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A conciliação no PROCON/PA: um meio alternativo para a resolução do conflito nas relações de consumo

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3 O ACESSO À JUSTIÇA E O SISTEMA MULTIPORTAS

Prescreve o Art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Nesta diretriz, a norma constitucional deixa claro que nenhuma lei ou qualquer outro ato estatal poderá impedir ou dificultar o acesso do indivíduo à Justiça.

Mas, da proclamação ao exercício desta garantia, existia uma série de obstáculos que dificultavam, durante décadas, ao indivíduo, não só o pleno acesso, mas também à obtenção de uma prestação jurisdicional efetiva e equitativa às suas pretensões. Ainda hoje, alguns obstáculos persistem, mesmo após a implementação de reformas processuais e na reestruturação dos serviços judiciários no Brasil.

Contribuíram para tais reformas, os processualistas Mauro Capelletti e Bryant Garth. Os estudos, que desenvolveram no denominado Projeto de Florença [28] (1976), concluíram que os sistemas judiciais dos países pesquisados apresentavam semelhanças no acesso à Justiça, que denunciavam uma Justiça apenas para alguns. A Justiça cometia injustiças. Apontava o relatório a existência de uma atividade jurisdicional vagarosa, economicamente dispendiosa e que ignorava a existência de novos direitos. Resumindo o documento, afirma com propriedade Carlos Eduardo de Vasconcelos [29]:

Três iniciativas ou ondas foram vistas, inicialmente, como as mais básicas no sentido da efetividade do acesso à justiça: a primeira intenta frustrar o obstáculo econômico na fruição dos direitos humanos, o que se viabiliza pela assistência judiciária para as pessoas de baixa renda. A segunda tem por finalidade combater o obstáculo organizacional, possibilitando a defesa de interesses de grupo, difusos ou coletivos, por meio das ações populares ou coletivas. Já a terceira onda, objetiva combater o obstáculo processual de acesso à justiça, mediante a expansão e o reconhecimento dos direitos humanos, por todos os meios que reduzam o congestionamento crônico dos sistemas judiciários internos da maioria dos Estados.

A relevância dos estudos não ficou na constatação de que a Justiça não era para todos. Os pesquisadores divulgaram ações estatais promissoras em algumas sistemas judiciários e extrajudiciais em alguns países que já sinalizavam soluções ao fragilizado e deficiente sistema vigorante em todo o mundo.

Condensadas sob a proposição teórica do acesso efetivo à Justiça, Capelletti & Garth identificaram que não bastava ao Judiciário ser inafastável, pois ele também teria que prestar uma tutela efetiva a quem o procurasse.

Rumando no sentido destes novos ventos soprados pela redemocratização e busca da justiça social, sob a vigência da atual Carta Política, e mesmo antes da renovação institucional e política do país, foram criados procedimentos processuais e reformadas as estruturas da administração judicial para garantir maior efetividade à tutela jurisdicional ao indivíduo.

Neste propósito, surgem leis de abrangência coletiva, Juizados Especiais e Defensorias Públicas. Parece pouco, mas não é.

Chamados de ondas renovatórias, como já mencionado, os processualistas sugeriram três proposições de reformas fundamentais, que tinham três finalidades básicas, quais sejam a de proporcionar assistência judiciária para os pobres; a representação dos interesses difusos, material e processualmente considerados, e promoção de políticas visando um novo enfoque de acesso à justiça.

Ainda que não constitua o objeto principal deste trabalho discorrer em pormenores as contribuições dos estudiosos, é inarredável traçar alguns comentários, ainda que brevemente.

Para permitir que a parcela da sociedade desprovida de recursos pudesse atravessar a soleira do Judiciário brasileiro, sem prejuízo da manutenção de sua família, já existia a vigorante Lei nº1.060/1950, que garante a assistência judiciária gratuita, nos termos do Art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal.

A introdução dos Juizados Especiais no Artigo. 98, inciso I, da Lei Maior, antes chamadas de Juizados de Pequenas Causas, sob a vigência da EC nº01/69 do ordenamento anterior, simplificou o ajuizamento e processamento das ações de pequeno valor e de menor complexidade. Atualmente reguladas pelas Leis nº 9.099/95 e 10.259/01, os Juizados foram concebidos para tornar célere o processamento das ações que tenham menor complexidade [30], nas justiças estaduais e Federal.

