).
Em 11.09.2003, a Resolução nº 1 da CIMGC [12], com a apresentação dos procedimentos para o MDL, definiu formalmente a Redução Certificada de Emissão (RCE):
(b) Uma "redução certificada de emissão" ou "RCE" é uma unidade emitida em conformidade com o Artigo 12 e os seus requisitos, bem como as disposições pertinentes destas modalidades e procedimentos, e é igual a uma tonelada métrica equivalente de dióxido de carbono, calculada com o uso dos potenciais de aquecimento global, definidos na decisão 2/CP.3 ou conforme revisados subsequentemente de acordo com o Artigo 5;
5.2 Projetos de Lei Federal
Encontram-se em apreciação no Congresso Nacional diversos projetos de lei que tratam do crédito de carbono, a seguir descritos. Desde 2008 existe uma recomendação de comissão do Congresso Nacional para que a RCE seja inteiramente regulamentada, como segue:
Recomendações: Mercado de Carbono
37. Regulamentar o mercado de carbono, notadamente no sentido de estabelecer a natureza jurídica das Reduções Certificadas de Emissões (RCE), definindo o regime tributário aplicável à espécie, tomando o cuidado de não onerar excessiva e desnecessariamente esses títulos.
– Ao Poder Legislativo Federal. (CONGRESSO NACIONAL, 2008).
Discorrendo o elenco dos projetos em trâmite na Câmara, o PL 493/07 define a natureza jurídica do crédito de carbono como um valor mobiliário, negociados na BM&F, sob supervisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Possui como apensos os PLs 261/07, 354/07, 494/07 e 594/07.
Dispõe assim o PL 493/07:
Art. 4º - Enquanto título, as RCEs, possuem natureza jurídica de valor mobiliário para efeito de regulação, fiscalização e sanção por parte da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, sujeitando-se portanto ao regime da Lei 6.385 de 07 de dezembro de 1976.
Parágrafo Único - Após aprovação pela Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima, a CVM fica responsável pelo registro e validação das entidades operacionais designadas.
Art. 6º - No intuito de facilitar a liquidez dos títulos, a CVM fará impor certa padronização dos contratos e a concentração das transações em mercado de bolsa através da Bolsa de Mercadorias e Futuros – BM&F, situada na Bolsa de Valores do Estado do Rio de Janeiro – BVRJ.
O PL 261/07 também busca disciplinar o tema:
Art. 7º O Mercado Brasileiro de Redução de Emissões – MBRE será operacionalizado em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado, autorizadas a funcionar pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM.
Já o PL 354/07 institui a Política Brasileira de Atenuação do Aquecimento Global, cria o MBRE e autoriza a CVM a regulá-lo. O PL 494/07 institui incentivos fiscais às pessoas físicas e jurídicas que invistam em projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL que gerem Reduções Certificadas de Emissões – RCEs. O PL 594/07 equipara a Redução Certificada de Emissão (RCE) a valor mobiliário, para os fins que determina a Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976:
Art. 3º A CVM expedirá as normas necessárias ao registro e à negociação de RCE.
Todos os projetos listados acimageraram o Substitutivo aos projetos de lei nºs 493, 494, 594 e 1.657, de 2007, da relatoria do Deputado Antonio Carlos Mendes Thame, com outro substitutivo adotado pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, em 02.04.2008.
Esse novo texto dispõe sobre a Redução Certificada de Emissão (RCE), prevê sua negociação nos mercados de bolsa ou de balcão organizado, estabelece incentivos fiscais às pessoas que invistam em projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) que gerem RCE e autoriza a constituição de Fundos de Investimento em Projetos de MDL. A RCE está assim tratada no projeto:
Art. 1º Esta lei dispõe sobre a Redução Certificada de Emissão (RCE) e prevê sua negociação nos mercados de bolsa ou de balcão organizado.
Art. 2º A RCE constitui uma unidade padrão de redução de emissão de gases de efeito estufa, correspondente a uma tonelada métrica de dióxido de carbono (CO2) equivalente, calculada de acordo com o Potencial de Aquecimento Global, definido na Decisão nº 2 da Conferência das Partes nº 3 (COP-3) ou conforme revisado subsequentemente, de acordo com o art. 5º do Protocolo de Quioto.
