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O Show de Truman: uma análise crítica da indústria cultural

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10/01/2012 às 15:07
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O Direito

Os direitos individuais, ao longo dos séculos, foram sofrendo uma evolução. Os Gregos e Medievais, antes do advento da Modernidade, possuíam uma concepção de mundo ontológico-metafísica.

Assim, acreditavam que todos estavam inseridos em uma polis, sendo esta inserida na natureza, a qual se encontra, por fim, dentro do cosmos. E era essa concepção que originava a ideia de que os valores eram naturais, e os direitos já estavam confirmados antecipadamente, sem serem passíveis de discussão.

Acreditava-se, naquele momento, que Deus havia criado o homem submetido a um conjunto de leis naturais, sendo estas inafastáveis. E, como a legitimação política era divina, os reis eram como deuses, podendo mudar as regras quando quisessem, sem se submeterem a elas.

Tal concepção, no entanto, era totalmente prejudicial às liberdades individuais, na medida em que não possibilitava existir prerrogativas particulares em face do Estado.

"Quando o direito positivo sucedeu ao natural, momento em que todos os meios legítimos de usar a força passaram a ser monopolizados pelo Estado, esses direitos de usar a força transformaram-se em autorizações para iniciar uma ação judicial. Ao mesmo tempo, os direitos privados subjetivos foram complementados, através de direitos de defesa estruturalmente homólogos, contra o próprio poder do Estado. Esses direitos de defesa protegiam as pessoas privadas contra interferências ilegais do aparelho do Estado na vida, liberdade e propriedade." (HABERMAS, 1997, p. 48)

Com efeito, as sociedades modernas acabaram com a dicotomia entre Estado e Indivíduos. Daí HABERMAS (1997) afirmar que o Estado passou a ser um subsistema, ao lado de outros subsistemas - tais como a economia, a política e o direito. E que a democracia e a cidadania começaram a ser conquistadas e ocupadas permanentemente.

Sob a perspectiva habermasiana, o direito agora é visto como um mediador, gerando obrigações aos sistemas que compõem a sociedade, ao mesmo tempo em que os cidadãos a elas também estão submetidas.

Por esse motivo, o direito positiva demandas do mundo da vida, as garantindo a partir de uma dimensão emancipatória. Ou seja, o direito concilia a relação entre o mundo da vida, da solidariedade, e os subsistemas da cultura, sociedade etc.

Compreende-se, também, que na sociedade há um conjunto de fatos que demandam leis, que, por outro lado, devem estar alicerçadas na racionalidade, na legitimação social - somente conseguida por meio de consensos. Contudo, deve-se tomar cuidado para que a norma não se torne refém da factualidade, que é casuística. A lei deve ser um parâmetro, não necessariamente ligado a um fato, pois, caso contrário, ela estaria reduzida ao seu elemento subjetivo. (HABERMAS, 1997)

Dessa forma, na modernidade há o desenvolvimento do direito subjetivo, da moralidade, e à medida em que as pessoas amadurecem, a eticidade é desenvolvida. O direito, apesar de possuir código próprio, nunca deixa de dialogar com a política e a moral, devendo todos participarem de seu processo de deliberação, implementação e fiscalização. (HABERMAS, 1997)

Aliás, segundo HABERMAS (1997), somente dessa forma o direito vai cristalizar - na forma de leis - consensos gerados pela cidadania ativa, sendo inconcebíveis situações como as que acontecem no filme.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, foi uma das normas universais mais importantes até os dias atuais, justamente pelo fato de ser a primeira a declarar que todos os homens nascem e são livres.

A Constituição Federal de 1988 também tem o mesmo condão. Ela coíbe a restrição à liberdade - em seu preâmbulo e em seu art. 1º - ao instituir um Estado Democrático de Direito garantidor dos direitos individuais, da liberdade, do bem-estar e da dignidade da pessoa humana.

Além disso, complementa tal direito em seu art. 5º, XV, ao determinar que "é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens."

Tais regras servem para inibir ideias como a de se adotar um bebê para fins econômicos. Elas cristalizam "a necessidade de estipular como fim da sociedade o asseguramento da liberdade natural do homem, assim como a idéia de que a lei, expressão da vontade geral, não pode, por natureza, ser um instrumento de opressão." (BASTOS, 2000, p. 168)

No entanto, a opressão aparece no filme em diversas oportunidades. Seja quando tentam convencer Truman de que a ideia de ser um explorador vai passar, seja quando utilizam de artifícios sórdidos para sua manutenção na Ilha.

A introjeção do medo e as chantagens emocionais nada mais refletem que um abuso de direito e uma violação expressa ao direito de ir e vir do personagem.

"Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir. A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser autodeterminada. É pensada, também, como ausência de constrangimentos externos e internos, isto é, como uma capacidade que não encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma para agir. Trata-se da espontaneidade plena do agente, que dá a si mesmo os motivos e os fins de sua ação, sem ser constrangido ou forçado por nada e por ninguém." (CHAUÍ, 2000, p.464)

Por esse motivo, Truman só começou a conquistar sua liberdade quando passou a ser espontâneo e imprevisível. Quando entrou em seu carro e saiu dirigindo sem destino, vencendo o medo que lhe impedia de passar na ponte e sair da cidade. Quando pegou um barco e saiu velejando, até descobrir que o mar não era infinito, e, ainda por cima, que existia no seu "fim" uma escada que levava à saída, ao alcance de sua liberdade.

Dessa forma, quando o diretor do reality show afirma o direito à liberdade de Truman, pronunciando - em entrevista - que ele poderia partir quando quisesse, a afirmativa se mostra totalmente contraditória. Pois, minutos antes, o próprio havia afirmado que à medida em que o astro crescia, a produção foi forçada a criar maneiras de mantê-lo na Cidade Cenográfica.

Ora, se há coações externas, não se pode falar em liberdade nem em direito de escolha - e essa era uma das mensagens implícitas no filme.

Além do direito de liberdade, outro assunto que se extrai do filme diz respeito ao direito à vida privada e à imagem.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, X, protege tais direitos estabelecendo que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

O Código Civil Brasileiro também estipula em seu art. 18 que "sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial." E, em seu art. 21, que "a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma".

Mas o que se pode entender por intimidade, vida privada e direito à imagem? A palavra "intimidade" liga-se à ideia de família, amigos, relacionamento emocional.

Ser íntimo de alguém significa ter com essa pessoa relações estreitas, subjetivas, nas quais se tem acesso a informações de cunho pessoal. Portanto, quando se fala em direito à intimidade, trata-se de uma garantia que visa resguardar o direito de as pessoas não verem suas vidas serem devassadas injustificadamente ou sofrerem exposição à revelia de suas vontades.

Em função disso,

"(..) encontra-se em clara e ostensiva contradição com o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art.1º, III), com o direito à honra, à intimidade e à vida privada (CF, art. 5º, X) converter em instrumento de diversão ou entretenimento assuntos de natureza tão íntima quanto falecimentos, padecimentos ou quaisquer desgraças alheias, que não demonstrem nenhuma finalidade pública e caráter jornalístico em sua divulgação." (MORAES, 2008, p. 53)

É o direito protegendo as pessoas de não terem suas intimidades expostas pela mídia, pela tecnologia, pela opinião alheia. As relações de amizade, familiares e amorosas, só dizem respeito àqueles que nessas relações se encontrem envolvidos, sendo ilegal transformar o cotidiano de uma pessoa em entretenimento - sem sua anuência.

A palavra "privacidade" já é mais ampla - diz respeito não só à intimidade mas a todo tipo de relacionamento humano que não seja público. Nela se inclui, portanto, relações travadas no dia a dia, sejam elas comerciais, de estudo, de trabalho etc. (MORAES, 2008)

DINIZ (2009) sintetiza esses dois conceitos afirmando que a privacidade se liga às características externas da existência humana, tais como sigilo bancário, comunicação telefônica, hábitos pessoais etc; ao passo que a intimidade se liga às características internas, tais como segredos pessoais, relacionamentos amorosos e respeito à enfermidade ou à dor de alguém. E ambos compõem um direito mais vasto, que é o direito à vida privada.

HABERMAS (1984) explica que as palavras "público" e "privado" tiveram origem na Grécia, eis que a "polis" era a esfera comum a todos os cidadãos livres, enquanto o "oikos" era a esfera particular de cada um. Daí definir o domínio comunal como coisa pública, afirmando que o poço, a praça do mercado, são para uso comum, sendo publicamente acessíveis; enquanto a "esfera particular" é o particularizado, o separado.

Então, se público é tudo aquilo que é acessível a qualquer um, é de uso comum de toda sociedade e que pode se realizar perante qualquer pessoa, a privacidade é seu oposto. Por isso, ter direito à privacidade é ter direito ao reservado, ao secreto; é ter direito a não ser filmado 24 horas por dia.

Além disso, a Lei protege igualmente o nome e a imagem alheia. Estes, como integrantes dos direitos da personalidade, só podem ser relativizados em sua disponibilidade mediante aquiescência e contraprestação pecuniária de seu titular, se assim for desejado. A remuneração, no caso, objetiva combater o enriquecimento ilícito daqueles que se beneficiam com o uso de fotografias, do prestígio, enfim, da individualidade de outrem. (DINIZ, 2009)

Nesse debate,

"(...) toda expressão formal e sensível da personalidade de um homem é imagem para o Direito. A idéia de imagem não se restringe, portanto, à representação do aspecto visual da pessoa pela arte da pintura, da escultura, do desenho, da fotografia, da figuração caricata ou decorativa, da reprodução em manequins e máscaras. Compreende, além, a imagem sonora da fonografia e da radiodifusão, e os gestos, expressões dinâmicas da personalidade. A cinematografia e a televisão são formas de representação integral da figura humana." (MORAES, 1972, p. 64)

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Imagem, portanto, engloba desde a impressão que se faz de alguém até sua reprodução gráfica. Por isso, ela pode representar características físicas de uma pessoa ou pode simbolizar traços de sua personalidade, que são protegidos e só podem ser mercantilizados mediante autorização prévia.