Ademais, várias leis de natureza processual também foram editadas para evitar que a decisão do julgador não se tornasse de nenhuma ou pouca valia ao final da ação.

O constituinte de 1988 viu que as medidas até então adotadas não eram suficientes e fez ainda previsão da Defensoria Pública, no Art. 134 da Carta atual, para prestar a orientação jurídica e a defesa dos necessitados [31].

Segundo dados da Associação Nacional dos Defensores Públicos do Brasil (ANADEP), em seu Diagnóstico de 2009 [32], o país já contava com aproximadamente 4.515 advogados públicos distribuídos nas instituições mantidas pela União, Distrito Federal e Estados, sendo que alguns Estados ainda não criaram suas defensorias, deixando-as sob convênios firmados com seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

A criação dos Juizados, das Defensorias Públicas e do benefício da gratuidade de justiça constituíram a chave que abriu as portas da prestação jurisdicional à maioria da população brasileira carente de conhecimentos sobre seus direitos e de recursos para disputas judiciais. Com isso, a primeira onda reformista preconizada por Capelletti & Garth [33] foi pouco a pouco tomando corpo no Brasil.

A segunda onda reformista sugerida pelos teóricos pode ser considerada das mais importantes para a sociedade. Embora a representação dos interesses difusos no Brasil antes de 1988 já podia se dar com a Ação Popular e a Ação Civil Pública [34], tais diplomas normativos ainda carregam consigo limitações à plena efetividade das tutelas coletivas.

Durante a realização da Audiência Pública para a Atualização do Código de Defesa do Consumidor, ocorrida na cidade de Belém do Pará [35], o jurista Kazuo Watanabe, membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para a referida atualização, demonstrando que as tutelas coletivas de ordem processual ainda não detêm a amplitude que delas se espera, comenta que o Artigo 16, da Lei nº7.347/1985, que estabelece a Ação Civil Pública, limitando os efeitos da sentença prolatada à competência territorial do juiz, diminui a força coletiva da natureza da ação. O estimado processualista afirmou ser a norma contrária aos princípios que orientaram a criação da própria lei em que ela se insere.

Apesar de alguns retrocessos, os direitos de massa receberam a devida legitimação e proteção estatal através do CDC, preconizando, em seu Artigo 81, que a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

A representação ficou definida em seu Artigo 82 [36], conforme já assinalado neste estudo, de modo que não só o Ministério Público como também a Administração Pública e as entidades civis, ambos promotores de defesa do consumidor, receberam a legitimidade suficiente para o cumprimento de seu mister perante o Judiciário, qual seja, a defesa dos interesses da comunidade de consumidores a uma só vez e voz.

A propósito, o Anteprojeto que tramita na ordem do dia no Senado Federal para a atualização do CDC [37], e capitaneado pela mencionada Comissão de Juristas, prevê que a Defensoria Pública esteja legitimada concorrentemente com as demais instituições públicas a promoverem a tutela do consumidor. Esta medida além da disciplina das ações coletivas no diploma consumerista são propostas legislativas que serão levadas a texto final e que em muito completam e reforçam o sistema tutelar coletivo dos consumidores no Brasil.

Cabe também lembrar o Mandado de Segurança Coletivo, com previsão constitucional no Artigo 5º, inciso LXX, e regulado pela Lei nº12.016/09, instrumento concebido para alargar o escopo de proteção à coletividade diante da lesão a direito líquido e certo.

A segunda onda renovatória de acesso efetivo à Justiça no que diz respeito ao direito de representação expressa, na verdade, uma revolução em matéria processual. Corroborando com este pensamento, afirmaram Capelletti & Garth [38]:

A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares.

Hoje, as ações coletivas são tão comuns quanto as ações individuais, de maneira que mais uma lacuna foi preenchida no sistema judicial visando contemplar os direitos difusos.

Contudo, apesar dos avanços alcançados, ainda há uma demora considerável na obtenção da resposta judicial, mesmo não sendo mais custoso prosseguir na demanda ou de não haver mais óbices à representação das coletividades.