Art. 3º A RCE pode ser negociada em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores ou entidades de balcão organizado autorizadas a funcionar pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
§ 1º As RCE’s estão sujeitas aos ditames da Lei 6.385 de 1976 quando ofertadas publicamente.
Art. 4º As operações de RCE são isentas de tributação de qualquer natureza.
Paralelamente a estes, existe o PL 2.027/07, que define a titularidade das RCEs provenientes da área de geração de energia elétrica, da seguinte forma:
Art. 1º. Os direitos ou benefícios financeiros provenientes de créditos de carbono certificados por autoridades nacionais certificadoras e dos certificados de redução de emissões, originados por empreendimentos habilitados e contratados no âmbito de programas governamentais de incentivo ao uso de energia elétrica gerada por fontes alternativas, serão apropriados para comercialização exclusivamente pelo empreendedor, desde seu credenciamento e certificação.
5.3 Lei Federal nº 12.187/2009
Existia ainda em andamento o PL 18/07 e seus oito apensos [13], tratando da obrigatoriedade de redução de emissões de GHGs no país.
A Comissão Especial da Câmara dos Deputados destinada a analisar o Projeto de Lei nº 18/07, que instituiria a Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC, aprovou em 27.10.2009 o seu texto substitutivo, tendo o Senado Federal inserido emendas no Projeto de Lei da Câmara nº 283, de 2009, para inserção de metas voluntárias de redução de GHGs.
O projeto retornou à Câmara em 25.11.2009, onde teve a redação final assinada em 09.12.2009.
Assim, em 29 de dezembro de 2009, o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva sancionou o texto que viria a gerar a Lei nº 12.187, publicada no Diário Oficial da União em edição extra do dia 30.12.2009.
Traz a Lei nº 12.187/2009 os seguintes dispositivos, que procuram encaminhar a definição da natureza jurídica do "crédito de carbono":
Art. 9º. O Mercado Brasileiro de Redução de Emissões – MBRE será operacionalizado em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado, autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, onde se dará a negociação de títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa evitadas certificadas.
Art. 12. Para alcançar os objetivos da PNMC, o País adotará, como compromisso nacional voluntário, ações de mitigação das emissões de gases de efeito estufa, com vistas em reduzir entre 36,1% (trinta e seis inteiros e um décimo por cento) e 38,9% (trinta e oito inteiros e nove décimos por cento) suas emissões projetadas até 2020.
Parágrafo único. A projeção das emissões para 2020 assim como o detalhamento das ações para alcançar o objetivo expresso no caput serão dispostos por decreto, tendo por base o segundo Inventário Brasileiro de Emissões e Remoções Antrópicas de Gases de Efeito Estufa não Controlados pelo Protocolo de Montreal, a ser concluído em 2010.
Assim, da ausência total de legislação abordando a Redução Certificada de Emissão, passa-se, de 30.12.2009 em diante, a ter um instrumento legal definindo-a como título mobiliário.
6 DISCUSSÕES ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DA RCE NO BRASIL
6.1 Definição de natureza jurídica
Antes de se adentrar à análise da natureza jurídica do "crédito de carbono", mister trazer à baila a própria essência do que significa esse termo.
Conforme ensina Antônio Álvares da Silva, a natureza jurídica de um instituto é a atividade metodológica pela qual se determinam os seus elementos jurídicos essenciais e gerais, ou seja, aqueles elementos que se subtraem como denominador constante no elenco das normas que o definem no campo do Direito (SILVA, 1986).
Desempenha relevo importantíssimo na teoria do direito, já que classificar o bem jurídico em uma certa categoria lhe acarreta funções e características próprias deste grupo.
Alexandre Freitas Câmara, em sua obra "Lições de Direito Processual Civil", informa que, quando se procura a natureza jurídica de um instituto, o que se pretende é fixar em que categoria jurídica o mesmo se integra, ou seja, de que gênero aquele instituto é espécie (CÂMARA, 2003).
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho ensinam ainda que:
Indagado a respeito da natureza jurídica de determinada figura, deve o estudioso do direito cuidar de apontar em que categoria se enquadra, ressaltando as teorias explicativas de sua existência. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002)
Portanto, de modo bem simples, nada mais significa a natureza jurídica de um instituto do que responder à incógnita: "o que significa isto para o direito?".
