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Cooperativismo e Direito do Trabalho

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01/10/2001 às 00:00
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4. A relação de emprego.

O conceito legal de empregado está contido no art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, que preceitua o seguinte:

"Art. 3º. Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

Parágrafo único. Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual"

A doutrina especializada, interpretando tal dispositivo, há muito já fixou os requisitos básicos para a caracterização da relação de emprego, que estão expressos em tal conceito, a saber, a pessoalidade, a onerosidade, a não-eventualidade da prestação e a subordinação juridíca do empregado ao empregador.

Observe-se, inclusive, que o caput do art. 472 do mesmo texto consolidado define que o "Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego", o que demonstra que basta a presença simultânea dos requisitos do art. 3º da CLT para estar caracterizada a relação de emprego, mesmo que não haja manifestação escrita ou verbal nesse sentido, ante a possibilidade do surgimento tácito da relação de emprego.

Fixadas essas noções, analisemos juridicamente também um outro fenômeno moderno, de raiz econômica, que, veremos, tem tudo a ver com a polêmica relação entre as cooperativas e o direito do trabalho: a terceirização ou intermediação de mão de obra.


5. A terceirização.

"Terceirização de mão-de-obra é ilegal!"

Antes de começar qualquer aula sobre esse tema, costumo verberar esta frase para ver qual é a reação da platéia e, cada vez mais, percebo maiores inquietações nos meus alunos ou interlocutores.

Por certo, essa minha constatação é facilmente explicada pelo fato de que o fenômeno da terceirização ou intermediação de mão-de-obra é cada dia mais presente na nossa sociedade, já fazendo parte a expressão até mesmo do conhecimento médio dos cidadãos.

Todavia, a questão nem sempre foi tratada dessa forma.

Toda a doutrina trabalhista mundial sempre via o que hoje se chama de "terceirização" como algo execrável, conhecida pelo galicismo "marchandage", que sempre caracterizou uma relação de emprego.

A pré-disposição contra essa forma de contratação podia ser explicada quase que por uma fórmula matemática: S1 = S2 + R (onde S1 seria o salário do empregado contratado diretamente, S2 o salário contratado por intermediação e R a remuneração que o intermediador de mão-de-obra receberia pela sua atividade).

Ou seja, a "marchandage" não poderia ser aceita, pois o intermediador se apropriaria de um valor que poderia ser pago diretamente ao trabalhador, se esse intermediário não existisse.

E assim foi se posicionando a jurisprudência trabalhista, que, nessa primeira fase, somente foi atenuada pelas leis de trabalho temporário e da contratação de serviços de vigilância, sendo editado o Enunciado nº 256 do TST, nos seguintes termos:

Enunciado nº 256

Contrato de prestação de serviços. Legalidade.

Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis nº 6.019, de 3.1.74, e 7.102, de 20.6.83, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços. (Res. 4/86 DJ-30.9.86)

As relações sociais, contudo, são muito mais complexas do que a disciplina jurídica e/ou econômica que se possa fazer delas.

E a jurisprudência trabalhista não poderia ficar cristalizada, tal qual diamante indestrutível, mas sim moldar-se às novas e intrincadas manifestações ocorrentes na sociedade mundial.

E, por isso mesmo, tal enunciado foi revisto, não sem a perda total do preconceito contra a terceirização, mas já flexibilizando a rigidez da norma, com uma disciplina mais detalhada da matéria, vez que, salvo honrosas exceções(13), até hoje não há uma lei específica disciplinando todo esse conjunto de implicações sociais, econômicas e jurídicas que é a terceirização.

O "novo" enunciado é o de nº 331, que tem a seguinte redação:

Enunciado nº 331

Contrato de prestação de serviços. Legalidade (Revisão do Enunciado 256)

I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 3.1.74).

II - A contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da Constituição da República).