Como comprovação dessa afirmação, na atualidade, o serviço prestado pelos juizados brasileiros continua moroso, pois a demanda da sociedade não oti de crescer, conforme observam os dados apresentados pelo Departamento de Pesquisa Judiciária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [39]:

Tabela 1. Volume de Ações Judiciais nos Juizados Especiais da Justiça Estadual de 2004 a 2008:

Justiça Estadual

Justiça em Números 2004 a 2008

Litigiosidade no Juizado Especial

2004

2005

2006

2007

2008

MagJE – Número de Magistrados no Juizado Especial

866

839

874

924

906

CnJE – Casos Novos no Juizado Especial

3.538.072

4.073.400

4.161.564

4.113.152

4.212.609

CpjJE – Casos Pendentes de Julgamento no Juizado Especial

3.272.316

3.525.387

3.793.969

4.047.922

4.026.472

SentJE – Número de Sentenças no Juizado Especial

3.154.978

3.755.365

4.065.142

3.991.470

4.072.377

ChJE – Casos Novos por 100.000 habitantes no Juizado Especial

2.019

2.212

2.265

2.236

2.222

CmJE – Casos Novos por Magistrados no Juizado Especial

4.155

4.839

4.731

4.451

4.627

kJE – Carga de Trabalho no Juizado Especial

7.707

9.250

9.063

8.832

9.035

TJE – Taxa de Congestionamento no Juizado Especial

53,7%

50,5%

48,9%

51,1%

50,6%

Data da última atualização: 04/06/2009

Fonte: CNJ-DPJ

Tabela 2. Volume de Ações Judiciais nos Juizados Especiais da Justiça Estadual em 2010:

Justiça Estadual

Casos Novos

Casos pendentes de baixa

Total de processos baixados

Sentenças

1º Grau

11.550.034

41.919.265

11.821.627

9.630.254

Juizado Especial

3.936.951

4.421.974

4.620.308

4.077.731

Total 1ª Instância

15.486.985

46.341.239

16.441.935

13.707.985

Fonte: CNJ-Justiça em Números 2010

Os dados são bastante emblemáticos quanto à crescente demanda da sociedade sobre a tutela jurisdicional e dispensam maiores interpretações. A cada ano mais de 4.000.000 de novas ações ingressam nos Juizados Estaduais brasileiros, ações estas titularizadas por indivíduos de baixo poder aquisitivo e cujo objeto material em disputa é de pouca monta e de menor complexidade jurídica.

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Os jusprocessualistas Capelletti & Garth [40] já anteviam esta realidade, quando afirmaram:

O fato de reconhecermos a importância dessas reformas não deve impedir-nos de enxergar os seus limites. Sua preocupação é basicamente encontrar representação efetiva para interesses antes não representados ou mal representados. O novo enfoque de acesso à Justiça, no entanto, tem alcance muito mais amplo. Essa "terceira onda" de reforma inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além. Ela centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas. (grifo nosso)

O sistema judiciário brasileiro, ao garantir o acesso à tutela jurisdicional aos mais necessitados, proclamado na primeira onda renovatória, descuidou que a administração judiciária não conseguiria absorver com qualidade todas as demandas da sociedade nas diversas controvérsias na qual se viam envolvidos seus cidadãos. Os dados acima espelham esta demanda sempre crescente.

No entanto, não resultou suficiente ao aparato estatal-judiciário promover a porta de entrada para o jurisdicionado ver apreciado e decidido seu pleito, uma vez que nem mesmo as medidas processuais antecipatórias de sua pretensão vêm suprindo e pacificando os conflitos que vivencia.

Mais juízes e serviços judiciais não têm sido aclamados como a solução única viável para aplacar os anseios da sociedade nesta seara da vida, mas um conjunto de outras saídas estatais vem sendo experimentadas e que foram previstas por Capelletti & Garth como a ideia de se promover um novo enfoque daquilo que seja o acesso à justiça, no sentido do acesso à ordem jurídica tutelar.