Assim, parte-se do entendimento de que a natureza jurídica do crédito de carbono deve ser contemplada desde a classificação mais ampla, até chegar à sua identificação individual.
6.1 Classificação básica da RCE
Primeiramente, impende salientar que a RCE é objeto de direito, sendo útil ao homem e possuindo expressão econômica, afinal pode ser negociado por pessoas que desenvolvam projetos de redução de gases maléficos e causadores do efeito estufa, com partes que sejam obrigadas a comprovar essa redução, de acordo com o Protocolo de Quioto.
Estas características permitem classificar o "crédito de carbono" como um bem. Segundo Venosa (2006), bem resumidamente é aquilo que traz utilidade ao homem e que possui valor pecuniário.
Ocorre ainda distinguir os bens corpóreos dos incorpóreos, sendo que os primeiros são dotados de existência física, material, e os segundos imateriais, que só podem ser compreendidos pela inteligência humana. Venosa (2006) afirma também que bem incorpóreo é aquele que não possui existência material, e sim jurídica, verdadeiro direito.
A par destes conceitos, é possível adiantar ainda que a RCE consiste em um registro eletrônico, conforme determina o parágrafo 2 do Apêndice D da Decisão 17/CP.7 da Conferência das Partes relativas ao MDL [14], in verbis:
2. O registro do MDL deve ter a forma de uma base de dados eletrônica padronizada que contenha, entre outras coisas, elementos de dados comuns pertinentes à emissão, titularidade, transferência e aquisição de RCEs.
Este registro confirma a real redução de emissões de GHGs da atmosfera, conferindo o direito ao seu possuidor de negociá-la. Contudo, não possui existência tangível, material, mas comporta estimação pecuniária, podendo ser objeto de negociação entre partes. Assim, enquadra-se a Redução Certificada de Emissões como um bem incorpóreo ou intangível.
A definição entre bem material (corpóreo) ou imaterial (incorpóreo) não foi abarcada no Código Civil, porém é amplamente utilizada pela doutrina civilista, entre eles Sílvio de Salvo Venosa, no conceito acima exposto.
O Código Civil de 2002 adotou a seguinte classificação legal dos bens, em seu Capítulo I, do Livro II:
- art. 79 a 84: bem imóvel ou móvel;
- art. 85: bem fungível ou infungível;
- art. 86: bem consumível ou inconsumível;
- art. 87 e 88: bem divisível ou indivisível;
- art. 89 a 91: bem singular ou coletivo;
- art. 98 a 100: bem público ou particular.
A RCE, como direito que representa um "crédito de carbono" para o seu titular, é bem móvel para efeito legal, nos termos do art. 83, inciso III, do Código Civil, in verbis:
Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais:
I - as energias que tenham valor econômico;
II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes;
III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações. (grifos nossos)
Isso ocorre porque a RCE é um bem imaterial que exprime direitos e tem representação pecuniária, assim como acontece com o fundo de comércio, os direitos autorais, os créditos em geral, ações, entre outros.
A conceituação como bem móvel agrega diversos efeitos práticos à RCE, dentre eles:
- pode ser alienada independentemente de outorga do cônjuge e de forma livre, sem necessidade de escritura pública;
- não está sujeita ao imposto de transmissão (ITBI);
- pode ser objeto de penhor;
- a hasta pública ocorre através de leilão.
É ainda bem fungível, conforme o art. 85 do Codex, pois podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.
É inconsumível (art. 86), comportando uso reiterado, sem a destruição imediata da sua substância, e indivisível (art. 87), pois seu fracionamento prejudica o uso a que se destina; é a unidade básica de registro eletrônico da redução de GHGs.
Caracteriza-se ainda por ser um bem singular (art. 89), que são aqueles que, mesmo reunidos, se consideram de per si, independentemente dos demais. O registro eletrônico do "crédito de carbono", mesmo quantificando diversas RCEs, se consideradas individualmente, cada uma delas tem valor próprio.
Não custa ainda repetir que, conforme o § 9º do art. 12 do Protocolo, a participação no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo pode envolver entidades privadas e/ou públicas, ou seja, podem ser apresentados projetos tanto por organismos públicos quanto privados (pessoas físicas ou jurídicas).