III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.6.83), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que este tenha participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. (Res. 23/93 DJ-21.12.93)

Como se vê, do ponto de vista jurisprudencial, já se abrem espaços para a terceirização das relações trabalhistas, hoje especificamente quanto às atividades-meio.

Entretanto, somente o futuro dirá se não será possível também se aceitar, perante os pretórios trabalhistas, a intermediação de mão-de-obra em atividades-fim da empresa, sem que haja fraude na contratação.

Tal aceitação, sem sombra de dúvida, terá que partir da constatação fática da autonomia do trabalhador na atividade-fim, em que não estariam presentes, de forma alguma, os já mencionados requisitos da relação de emprego (pessoalidade, onerosidade, não-eventualidade e subordinação juridíca).

E onde entram as cooperativas de trabalho nessa conversa?

É o que veremos no próximo tópico.


6. O parágrafo único do art. 442 consolidado.

Toda essa exposição teve como finalidade construir o arcabouço doutrinário para entender a polêmica existente na atualidade quanto às cooperativas de trabalho e os contratos laborais.

Com efeito, a lei nº 8.949, de 09 de dezembro de 1994, inseriu um parágrafo único no já mencionado art. 472 da Consolidação das Leis do Trabalho, nos seguintes termos:

"Art. 472. (omissis).

Parágrafo Único – Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores dos serviços daquela."

Tal modificação legislativa gerou grande contestação nos meios juslaboralistas, controvérsia essa que, no nosso modesto entender, não é justificável juridicamente, apesar de facilmente compreensível do ponto de vista social e psicológico.

Expliquemo-nos melhor.

A parte do parágrafo único que declara a inexistência de vínculo empregatício entre a cooperativa e seus associados é flagrantemente inútil, pois a matéria já estava muito melhor regulada pela própria lei 5.764/71, como a seguir transcrito:

"Capítulo VIII

DOS ASSOCIADOS

(...)

Art. 31. O associado que aceitar e estabelecer relação empregatícia com a cooperativa perde o direito de votar e ser votado, até que sejam aprovadas as contas do exercício em que ele deixou o emprego.

Art. 32. A demissão do associado será unicamente a seu pedido.

Art. 33. A eliminação do associado é aplicada em virtude de infração legal ou estatutária, ou por fato especial, previsto no estatuto, mediante termo firmado por quem de direito no Livro de Matrícula, com os motivos que a determinaram.

Art. 34. A diretoria da cooperativa tem o prazo de 30 (trinta) dias para comunicar ao interessado a sua eliminação

Parágrafo único. Da eliminação cabe recurso, com efeito suspensivo, à primeira assembléia geral.

Art. 35. A exclusão do associado será feita:

I – por dissolução da pessoa jurídica;

II – por morte da pessoa física;

III – por incapacidade civil não suprida;

IV – por deixar de atender aos requisitos estatutários de ingresso ou permanência na cooperativa.

(...)

Capítulo XII

DO SISTEMA OPERACIONAL DAS COOPERATIVAS

(...)

Seção V

Do Sistema Trabalhista

Art. 90. Qualquer que seja o tipo de cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados.

Art. 91. As cooperativas igualam-se às demais empresas em relação aos seus empregados para os fins da legislação trabalhista e previdenciária."

Como vemos, é plenamente possível que os associados da cooperativa tornem-se empregados da mesma, oportunidade em que perderão temporariamente o direito de votar, na forma como prevista no art. 31 e seguintes.

Da mesma forma, a cooperativa não é, nem poderia ser "imune" à legislação trabalhista nacional, no que diz respeito aos seus próprios empregados, sejam eles associados ou não, pois seria no mínimo surreal tentar descobrir qual a natureza jurídica, por exemplo, de uma secretária, não associada, contratada pela cooperativa para fazer todas as atividades inerentes a seu cargo e que não fosse considerada empregada.