É óbvio que oacesso à prestação jurisdicional só poderá ser promovida pela função estatal na pessoa dos órgãos e serviços judiciais. Porém, Capelletti & Garth entendiam que o monopólio de dizer o direito na pessoa dos juízes não impede que outro órgão estatal venha a fazê-lo com vistas à pacificação social, como se verá adiante, informando ao cidadão os seus direitos.

3.1 Um Novo Enfoque de Acesso à Justiça

É sem sombra de dúvida que a expressão acesso à Justiça, cunhada pelos seus estudiosos, diz respeito à função jurisdicional do Estado, conforme já afirmado. Entretanto, Capelletti & Garth ampliaram seu conceito, indo além da ideia de Justiça como sistema formado por órgãos e instituições jurisdicionais.

Para os renomados processualistas, os direitos substantivos de massa que chegam aos tribunais sob a forma de litígios de direito público exigem das instâncias formais do Estado instituições e procedimentos adequados para atenderem a essas novas demandas da sociedade.De fato, têm razão os estudiosos. Mesmo garantida a legitimidade à representação coletiva para a tutela dos direitos de massa, tal como se depreende os afetos às relações de consumo, os indivíduos continuam a bater às portas da administração judiciária para a satisfação de suas pretensões, isoladamente. Convém asseverar que Capelletti & Garth não pretenderam retirar do Judiciário o monopólio de dizer o direito, frise-se mais uma vez, apenas anteciparam que os novos direitos iriam exigir do Estado, e não do Judiciário apenas, prestações positivas no sentido de, conforme Kazuo Watanabe [41], permitir que o cidadão tenha direito a obter uma ordem jurídica justa.

Atentos às incompreensões por que passaria a ideia do novo enfoque de acesso à Justiça, disseram Capelletti e Garth [42] ao final do seu Relatório de Florença:

Uma vez que grande e crescente número de indivíduos, grupos e interesses, antes não representados, agora têm acesso aos tribunais e a mecanismos semelhantes, através das reformas que apresentamos ao longo do trabalho, a pressão sobre o sistema judiciário, no sentido de reduzir a sua carga e encontrar procedimentos ainda mais baratos, cresce dramaticamente. (...) No entanto, uma mudança na direção de um significado mais "social" da justiça não quer dizer que o conjunto de valores do procedimento tradicional deva ser sacrificado. (grifo nosso)

Se ao Estado, dentro deste novo paradigma de acesso à Justiça, cabe o dever de informar e orientar o cidadão sobre os direitos de que é portador, então não apenas o Judiciário, mas também a Administração Pública pode e deve otific-lo para o exercício de sua cidadania.

Em seu interior, o Estado Social atua, não se limitando às abstenções de tolher a liberdade individual e coletiva, mas de atender ao rol de prestações positivas. Não é um mero expectador dos anseios sociais, mas um protagonista da efetivação dos direitos. Nesse sentir, exprimiu o constitucionalista Paulo Gustavo Gonet Branco [43]:

Os direitos de defesa, conforme a própria denominação os designa, oferecem proteção ao indivíduo contra uma ação, apreciada como imprópria, do Estado. Já os direitos a prestação partem do suposto de que o Estado deve agir para libertar os indivíduos das necessidades. Figuram direitos de promoção. Surgem da vontade de estabelecer uma "igualdade efetiva e solidária entre todos os membros da comunidade política". São direitos que se realizam por intermédio do Estado.

A partir da ampliação do conceito de acesso à Justiça, os estudos que sucederam ao Relatório de Florença defendem a ideia de que esse acesso poderá se dar em outras instâncias estatais, conferindo ao cidadão múltiplas portas para obtenção a uma ordem jurídica efetiva.

Como afirmaram os estudiosos Capelletti & Garth [44], a utilização de métodos e procedimentos alternativos ao modelo tradicional de resolução de conflitos pela sentença, a exemplo da mediação, conciliação e arbitragem, tendem a aceitar as limitações das reformas dos tribunais, envolvendo a simplicidade e julgadores informais. O novo sistema encorajará acordos e reduzirá o congestionamento do judiciário.

Com abordagens diferenciadas em vários países, como França, Portugal, Suíça e Estados Unidos, o sistema multiportas constitui saída judicial e extrajudiciais para a pacificação dos conflitos.