Então, para completar a classificação ofertada pelo Código Civil, considera-se bem particular (art. 98) que pode pertencer tanto a pessoa física quanto jurídica. Contudo, se for obtida por pessoa jurídica de direito público interno, será classificada como bem público.
Assim, tendo como base a classificação doutrinária e a enumeração das classes de bens promovida pelo Código Civil de 2002, a Redução Certificada de Emissões pode ser considerada um bem:
- intangível (imaterial);
- móvel;
- fungível;
- inconsumível;
- indivisível;
- singular; e
- particular ou público.
6.2 Classificações da RCE suscitadas pelos estudiosos do tema
Como demonstrado nos tópicos anteriores, o tema "Natureza Jurídica da RCE", apesar de alguns decretos editados pelo Governo Federal, não possuía a mínima regulação no Brasil, até o advento da Lei nº 12.187/2009.
A indefinição que existia quanto às características da Redução Certificada de Emissão para o Direito é percebida nos textos produzidos pelos doutrinadores e instituições públicas e privadas que buscaram delimitá-la. As controvérsias são extremas, a ponto de ser considerada ora um bem imaterial, ora uma mercadoria, ora uma prestação de serviço, como será visto no decorrer deste subitem.
Com isso, mister coletar todas as informações até então disponíveis sobre a concepção jurídica do "crédito de carbono" e procurar apontar a direção que mais se coaduna com a doutrina e a legislação civilista em vigor.
6.2.1 Serviço
O Banco Central do Brasil (Bacen), através da Circular nº 3.291, de 08.09.2005, que alterou o Regulamento do Mercado de Câmbio e Capitais Internacionais, instituiu um canal de ingresso de recursos decorrentes do "crédito de carbono", classificando da seguinte forma a Redução Certificada de Emissões:
Natureza da Operação: Serviços Diversos - Créditos de Carbono 29/(NR) – Código: 45500 [15]. (grifo nosso)
O Código Civil de 2002 regula as relações de prestação de serviço, como se pode perceber nos artigos iniciais do capítulo próprio:
Art. 593. A prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou à lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo.
Art. 594. Toda a espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição.
A definição jurídica de serviço, no direito pátrio, pode ser encontrada no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), que prevê, em seu art. 3º, § 2º: tratar-se de qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
O posicionamento econômico, como o adotado pelo Bacen, entende serviço como a circulação de bens imateriais ou incorpóreos. Porém, o posicionamento jurídico define prestação de serviços como uma obrigação de fazer, regulada no Código Civil.
A jurisprudência adotava o conceito econômico de serviço até a decisão do Supremo Tribunal Federal (RE 116.121/SP) em 11.10.2000. Desde então, serviço passou a ser compreendido como obrigação de fazer.
Entende o Bacen que o importante é o serviço prestado através de um Projeto de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), implementado para reduzir as emissões de GHGs.
No entanto, o empreendedor não visa à prestação de um serviço, mas sim obter a certificação das suas reduções de emissão. A RCE, sem dúvida, o objeto visado pelo Projeto de MDL, não se sobressaindo o serviço em si, mas o produto gerado – o "crédito de carbono".
Assim, face à imensa predominância do produto "crédito de carbono", frente ao trabalho de aplicação do projeto de MDL que reduz emissões, o qual tem caráter nitidamente secundário nesse contexto, descabe a definição da RCE como serviço.
6.2.2 Ativo financeiro ou derivativo
Para a ONG norte-americana Friends of Earth, a RCE é fundamentalmente um comércio de derivativos, em sua maioria vendidas em contratos futuros (SCHEIDT, 2009).
A legislação brasileira, no entanto, não define o que venha a ser derivativo. No site da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), encontra-se apenas a definição econômica para o termo:
Denominação genérica para operações que têm por referência um ativo qualquer, chamado de "ativo base" ou "ativo subjacente" (que em geral é negociado no mercado à vista). Derivativos usualmente têm uma data de vencimento. Exemplos de derivativos são opções de compra/venda, futuros e swaps. [16]
Justificam os seguidores desse entendimento o fato de ser objeto de negociação não o registro efetuado junto ao Conselho Executivo do MDL, em Bonn, na Alemanha, mas um "espelho" comercializável desse registro, tratando-se de um ativo derivativo de outro ativo financeiro (MACHADO FILHO; SABBAG, 2009).