Por outro lado, a parte final da nova previsão legal, do ponto de vista do maior rigor técnico-jurídico, também é de grande inutilidade, pois, como consta do próprio conceito doutrinário de cooperativa de trabalho (baseada na definição legal contida no art. 24 do revogado decreto 22.239/32), esta se forma pela união de trabalhadores com a "finalidade primordial (de) melhorar os salários e as condições de trabalho pessoal de seus associados", dispensando a intervenção de um patrão ou empresário, propondo-se "a contratar obras, tarefas, trabalhos ou serviços, públicos ou particulares, coletivamente por todos ou por grupos de alguns".

Ora, se há a "dispensa da intervenção de um patrão ou empresário", é de uma obviedade ululante que, numa cooperativa regularmente constituída, não há como se falar em relação de emprego com o tomador de serviços.

Assim sendo, do ponto de vista meramente dogmático-jurídico, nada mudou com a inserção do parágrafo único do art. 442 consolidado. Ou seja, como diria a sabedoria popular, "tudo como dantes no quartel de Abrantes".

Em verdade, vendo a Justificação do Projeto de Lei nº. 3.383-B/92, da Câmara dos Deputados, que acabou se transformando na mencionada lei 8.949/94 (que inseriu o parágrafo único), concluiremos que a verdadeira intenção dessa nova norma foi o fomento ao fenômeno da terceirização, pela via indireta de uma "imunidade trabalhista" das cooperativas. Confiramos o seguinte trecho:

"Começa-se a admitir, em larga escala, em face do movimento econômico e financeiro em que passa o País, a Terceirização, como uma alternativa de flexibilidade empresarial. Chega a ser considerada por algumas empresas e até trabalhadores, em face da recessão, como excelência empresarial na contratação de prestação de serviços em substituição à mão-de-obra interna das empresas.

Sob o ponto de vista do Direito, a terceirização não consegue equacionar a questão da relação empregatícia, o que poderá ser solucionado com o projeto em pauta.

................... (omissis)

Está no cooperativismo de trabalho "a fórmula mágica" de reduzir o problema do desemprego gerado pelo êxodo rural e agora mais precisamente pela profunda recessão econômica.

O projeto visa, portanto, beneficiar essa imensa massa de desempregados do campo... Estabelecendo a regra da inexistência de vínculo empregatício nos termos ora propostos, milhares de trabalhadores rurais e urbanos... terão o benefício de serem trabalhadores autônomos, com a vantagem de dispensar a intervenção de um patrão"

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Dessa forma, "desmascarada" a verdadeira intenção do projeto, fica mais fácil compreender que as críticas que se faz ao parágrafo único do art. 442 não são em relação às cooperativas em si, pois é do interesse de todos que essas sejam realmente incentivadas como novos meios de trabalho e renda, mas sim ao mau uso que se está fazendo delas.

Por certo, fenômenos deploráveis como os "gatos" (atravessadores de trabalho humano na agricultura) acabam desprestigiando o movimento cooperativista (que, falando sinceramente, nada tem a ver com a questão), pois se tratam de verdadeiras fraudes à lei, notadamente aos direitos laborais desses trabalhadores, sob a forma de uma pseudo cooperativa(14).

O novo dispositivo, em verdade, acabou chancelando (diria melhor, incentivando) práticas fraudatórias em que se teria, na irônica e precisa observação de Rodrigues Pinto, "a desvantagem de o prestador ser empregado com o benefício de seu parceiro não ser considerado patrão"(15).

Por isso mesmo é que estamos vendo diversos projetos de lei pretendendo, inclusive, revogar o dispositivo.

Apenas a título de informação, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 31 da Câmara dos Deputados (cuja numeração anterior à aprovação nesta casa legislativa tinha o nº 2.226), de autoria do Deputado Aloysio Nunes, que revoga o parágrafo único do art. 442 e dá outras providências, já tendo recebido, inclusive, valiosos projetos de substitutos, merecendo destaque os de autoria dos Senadores Beni Veras e Jonas Pinheiro(16).