Portugal, por exemplo, vem adotando procedimentos de desjudicialização de conflitos, no sentido de que disputas judiciais sejam evitadas em seus tribunais, livrando-os dos congestionamentos processuais.

Nos EUA, país de longa tradição na resolução de conflitos extrajudiciais, desde meados do século passado, é adotado o procedimento dos chamados "tribunais multiportas" ou "multi-door courthouse". Sua característica essencial está no procedimento inicial, de modo que o Judiciário aprecia se a demanda tem condições de ser resolvida pela Administração Pública ou para conciliadores extrajudiciais, antes de se constituir num litígio judicial. [45]

O Brasil vem incorporando paulatinamente em sua legislação processual meios alternativos à pacificação de conflitos, como a instalação dos juízos arbitrais e das conciliações prévias no curso da ação. [46]

Há também uma mudança silenciosa na Administração Pública visando a prevenção de conflitos. A criação das agências reguladoras de determinadas atividades econômicas, a exemplo da Agência Nacional de Petróleo (ANP) e da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) [47] foram constituídas como instâncias administrativas de composição de conflitos entre fornecedores (prestadores dos serviços) e consumidores.

Outras agências que buscam compor conflitos e de relevante importância para os consumidores brasileiros são a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Agência Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT), Agência Nacional de Águas (ANA), Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA), todas regidas por legislação própria. [48]

Comentando a atuação judicante do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), do Ministério da Justiça, e sobre as agências governamentais mencionadas, informa o saudado processualista Freddie Didier Jr. [49]:

As agências reguladoras têm o poder de dirimir conflitos. Sucede que essa heterocomposição, embora formalmente bem parecida com a solução jurisdicional, é apenas um equivalente jurisdicional, na medida em que é possível submeter ao Judiciário o controle de suas decisões, tanto sob o aspecto formal, mas também sob o aspecto substancial, por exemplo.

No entanto, na prática, o que se tem visto é uma atuação mais regulatório-normativa do que compositiva, suscetível de muitas críticas quanto à sua inação neste aspecto, muito embora prevista legalmente a possibilidade de resolução de conflitos em sua esfera de atuação.

O estabelecimento de marcos legais da atividade econômica que visa controlar, tem como premissa a livre concorrência e a paridade de armas na busca do lucro entre os fornecedores.

Apesar de dever acolher as queixas dos consumidores e dar-lhes resolução diante dos fornecedores, o que se tem visto na prática é a simples aplicação de multas e encaminhamentos de demandas de forma individual, sem nenhum impacto político de proteção relevante, de forma coletiva e a prevenir conflitos. Este comportamento inadequado das agências reguladoras não é "privilégio" do Brasil apenas, conforme atestaram Capelletti & Garth [50]:

Outras soluções governamentais para o problema – de modo especial, a criação de certas agências públicas regulamentadoras altamente especializadas, para garantir certos direitos do público ou outros interesses difusos – são muito importantes, mas, também, limitadas. A história recente demonstra que, por uma série de razões, elas têm deficiências aparentemente inevitáveis. Os departamentos oficiais inclinam-se a atender mais facilmente a interesses organizados, com ênfase nos resultados das suas decisões, e esses interesses tendem a ser predominantemente os mesmos interesses das entidades que o órgão deveria controlar. Por outro lado, os interesses difusos, tais como os dos consumidores e preservacionistas, tendem, por motivos já mencionados, a não ser organizados em grupos de pressão capazes de influenciar essas agências. (grifo nosso)

Este fenômeno, de inevitável conflito de interesses entre consumidores e os grupos organizacionais controlados pelas agências governamentais, são corriqueiramente encontrados nas ações ajuizadas no plano federal, tendo de um lado, via de regra, um órgão ministerial, e de outro, em litisconsorte passivo, uma agência reguladora de serviços públicos essenciais, tais como a ANATEL e a ANEEL.

As normas editadas por esses organismos governamentais também têm sido alvo de muitas controvérsias não só jurídicas como políticas, posto que em muitas matérias ali tratadas usurpações legislativas são cometidas [51].