Contudo, não sendo um conceito jurídico ou legal, não é possível concordar em definir a natureza jurídica da RCE como derivativo do registro efetuado junto ao Conselho Executivo do MDL.
Além disso, conforme afirma o diretor da CVM, Otavio Yazbek, em seu parecer acerca do tema aqui exposto [17], a finalidade do derivativo não é tanto transferir o bem em si, mas sim "travar" o preço de venda (ou de compra) deste bem em uma data futura.
Imprópria, desta forma, a definição da RCE como derivativo, pois o seu valor pecuniário não resulta de nenhum outro ativo que se encontre subjacente, não deriva, o que obsta sua subsunção à categoria dos derivativos, que caracterizam-se por ser uma variação de uma oferta existente.
6.2.3 Commodity
Outro conceito inexistente em nossa legislação pátria, a commodity é palavra de origem inglesa, que significa mercadoria. Na economia, é o produto em estado bruto, com preço variável e importância comercial, como o café, por exemplo.
A CVM o define como mercadoria em geral, matéria-prima, passível de padronização quanto à quantidade, qualidade, ponto de entrega, prazo de entrega etc [18]. É um bem com existência física, corpóreo e fungível.
O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE 203.705-SP (DJ de 29.10.1999), já apontou que à mercadoria é atribuída a designação genérica de coisa móvel que possa ser objeto de comércio por quem exerce mercancia com frequência e habitualidade.
Por representar no meio econômico um bem com existência física, que se sujeitará à distribuição para consumo, a commodity dissocia-se da concepção da RCE, bem eminentemente incorpóreo.
Da mesma forma discorda-se do entendimento do professor Antonio Lorenzoni Neto, quando qualifica os créditos de carbono como commodities ambientais, operados através de contrato de compra e venda (LORENZONI, 2009).
Sendo a RCE um bem intangível, mesmo que relacionada à temática do meio ambiente, a negociação de tal bem ocorre no âmbito do Direito Civil, que inclusive apresenta a compra e venda apenas como instrumento contratual possível quando o objeto seja bem corpóreo. Fora disso, o negócio jurídico aplicável deve ser outro, a priori tratar-se de cessão de direitos.
6.2.4 Título de crédito
A classificação da RCE como título de crédito é apresentada pelo advogado Gustavo Contrucci e pelo professor Lúcio Flávio Siqueira de Paiva [19]. O primeiro defende não se tratar de um bem, mas um direito, um crédito, adquirido através de um título – a RCE, que pode ser negociado mediante cessão ou endosso (CONTRUCCI, 2008).
Já Lúcio Flávio discorre a RCE como um Certificado de Redução de Emissões, que tem como órgão emissor e devedor o Conselho Executivo do MDL, sediado em Bonn, na Alemanha, e como credor o proponente do Projeto e titular do certificado.
Segundo o renomado doutrinador italiano Cesare Vivante, título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado (MARTINS, 1998).
O art. 887 do Código Civil de 2002 apresentou definição de acordo com o ensinamento de Vivante:
Art. 887. O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei.
Nesse instrumento, há sempre uma obrigação do emissor e um direito do detentor.
Os princípios básicos do título de crédito – legalidade, cartularidade, autonomia – não coincidem com os da RCE. A legislação é quem determina o que vem a ser título de crédito, haja vista a força executiva conferida a tal instrumento, bem como indica seus elementos necessários. No Brasil, a RCE ainda não foi discutida no plano legislativo.
O título de crédito consiste na cártula, no documento físico em si, pouco importando a origem negocial desse documento. A legislação que o rege define a sua forma, os dados mínimos que devem estar redigidos, o direito que ele representa – ordem ou promessa de pagamento.
O crédito de carbono, registro eletrônico representativo da redução de emissão de GHGs junto ao organismo internacional que o controla, não tem feição física, documental, e além disso, não representa ordem ou promessa de pagamento em moeda.
A RCE não é um título que pode ser livremente repassado, pois é um registro eletrônico. Sua forma de comercialização dá-se por meio de contrato, ou seja, não há emitente de um título negociável, tampouco devedor e credor. Existe uma equivalência monetária, mas não uma obrigação pecuniária em si.