É a norma proibindo situações como as do filme, em que o Reality Show exibe o dia a dia do protagonista - o vinculando a propagandas - sem sua autorização. A associação da figura de uma pessoa a produtos comerciais só pode ser feita com a observância de que ela tenha consciência sobre isso e que efetivamente tenha concordado para tal.


Considerações finais

A análise do referido filme viabiliza a coleta de subsídios substanciais para traçar um paralelo com aspectos da vida moderna. Nesse sentido, algumas características valem a pena ser destacadas, tais como a racionalidade estratégica dos meios de comunicação como segmento ativo na sociedade; a influência da mídia na maneira pela qual as pessoas concebem e compreendem a realidade; os efeitos da introjeção de comportamentos, visões e valores que passam a ser considerados naturais e comuns às pessoas; assim como observações referentes à indústria cultural, a qual visa atingir determinados fins econômicos, suscitando questionamentos éticos e morais acerca dessa realidade.

É oportuno e necessário, portanto, o destaque desse subproduto da modernidade, que é o conjunto dos meios de comunicação de massa, e imprescindível se pontuar a força e influência desses segmentos - sobretudo quando se fala em televisão.

Esta atua de maneira a "fisgar" o telespectador, o que a princípio é legítimo. O problema nasce com relação à forma, à estratégia utilizada pelas emissoras para se conseguir audiência.

Dentro dessa perspectiva, a indústria cultural é muito bem utilizada pela televisão, pois esta detém alcance considerável. Os programas, tal qual o Big Brother Brasil, exemplificam bem essa estratégia midiática de entreter a população, ao mesmo tempo em que servem como instrumento para direcionar e instituir padrões de comportamentos e de gostos - características essas que demonstram a natureza inequívoca das sociedades de massas.

Levando-se em conta o Brasil, por exemplo, em que a maioria das pessoas tem televisão, e destacando-se o fato de sermos uma nação cuja desinformação é patente, é natural a discussão em torno de como se dá essa relação dos grandes meios de comunicação, com suas informações e filtros que fazem da realidade, e a população.

A mídia - inegavelmente - possui muito poder e, obviamente, muitos interesses. Certamente que o principal deles é o econômico – ponto esse que vale a pena ser debatido, dada a relevância de se chamar a atenção para a maneira pela qual esses veículos poderosos de comunicação chegam a esse fim intrinsecamente ligado à sociedade.

Questões éticas e morais, nessa mesma linha, – analogamente às levantadas pelo filme – também podem e devem ser trazidas para um debate mais aprofundado. É certo que a mídia tem grande apelo com as imagens, podendo usá-las de maneira a manipular a massa em geral.

E é igualmente verdade que ela orienta as pessoas, determinando a percepção destas acerca de como devem enxergar o mundo.

Entretanto, a problemática maior não é com relação à inescapável filtragem da realidade (já que o importante é que se tenha diversidade de informações e de programações, privilegiando a pluralidade), e sim a ética e moral envolvidas na condução, pelos grandes donos dos poderes de comunicação, no trato das informações, programações, entretenimentos, e a honestidade desses meios para a consecução do fim último: o lucro.

Portanto, é salutar que a mídia desempenhe um papel que se oriente não só por critérios econômicos e políticos, mas também por critérios sociais. Porque no final das contas, a sociedade é um organismo vivo, delicadamente coordenado entre diversos segmentos interdependentes - como se se tratasse de um corpo humano. E isso nos leva à conclusão de que as partes envolvidas dependem umas das outras para desempenharem suas funções a contento e para garantirem a unidade e o pleno funcionamento do corpo social.


Referências

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BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional – 21ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2000.

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______. Itinerários de Antígona. São Paulo: Papirus, 1992.

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HANSEN, Gilvan Luiz. Espaço e tempo na modernidade, in: Revista GEOgrafia. Rio de Janeiro, Ano II, n.03. 2000, p. 51-67.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes; tradução Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1948.

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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional – 23ª Ed. São Paulo: Atlas, 2008.

MORAES, Walter. Direito à própria imagem. Revista dos Tribunais. São Paulo, ano 61, n. 443, setembro de 1972, p. 64, et seq.

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Filmes relacionados

WEIR, Peter. O Show de Truman - Edição Especial para Colecionadores. Estados

Unidos: Paramount Pictures, 2006. 102 minutos DVD-VIDEO. NTSC

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Sobre a autora
Marluce de Oliveira Rodrigues

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Pós-Graduada em Direito do Trabalho pela Universidade Gama Filho (UGF). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Estudante Pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Política, Movimentos Sociais e Serviço Social da UFF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Marluce Oliveira. O Show de Truman: uma análise crítica da indústria cultural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3114, 10 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20824. Acesso em: 24 nov. 2024.

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