Há, contudo, outros espaços da Administração Pública que desempenham, com notoriedade e eficiência, a prevenção e resolução de conflitos, merecendo destaque a atuação da Advocacia-Geral da União (AGU), que tem se utilizado do procedimento da conciliação ou do arbitramento para promover o deslinde de controvérsias de natureza jurídica entre órgãos e entidades da Administração Federal. Assumem esta tarefa a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF), os Núcleos de Assessoramento Jurídico da Consultoria-Geral da União e outros órgãos da instituição. Regulada pela Portaria nº1.281/07 e amparada na Lei nº9.028/95, a ideia é a de dirimir conflitos, numa tentativa de se evitar sua discussão em âmbito judicial.

Além da AGU, a Defensoria Pública da União (DPU), através da Lei Complementar nº80/94, tem entre suas missões institucionais, a finalidade de promover prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição, entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos. [52]

Todas estas incursões da Administração Pública, através da adoção de técnicas procedimentais de composição extrajudiciais de conflito vêm sendo denominadas pelos processualistas nacionais e estrangeiros de meios alternativos à pacificação social, constituindo o que têm chamado de sistema multiportas, amplamente difundido pela Universidade americana de Harvard desde a década de 70. [53]

Se a Administração Pública adotasse com maior ênfase, notadamente no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), as práticas resolutórias compositivas, abriria a possibilidade de reduzir a elevada e preocupante demanda judicial que vem sofrendo nos últimos anos, como apontam os dados do CNJ no documento "100 Maiores Litigantes" [54]:

Tabela 3. Relação dos Maiores Litigantes do Setor Público Federal

Fonte: Departamento de Pesquisa Judiciárias/ CNJ.

O processo administrativo apaziguador de conflitos passou a ser utilizado no Brasil de forma bastante tímida, mas o advento do rol de direitos fundamentais da Carta de 1988, como já comentado, trouxe ao Estado uma carga considerável de exigências sociais, pois, mais que proclamar direitos e garantias, era necessário dar pronta resposta às tutelas para o exercício da cidadania, mostrando-se mais simples e eficaz. Colabora nesta lição o posicionamento do doutrinador Cândido Rangel Dinamarco [55] a respeito do processo extrajudicial:

A primeira característica dessas vertentes alternativas é a ruptura com o formalismo processual. A desformalização é uma tendência, quando se trata de dar pronta solução aos litígios, constituindo fator de celeridade. Depois, dada a preocupação social de levar a justiça a todos, também a gratuidade constitui característica marcante dessa tendência. Os meios informais gratuitos (ou pelo menos baratos) são obviamente mais acessíveis a todos e mais céleres, cumprindo melhor a função pacificadora. Por outro lado, como nem sempre o cumprimento estrito das normas contidas na lei é capaz de fazer justiça em todos os casos concretos, constitui característica dos meios alternativos de pacificação social também a delegalização, caracterizada por amplas margens de liberdade nas soluções não jurisdicionais (juízos de equidade e não juízos de direito, como no processo jurisdicional).

Denominado por alguns processualistas brasileiros como equivalentes jurisdicionais [56], a exemplo de Fredie Didier Jr., estas formas de atendimento às demandas sociais, como já esclarecido, não visam afastar o cidadão do Poder Judiciário, mas o de prevenir a perpetuação dos conflitos ou mesmo o de impedir sua deflagração.

A atuação da Administração Pública como instância legitimada para a tutela dos direitos assegurados na Constituição, adotando as técnicas de mediação e conciliação com vistas à realização da cidadania, indo além de sua mera proclamação, foi prestigiada por Capelletti & Garth, denominando-os de fórmulas governamentais de solução dos conflitos. [57] Como otifica do Judiciário, as medidas têm expandido o dever do Estado de defesa do cidadão quando em conflito, mesmo tendo como litigante uma de suas instituições.

Conhecidos no Brasil pela denominação Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos (MARC), a mediação, conciliação e a arbitragem constituem técnicas procedimentais extrajudiciais que têm por objetivo compor os conflitos e administrá-los até sua extinção, através da realização de um acordo, obtendo-se ao seu final a pacificação.

A natureza do conflito irá determinar a melhor técnica a ser adotada na composição. Disputas familiares, comunitárias, comerciais, locatícias e as de relação de consumo, que versarem sobre interesses patrimoniais, são as espécies mais visadas e passíveis de solução.