Assim, a autonomia e a literalidade exigidas no âmbito do Direito Civil não restam preenchidos pela Redução Certificada de Emissão.
6.2.5 Valor mobiliário
A BM&FBOVESPA S.A. – Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros – vem considerando o crédito de carbono como valor mobiliário, intermediando a compra e venda nos mercados a vista e a termo, através de leilões (BM&FBOVESPA, 2009).
O presidente da Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB-RJ), Flávio Hamed, defende que, juridicamente, o crédito de carbono é um valor mobiliário, por ser um certificado (GANDRA, 2009).
Apenas aqueles documentos constantes da legislação própria – Lei nº 6.385/76 – e não excluídos expressamente, é que são considerados valores mobiliários, como segue:
Art. 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:
I - as ações, debêntures e bônus de subscrição;
II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;
III - os certificados de depósito de valores mobiliários;
IV - as cédulas de debêntures;
V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;
VI - as notas comerciais;
VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;
VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e
IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.
§ 1º Excluem-se do regime desta Lei:
I - os títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal;
II - os títulos cambiais de responsabilidade de instituição financeira, exceto as debêntures.
A tipicidade novamente vem à baila no que se refere a incluir novo instituto em uma classificação específica. A Lei nº 6.385/76 é quem dita o rol dos documentos que representam um valor mobiliário. A RCE, porém, nunca faz parte dele, nem se encaixava nos seus incisos VIII ou IX.
A Comissão Mista Especial sobre Mudanças Climáticas do Congresso Nacional analisa atualmente vários projetos de lei, tendo um deles definido a RCE como valor mobiliário (CONGRESSO NACIONAL, 2008).
O certificado de valor mobiliário, segundo a lei já mencionada, sujeita-se às regras e condições definidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que disciplina sua circulação.
A CVM, através de parecer emitido pelo diretor Otavio Yazbek, apresentou comunicado informando que a RCE não é valor mobiliário, derivativo ou título de investimento coletivo, não estando sujeita à Lei nº 6.385/76, tratando-se sim de um ativo (CVM, 2008).
Não havendo, assim, legislação tratando da natureza jurídica da RCE como valor mobiliário, descabe a sua classificação como tal.
6.2.6 Bem intangível ou incorpóreo
O coordenador-geral de Mudanças Globais de Clima do Ministério da Ciência e Tecnologia, José Domingos Miguez, apóia a decisão de ser a RCE um ativo intangível, transacionável eletronicamente [20], posição também defendida por Haroldo Machado Filho e Bruno Kerlakian Sabbag (MACHADO FILHO; SABBAG, 2009).
A Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Carbono (Abemc) e a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) consideram a RCE um ativo intangível das empresas, comercializável através de contrato de cessão, segundo Flavio Gazani, presidente da Abemc e Gustavo Kelly Alencar, gerente jurídico empresarial-tributário da Firjan (BOTELHO, 2009; FIRJAN, 2009).
Para Hugo Netto Natrielli de Almeida, trata-se de um bem incorpóreo, imaterial e, mais ainda, um ativo intangível puro, pois a sua natureza ou seu valor não derivam de outro ativo, sendo operável através de cessão de direitos (ALMEIDA, 2005).
Alan da Motta, especialista em Direito Ambiental pela PUC-MG, entende como sendo bem intangível ou incorpóreo, por não obter existência material, e sim abstrata, com valor econômico, sendo um certificado com natureza anômala (MOTTA, 2008).
Assim, confirma-se a opinião dos autores supracitados, onde a Redução Certificada de Emissões pode ser enquadrada perfeitamente como um bem jurídico da categoria dos imateriais (incorpóreos).
Um dos indicativos favoráveis a esse entendimento é o de que, apesar da Receita Federal do Brasil continuar estudando o tema, em resposta à Consulta Pública nº 59/2008, formulada perante a Superintendência da Receita Federal do Brasil da 9ª Região (Paraná e Santa Catarina) e publicada no Diário Oficial da União de 07.04.2008, entendeu-se que a comercialização da RCE se dá através de cessão de direito para o exterior (BAETA; BARROS, 2008) [21].