Essas observações foram feitas somente para demonstrar que as fraudes que se vislumbram na realidade laboral não devem afastar o incentivo às verdadeiras cooperativas, que devem, contudo, ter o grande cuidado de observarem todos os requisitos legais para sua constituição, de modo a não serem confundidas com essas lamentáveis "fraudoperativas".


7. Considerações finais (práticas e jurisprudenciais).

Para encerrar esse estudo, é importante apresentar um panorama jurisprudencial sobre o tema.

Ao se pesquisar nos repertórios autorizados de jurisprudências, facilmente se encontram diversas decisões declarando a nulidade das falsas cooperativas e reconhecendo o vínculo empregatício de seus associados com ela e a solidariedade patrimonial do tomador de serviços.

Todavia, acham-se também precedentes jurisprudencias que tutelam as verdadeiras cooperativas, entendidas essas as que observam rigorosamente todos os preceitos legais da lei 5764/71, sem deixar que se configurem os requisitos caracterizadores do vínculo empregatício.

A título meramente exemplificativo, transcrevemos duas bem fundamentadas decisões, uma de cada fato jurídico:

"Cooperativa. Relação de emprego. Quando o fim almejado pela cooperativa é a locação de mão-de-obra de seu associado, a relação jurídica revela uma forma camuflada de um verdadeiro contrato de trabalho." (TRT-SP – RO 02930463800 – Rel. Juiz Floriano Corrêa Vaz da Silva, 31/05/95)

"Trabalhadores organizados em cooperativa – Prestação de serviços a terceiros – Relação de emprego – Inexistência. Trabalhador associado a cooperativa de trabalho regularmente constituída, que presta serviços a vários tomadores distintos, sem fixação, portanto, a nenhuma fonte de trabalho, não pode ser considerado empregado nem daquela nem de nenhum destes, a teor do que dispõe o parágrafo único do art. 442 da CLT, com a redação da Lei nº 8.949/94." (TRT-MG – RO 12736/96 – Rel. Juiz Márcio Ribeiro do Valle, 11/11/96)

Então, como evitar, na prática, problemas de natureza trabalhista em relação às cooperativas de trabalho?

Em tese, a resposta é muito simples: basta evitar as deturpações do texto legal, incentivando as verdadeiras cooperativas, na forma como aqui apontada.

O próprio Prof. Rodrigues Pinto aponta uma direção, para afastar a fraude, que pode ser encontrada num redimensionamento das relação de trabalho, celebrando a cooperativa "diretamente com o apropriador o contrato de prestação de serviço entre pessoas jurídicas, de cuja execução ficará excluída a pessoalidade, assumindo o ônus de indicar o associado ou associados que, sem vínculo de subordinação, vão desenvolver a atividade, e repassando ou repartindo a prestação que receber"(17).

Ora, mas isso é difícil! – poderiam argumentar!

Bem, mas parece ser a forma de se aceitar as cooperativas de trabalho, na forma como estão hoje reguladas, vez que atendem aos requisitos da lei 5.764/71, notadamente, seu art. 4º, incisos I, VII e XI.

Outras sugestões também podem ser feitas, contanto que o interessado tenha sempre em mente que a observância estrita dos requisitos legais é conditio sine qua non para a licitude das cooperativas de trabalho, devendo sempre ser afastados os quatro requisitos básicos da relação de emprego.

Somente assim, conseguiremos fomentar a criação de cooperativas de trabalho e encará-las, sem preconceitos, como todos devem pretender: fontes alternativas efetivas de trabalho e renda, e não instituições fraudadoras de direitos trabalhistas.

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Sobre o autor
Rodolfo Pamplona Filho

juiz do Trabalho na Bahia, professor titular de Direito Civil e Direito Processual do Trabalho da Universidade Salvador (UNIFACS), coordenador do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito Civil da UNIFACS, mestre e doutor em Direito do Trabalho pela PUC/SP, especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Cooperativismo e Direito do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2082. Acesso em: 18 abr. 2024.

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