Sem que se fuja ao interesse deste trabalho discorrer-se-á sobre os meios judiciais e extrajudiciais usuais para a resolução dos conflitos de consumo.

3.2 Os Meios de Solução do Conflito de Consumo

O processo é o instrumento adequado para o deslinde do litígio. Dele o Estado se utiliza para distribuir justiça, não importa a função que venha a cumprir. Os conflitos de interesses são essenciais para a evolução das sociedades, mas o Estado deve geri-lo e como as divergências estão onde estão os homens, o processo terá escopos judicial, legislativo ou administrativo.

De todas as múltiplas espécies de disputas humanas, a de cunho consumerista é a que releva neste estudo. Ficou assentado que os conflitos de consumo podem ser dirimidos nas vias administrativa ou judicial, pois ao Estado caberá a defesa do consumidor.

No processo judicial, o consumidor que se sentir lesado ou ameaçado de sofrer lesão pela conduta de um fornecedor de produto ou serviço no mercado de consumo poderá se valer da atuação do serviço jurisdicional dos Juizados Especiais Cíveis Federal e Estaduais ou pela Justiça Comum. O conflito de consumo se dá por heterocomposição. A tradicional triangulação espelha a atuação jurisdicional estatal.

Esquema 1: Componentes da Jurisdição:

Juiz

Consumidor Fornecedor

Por outro lado, no processo administrativo, poderá o consumidor se utilizar do serviço prestado pelas administrações públicas federal, estaduais e municipais que foram designadas para a promoção da defesa dos consumidores. Cumprem este mister o Departamento Nacional de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), órgão de cúpula do sistema legal de proteção ao consumidor, os órgãos públicos de defesa do consumidor (PROCONS) e as entidades civis que tenham igual finalidade. Haverá aqui um terceiro que não tomará o lugar das partes, mas que assumirá a atribuição de tentar conduzi-los a uma solução a partir do embate de suas vontades. Com isso, buscar-se-á a autocomposição do conflito. A feição do processo administrativo desta natureza terá a seguinte configuração:

Esquema 2: Componentes da Conciliação:

 

Percebe-se que os sujeitos do conflito permanecem em iguais posições de animosidade em ambos os processos. Outra semelhança está no elemento subjetivo: de início, ambos almejam a prevalência de sua pretensão e dela não querem abrir mão.

Entretanto, as diferenças são fundamentais. Na heterocomposição, o Estado substituirá a vontade dos contendentes, o que não ocorre na autocomposição, uma vez que o terceiro elemento apenas subsiste para auxiliar os conflitantes a extrair da composição de suas vontades a solução que traga mútua satisfação.

Estes meios são portas de acesso à Justiça, que visam eliminar a contenda. Para Walsir Rodrigues [58], as diferentes formas compositivas são válidas, não se excluindo, mas complementando-se:

Os métodos de solução de conflitos podem ser divididos em dois grandes grupos: os heterônomos e os autônomos. Os primeiros são assim denominados porque atribuem a um terceiro o poder de dizer a solução para o caso concreto. Pode-se realizar de duas formas: por meio do monopólio público-estatal que se efetiva pela Jurisdição estatal, no qual o Estado-Juiz decide coercitivamente ou por meio da designação privada, na qual o árbitro, escolhido pelas partes, aponta a solução para o conflito existente entre elas. No processo de conciliação, há a figura de um terceiro que funciona como um intermediário entre os litigantes. O objetivo da conciliação é o entendimento entre as partes, independentemente da qualidade das soluções ou da interferência na interpretação das questões e que comporta-se de modo imparcial, propondo, inclusive, soluções para o problema, auxiliando as partes envolvidas no conflito na busca de um acordo. (...) (grifo nosso)

Desta forma, a composição dos conflitos de consumo no Brasil assume duas posições na ordem jurídica estatal: será judicial ou extrajudicial.

A autocomposição judicial dos conflitos se dá por uma única razão: os contendores são livres para decidirem, sem a intervenção estatal, o resultado de seus desentendimentos. O Estado jamais poderá turvar este direito, posto que também não deseja a perpetuação da divergência entre os litigantes.