Assim, analisando o entendimento exposado pela Receita Federal, perfeitamente cabível a classificação da sua natureza jurídica como bem intangível, pois o "crédito de carbono" é realmente negociado através de cessão de direitos, ao contrário de sua possível classificação como serviço ou commodity, por exemplo.
Não é outro o pensamento de Werner Grau Neto:
A ausência de fungibilidade e vinculação do certificado à atividade de MDL; a existência de equivalência monetária, e não obrigação pecuniária em si; e a inexistência de uma prestação de serviço, e sim a realização de uma cessão de crédito, são elementos a afastar a consideração do certificado como commodity, título mobiliário ou prestação de serviços.
Assim, pende entre bem incorpóreo e valor mobiliário a classificação para o certificado de emissões reduzidas. [22]
6.2.7 Títulos mobiliários e a criação do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões
A Lei Federal nº 12.187, de 29.12.2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima, trouxe, em seu artigo 9º, interessante inovação no trato da redução de emissões de GHGs.
Dispõe o citado artigo:
Art. 9º. O Mercado Brasileiro de Redução de Emissões – MBRE será operacionalizado em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado, autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, onde se dará a negociação de títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa evitadas certificadas.
Assim, a partir da publicação da lei, em 30.12.2009, a Comissão de Valores Mobiliários será responsável por autorizar as bolsas do mercado financeiro a negociarem títulos mobiliários vinculados a "créditos de carbono", formando o chamado Mercado Brasileiro de Redução de Emissões.
É possível notar, portanto, que a inovação legislativa supracitada criou um novo método, interno, a nível nacional, de quantificar os "créditos de carbono". Contudo, não tem ligação com a RCE emitida pelo Conselho Executivo do MDL, em Bonn, na Alemanha.
Isso porque, em nenhum momento, refere-se a lei publicada às emissões reduzidas quantificadas conforme o Protocolo de Quioto. Se o legislador quisesse relacionar as emissões evitadas que geram títulos mobiliários e são negociados no Mercado Brasileiro de Redução de Emissões, teria-o feito expressamente, o que não ocorreu.
A legislação pátria não conceitua o que vem a ser título mobiliário, sendo considerado como todo instrumento que encerre direitos de crédito. Cita Gabriel Sister que os títulos mobiliários necessariamente correspondem a uma obrigação pecuniária a ser cumprida por quem o emite (SISTER, 2008).
Além disso, as características dos títulos mobiliários são bem semelhantes à dos títulos de crédito, o que levou alguns autores, como Roberto Quiroga Mosquera, a dizer que o conceito de título mobiliário está contido no de título de crédito (MOSQUERA, 1999).
Portanto, fica bem claro que os títulos mobiliários operacionalizados através do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões, em bolsas de valores, por exemplo, terão o controle da CVM porque correspondem a uma obrigação pecuniária daqueles que os emitem.
Já com relação ao "crédito de carbono" comprovado junto ao Conselho Executivo do MDL, na Alemanha, este órgão não tem obrigação de convertê-lo em valor monetário. Não há, assim, caracterização de título mobiliário na emissão do registro da RCE. O Conselho Executivo apenas o emite, não o compra nem o negocia.
A inovação legislativa supracitada, como demonstrado, não tratou nem atingiu a natureza jurídica do "crédito de carbono" criado pelo Protocolo de Quioto, que continua sendo a de um bem intangível ou incorpóreo.
6.2.8 Considerações
Como exposto até o momento, a lacuna existente hoje na legislação brasileira sobre a natureza jurídica da Redução Certificada de Emissões acaba por intimidar ou até mesmo impedir um maior número de projetos de MDL, em virtude da insegurança jurídica gerada até então.
O Conselho Federal de Contabilidade, através da sua Comissão de Responsabilidade Socioambiental, está estudando método padronizado de contabilização da RCE, conforme se defina qual a sua natureza jurídica (CFC, 2009).
Encontra-se em análise no Supremo Tribunal Federal (STF), o Mandado de Segurança nº 26.326, o primeiro caso prático de disputa pelos créditos de carbono no Brasil. Tal processo, sem conteúdo decisório até o momento, encontra-se em vista ao Procurador Geral da República desde 20.04.2007. [23]