Com previsão nas normas processuais brasileiras, a autocomposição judicial, como já explicitado acima, pode se dar antes ou durante o curso da ação, constituindo dever do juiz velar pela rápida solução do litígio e tentar, em qualquer tempo, conciliar as partes. [59] Para Fredie Didier Jr. [60], a autocomposição é fator que afasta o Estado do monopólio da jurisdição para a resolução dos conflitos, quando afirma:

É a forma de solução do conflito pelo consentimento espontâneo de um dos contendores em sacrificar o interesse próprio, no todo ou em parte, em favor do interesse alheio. É a solução altruísta do litígio. Considerada, atualmente, como meio alternativo de pacificação estatal. Avança-se no sentido de acabar com o dogma da exclusividade estatal para a solução dos conflitos de interesses. Pode ocorrer fora ou dentro do processo jurisdicional.

Apesar do prestígio que goza o processualista, humildemente ousa-se discordar no ponto em que toma como um dos escopos da autocomposição acabar com o dogma da exclusividade estatal. A uma, porque a jurisidição é o espaço estatal de resolução de conflitos disponível a todo cidadão. Ela é inerte, não se imiscuindo nas pendengas dos indivíduos de forma policialesca. A duas, porque os meios alternativos de pacificação não subtraem do Estado sua legitimidade e função de composição de conflitos. Ao contrário, os MARC’s são, como explicitado, portas de acesso à ordem jurídica para a pacificação social, nada mais que isso. Ademais, nada impede que um acordo extrajudicial, não homologado pelo juiz, venha a ser submetido ao crivo do serviço jurisdicional.

Diversa é a visão do processualista Cândido Rangel Dinamarco [61] ensinando que:

Já a autocomposição, que não constitui ultraje ao monopólio estatal da jurisdição, é considerado legítimo meio alternativo de solução dos conflitos, estimulado pelo direito mediante as atividades consistentes na conciliação.

De um modo geral, pode-se dizer que é admitida sempre que não se trate de direitos tão intimamente ligados ao próprio modo de ser da pessoa, que a sua perda a degrade a situações intoleráveis. (grifo nosso)

A despeito dos avanços já alcançados pelo Judiciário quanto à autocomposição judicial, os consumidores brasileiros ainda se valem dos órgãos de defesa do consumidor, os PROCONS, para intermediar os conflitos de consumo diante dos fornecedores de produtos e serviços, através da formulação da Reclamação.

Segundo informações do DPDC, foram realizadas mais de meio milhão de resolução de reclamações junto aos órgãos de defesa de todo o país no ano de 2009. [62] São demandas sociais decorrentes de conflitos de consumo que não chegaram às portas do Judiciário brasileiro, porque a Administração Pública, atendendo a um direito fundamental, promoveu o acesso à Justiça, orientando consumidores e fornecedores e, ainda, intermediando conflitos com vistas à pacificação social.

A autocomposição extrajudicial realizada pelo PROCON no Brasil, por meio da Reclamação, tem sido alvo de algumas críticas no que pertine à possível incompatibilidade de seu mister definido na Lei nº8.078/90 (CDC) e sua atuação de compositora dos conflitos de consumo. Seus críticos alegam que os órgãos de defesa do consumidor não podem compor conflitos, mas fiscalizar e impor sanções aos fornecedores, constituindo seu processo natureza punitiva e não harmonizadora.

Este posicionamento não se coaduna com os princípios estabelecidos no CDC nem com o sistema protetivo nele previsto. Linhas à frente demonstrar-se-á, através da explanação da atuação do PROCON do Estado do Pará, que à Administração Pública não cabe apenas o fazer cumprir as leis, mas também o de promover a justiça social pela harmonização dos conflitos de consumo.

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Sobre o autor
Celso de Jesus Pereira Saldanha

Bacharelando em Direito pela Faculdade Ideal (FACI), em Belém (PA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALDANHA, Celso Jesus Pereira. A conciliação no PROCON/PA: um meio alternativo para a resolução do conflito nas relações de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3118, 14 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20863. Acesso em: 25 abr. 2024.

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